Considerando injusto dizer-se que o «Alf não gosta de concorrência» (em princípio, ninguém gosta, mas esse é um assunto ainda mais difícil, por ser ainda mais abstracto do que o problema da crítica literária) esta reflexão da autora de Um Jeito Manso - sem ostentar emblemas de autoridade literária mas carregada de ideias - tem bastante sentido e constitui uma generosa oportunidade para que possa clarificar e resumir a minha anterior crítica ao trabalho de Luís Miguel Rosa. Justifica-se esta clarificação também por oferecer - com a coragem característica deste autor que vos fala - um motivo para mergulhar na psicologia da pedantice e da arrogância intelectual, mostrando até que ponto somos vítimas dos sistemas de reputação onde pretendemos triunfar. Ora vamos lá.
Sim, Luís Miguel Rosa é um pouco chato. Aflorei o assunto quando referi a ausência de brilhantismo no estilo e o facto de a sua prolixidade suscitar incoerências e até alguma confusão argumentativa.
Sim, o Luís Miguel Rosa parece não se incomodar com a evidente necessidade de fazer demonstração da sua imensa cultura sobre irrelevâncias socio-literárias (também sugiro isso ao longo da minha crítica) quando nem sempre essa informação vem acompanhada por uma igual densidade, digamos, filosófica.
Sim, a vida (mas a também a literatura) não exige este longo calvário de leituras para se atingir a profundidade, a riqueza de sentido(s), e até a propriedade de argumentos críticos adequados aos problemas estéticos implícitos na escrita de um texto.
Sim, o Benfica será provavelmene Pentacampeão (peço desculpa).
Contudo, a chatice tem muitas faces, e é essa a razão pela qual meia bloga cai aos pés de Luís Miguel Rosa. Para quem se interessa pela sociologia da literatura, o Luís Miguel apresenta não só um conhecimento enciclopédico - como ficou referido - como um trabalho de compilação de dados (datas de edição, entrevistas, edições, prémios, referências em jornais e revistas) absolutamente esmagador. Quem cresceu hipnotizado por esta memorabilia do eterno jogo de sombras socio-literário (que está na base de toda a consagração literária) lê a prosa de Luís Miguel Rosa como se de uma entusiasmante narrativa de ficção se tratasse. Compreendo, por outro lado, o efeito entediante. É um pouco como aquelas pessoas para quem assistir às várias etapas de um Tour de France, com as suas intermináveis subidas e descidas, é algo incompreensível. Não o será, quando dominamos os tempos médios das etapas, as características de cada ciclista, os seus picos de forma (e problemas familiares) os impactos da meteorologia nos trepadores, as probabilidades de acidentes no empedrado, o currículo dos directores de equipa, os orçamentos salariais, etc.
No fundo, a ideia de densidade dos textos (para alguém educado literáriamente) está muito ligada à capacidade de invocar esforço de leitura e conhecimento da tradição (autores, revistas, eventos, entrevistas) sobre a qual se escreve. Isto foi sempre uma enorme armadilha para os escritores de todos os tempos: a confusão entre os valores das academias de especialistas e os valores do leitor comum. O nosso juízo sobre as diferenças de densidade, sobretudo no nosso tempo - como temos por aqui referido - não resulta de nenhum fenómeno obscuro da psicologia da arte, mas da muito palpável economia salarial onde estamos inseridos, vulgo, dinheiro para se comprar o pão com chouriço - e perdoe-se deste já o marxismo da afirmação. Dito de outro modo, a capacidade de resistir à chatice evidenciada por Luís Miguel Rosa, suscita aplausos em eremitas e eruditos precisamente por serem essas pessoas pagas para serem eruditas e eremitas, isto é, campeões na capacidade de resistência à chatice. Se isto poderá ser exagerado para 100% dos eruditos, não o será para 99%, pois a erudição - como todos sabemos - custa muito tempo e dinheiro.
