sábado, 17 de fevereiro de 2018

Prolongamento

A autora de Um Jeito Manso teve mais uma vez a simpatia de me fazer um reparo e creio que também desta vez sou forçado a dar-lhe razão, de forma ainda mais rápida.


Considerando injusto dizer-se que o «Alf não gosta de concorrência» (em princípio, ninguém gosta, mas esse é um assunto ainda mais difícil, por ser ainda mais abstracto do que o problema da crítica literária) esta reflexão da autora de Um Jeito Manso - sem ostentar emblemas de autoridade literária mas carregada de ideias - tem bastante sentido e constitui uma generosa oportunidade para que possa clarificar e resumir a minha anterior crítica ao trabalho de Luís Miguel Rosa. Justifica-se esta clarificação também por oferecer - com a coragem característica deste autor que vos fala - um motivo para mergulhar na psicologia da pedantice e da arrogância intelectual, mostrando até que ponto somos vítimas dos sistemas de reputação onde pretendemos triunfar. Ora vamos lá. 

Sim, Luís Miguel Rosa é um pouco chato. Aflorei o assunto quando referi a ausência de brilhantismo no estilo e o facto de a sua prolixidade suscitar incoerências e até alguma confusão argumentativa.

Sim, o Luís Miguel Rosa parece não se incomodar com a evidente necessidade de fazer demonstração da sua imensa cultura sobre irrelevâncias socio-literárias (também sugiro isso ao longo da minha crítica) quando nem sempre essa informação vem acompanhada por uma igual densidade, digamos, filosófica.

Sim, a vida (mas a também a literatura) não exige este longo calvário de leituras para se atingir a profundidade, a riqueza de sentido(s), e até a propriedade de argumentos críticos adequados aos problemas estéticos implícitos na escrita de um texto.

Sim, o Benfica será provavelmene Pentacampeão (peço desculpa).

Contudo, a chatice tem muitas faces, e é essa a razão pela qual meia bloga cai aos pés de Luís Miguel Rosa. Para quem se interessa pela sociologia da literatura, o Luís Miguel apresenta não só um conhecimento enciclopédico - como ficou referido - como um trabalho de compilação de dados (datas de edição, entrevistas, edições, prémios, referências em jornais e revistas) absolutamente esmagador. Quem cresceu hipnotizado por esta memorabilia do eterno jogo de sombras socio-literário (que está na base de toda a consagração literária) lê a prosa de Luís Miguel Rosa como se de uma entusiasmante