Podemos voltar a invocar o ciclismo: quem sobe aos 1,912 metros do Mont Ventoux recebendo dinheiro e glória para chegar em primeiro lugar, terá alguma tendência para olhar com sobranceria quem se dedica a subir ao Domingo à Rampa da Falperra. Tentemos forçar ainda mais analogia. O problema é quando procuramos justificar em que sentido o ciclista profissional vencedor do Tour realiza qualquer coisa de mais digno, profundo, inteligente ou importante do que o domingueiro subindo ao Bom Jesus de Braga com uma sandes de carne assada na mão esquerda. Se o domingueiro conseguir ganhar mais dinheiro do que o ciclista profissional, então teremos esse fenómeno bem característico de todos os tempos: os cavaleiros do Apocalipse cultural.
Podemos voltar a invocar o ciclismo: quem sobe aos 1,912 metros do Mont Ventoux recebendo dinheiro e glória para chegar em primeiro lugar, terá alguma tendência para olhar com sobranceria quem se dedica a subir ao Domingo à Rampa da Falperra. Tentemos forçar ainda mais analogia. O problema é quando procuramos justificar em que sentido o ciclista profissional vencedor do Tour realiza qualquer coisa de mais digno, profundo, inteligente ou importante do que o domingueiro subindo ao Bom Jesus de Braga com uma sandes de carne assada na mão esquerda. Se o domingueiro conseguir ganhar mais dinheiro do que o ciclista profissional, então teremos esse fenómeno bem característico de todos os tempos: os cavaleiros do Apocalipse cultural.
Analogia não é perfeita, bem sei, pois em assuntos humanos, o sentido da linguagem não é quantificável (distância/tempo) o que nos tem lançado neste Carnaval a que chamamos a crítica literária. Podemos sempre desistir perante a sabedoria do mercado e o julgamento dos eruditos (para depois nos mostrarmos aborrecidos quando os eruditos e os eremitas são facilmente aclamados e se julgam os guardiães da eterna sabedoria). E com isto termino.
A questão é se queremos continuar a fazer de conta que existe um sistema de valores literários, mantendo prémios e até cursos superiores de Letras (quando a maior parte do público e dos cidadãos não especializados olha para crítica como um desperdício de tempo, e tende a considerar de mau gosto o esforço de se apontar - e criticar - méritos literários indevidos) ou se queremos pensar mais profundamente na relação entre a reputação literária e os seus efeitos económicos e políticos ao longo do tempo. Como sabem, pertenço ao segundo grupo, até porque - ao contrário do que pensamos - o próprio conceito de chatice (central na nossa economia) está directamente ligado ao problema da literatura oficial e do seu ensino preparatório e secundário, ao qual - Deus nos valha - estamos todos obrigados.
Saber onde estão os embustes literários, não é apenas um problema de mau fígado: é zelar pela felicidade das nossas crianças, é ajudar a construir uma linguagem mais eficaz e rigorosa, é dotar os adolescentes de armas contra a ilusão, o pedantismo e o orgulho injustificado. É ajudar a demolir o mundo de enfatuados contra o qual, justamente, a autora de Um Jeito Manso se insurge, perturbada pela incompreensão dos elogios fáceis.
13 comentários:
não percebo a ponta d'um corno do que vocês dizem (ou querem dizer) na maioria das vezes, mas, se é para entrar em comparações, digo já que a tua letra é maior do que a do Luís M. Rosa.
Não acredito nessa incompreensão. Mas agradeço o elogio, que é aliás fruto do meu esforço em ser compreendido.
Como já não compro jornais nem revistas em papel, deixei de ler críticas literárias. Ao Expresso, antes de deixar de comprar, já comprava apenas para ler a Revista. Contudo, o Expresso, no seu conjunto, começou a incomodar-me para além da conta e bani-o dos meus hábitos. A revista Ler também deixou de me interessar. Geralmente era a entrevista de fundo que me interessava mas, às tantas, já entrevistavam tudo o que era bicho careta e desisti. Mas, em tempos, lia sempre a crítica literária e lia sobretudo para ver se conseguia formar uma opinião sustentada sobre o que é uma boa crítica.
Há casos em que o crítico resolve aproveitar o espaço para mostrar que é culto e que sabe tudo o que há para saber. Lê-se a crítica com a incómoda sensação de estar a assitir a um exibicionismo onansta. Há outros casos em que o crítico resolve mostrar uma superioridade intelectual e moral que lhe permite maltratar o escritor e, pior, maltratar com deselegância. Aí, mesmo sem querer, quase se fica com pena do escritor mesmo que ele seja, na verdade, um desastre. Outras vezes, os críticos preguiçosamente transcrevem longos trechos do livro, limitando-se depois a dizer umas banalidades. Fica-se com a sensação que está apenas a 'picar o ponto'.
Ou seja, raramente existe equilíbrio.
Acresce que talvez porque o País é pequeno e talvez porque o núcleo decisor a nível editorial ou a nível concursal é pequeno e não tem como evitar alguma promiscuidade (ou simplesmente convivência) com os escritores nacionais, sempre que os críticos falam dos novos escritores há ali uma basbaquice que me parece quase paroquial. Elogiam e falam com deleite de escritores que não acrescentam nada, nem na forma nem no conteúdo. Se eu tiver que indicar bons escritores portugueses vivos tenho alguma dificuldade em escolher mais do que um ou dois. E, no entanto, quem leia os críticos convence-se de que há literatura a sério a fervilhar cá pelo burgo.
Dito isto, acho relevante que vozes instruídas, isentas e com alguma elevação escrevam sobre o que se lê. [A questão está nas premissas --instruídos, isentos, com elevação -- pois isso reduz o leque de opções].
Não falei num outro tipo de 'crítico' (e ponho aqui as aspas para que não venha dizer que não devo encaixá-lo no grupo): os que escrevem bem e mostram saber do que escrevem, os que parecem ser isentos ou que parecem ser capazes de pôr os temas em perspectiva. Mas... que se alongam de tal forma que a gente consegue ver como se entusiasmam com as bolas de efeito, com as piruetas em que exibem uma boa forma intelectual... e em que o assunto em causa parece resvelar para segundo plano, quase se perdendo a noção de qual é, afinal, o ponto a que se pretende chegar. Mas isto já lho disse, estou a repetir-me.
Em suma: não deve ser fácil ser crítico literário. Quando leio James Woods gosto. Mas, enfim, talvez seja apenas uma simpatia minha.
E é isto. E já agora, Alf, acrescento que também aprecio o seu sentido de humor.
James Wood. Sem s.
"subir ao Domingo à Rampa da Falperra" ou "subir ao Domingo a Rampa da Falperra"? Voto na segunda mas vós, os literatos que escrevem textos muito longos, tão longos que nem sei como cabem na internet, é que devem saber essas merdas.
Eu é mais carros e por isso informo os leitores deste blog que a Rampa da Falperra é uma competição de automóveis. Podes ir de bicicleta, não te garanto é que quando chegares à meta ainda lá esteja o bacano do cronómetro. Mas percebo, achaste que era uma daquelas comparações Ferrari/Opel Corsa que dá para enfiar com eficácia estilística em textos armados aos cucos. O João Pedro Jorge Miguel António Nuno Paulo, escritor que tanto tu como eu temos em grande estima, era gajo para escrever uma dessas. Que é que tu andas a ler?
E depois hás-de me explicar como é que andas de bicicleta a subir com uma sandes na mão. A descer ou em plano ainda vá que não vá, agora a subir não creio que o faças sem as duas mãos no guiador. Mas já chega, o meu texto começa a ter muitos caracteres e ainda ficam a achar que eu sou desses que escrevem imenso sobre coisas das quais sabem pouco.
Uau! O meu coment de há 2 posts deu origem a dois textos impressionantemente longos de autoria do Alf (sim, o segundo é uma resposta à autora do maravilhoso blog umjeitomanso.blogspot.pt [que parece ser, pelo menos em parte, apoiante das ideias do dr. bruno de carvalho, a julgar pela forma como inicia o seu coment, "como já não compro jornais nem revistas em papel..."] mas mesmo assim eu fico feliz e arrebanho para mim algum mérito nesta troca de opiniões) e agora a próxima fase do meu plano é criar a big literary tour, um pouco ao jeito da big wave tour. ou seja, dar algum sal à coisa, alguma competitividade. colocar texto contra texto em várias categorias: número de caracteres, número de palavras, nota artística/estilística, conhecimento histórico-sociológico, quantidade de pessoas insultadas, qualidade das pessoas insultadas (não é a mesma coisa insultar o gonçalo m. tavares ou o pedro chagas freitas, por exemplo, apesar de...), erros hortográphicos, beleza das críticas ao novo acordo ortográfico, adequação sócio-cultural, verosimilhança... etc... aceito sugestões! esta competição pode tornar-se modalidade olímpica.
Concordo inteiramente com o diagnóstico geral da autora de um Jeito Manso e eu próprio - como é evidente - padeço muitas vezes dessas fragilidades. Na maior parte dos casos, o crítico ou revela frustração ou necessidade de demonstrar a sua ampla cultura ou quer esmagar os leitores com a sua superioridade de gosto ou todas estas coisas ao mesmo tempo. Voltamos sempre ao velho princípio: a melhor crítica é a construção de uma obra alternativa (mesmo que esta possa ter características semelhantes aos elementos típicos da estrutura crítica, o que tem sido raro, mas não nos esqueçamos que Proust começou por aí).
Ao anónimo da Rampa da Falperra, agradeço as correcções quanto à figura de estilo. No fundo, ficou demonstrada a importância da crítica: ficamos todos a ganhar. Embora as achegas sobre o cronometrar da subida não belisquem o sentido geral da metáfora comparativa - a rampa funcionava aí só como comparação de uma subida familiar aos leitores e pode ser substituída pelo mesmo Mont Ventoux - já subir de bicicleta com uma sandes de carne assada na mão, não sendo impossível (havia pelo menos um gajo na minha rua - por sinal, gordo - que aos 15 anos dominava perfeitamente essa arte) não é de facto fácil. Mas podem substituir a sandes por um chapéu de toureiro na cabeça. Havia ainda que dizer porque raio me fui eu lembrar da Rampa da Falperra: talvez a memória de assistir, na infância, com grande perplexidade, a umas transmissões ao Sábado de manhã, que despertavam em mim a curiosidade sobre o que levava centenas de pessoas a amontoar-se na mata para ver passar uns carros em velocidade, coisa que me desinteressava profundamente. Considero que a literatura incide sobre estes mistérios, mas ultimamente, os escritores dedicam-se a dramatizar doenças ou os vários tipos de violência pequeno-burguesa e a derramar lágrimas pelo sofrimento do mundo. É legítimo.
Ao anónimo do Uau: com coragem e perseverança a ideia do big literary tour é justamente o que falta na crítica literária: critérios universais (essa lista é um excelente começo) e um esforço de medição. Não é fácil concretizar o plano com exaustividade e equidade de concorrentes, mas qualquer tentativa já constituiria um feito capaz de mudar para sempre o panorama literário nacional. O anónimo avance que ofereço desde logo a minha obra como cobaia da severa soberania crítica do povo.
Alf (deixem passar o tratamento informal), apesar da (actual) ausência (aliás, não notada) de crítica literária e jardinagens afins no Cão (http://desempregadoempart-time.blogspot.pt/), nada justifica a tua ausência (outra vez ausência? - deixem passar) das lides caninas, para não dizer outras. Por exemplo, no Inútil (http://anjoinutil.blogspot.pt/) escreve-se umas cenas e até se tiram fotografias. Por falar nisso, onde anda o Maradona?
Um abraço (deixem passar)
Ainda era o Dr. Oliveira e Salazar rapazote, ja diziam entre si os seminaristas de Barcelos: - texto longo, picha curta. Esta mesma calunia freudiana surge muitas vezes associada a pratica do tuning de automoveis.
Alf, também foste detido lá por causa dessa marosca do e-toupeira?
Prognóstico muito depois do jogo:
Sim, o Luis M Rosa é um chato
Sim, o alf é um chato
Sim, ambos dizem coisas acertadas
Sim, o penta ciao ciao ciao
Sim, o verão vai ser muito quente
Sim, o melhor inda tá pra vir
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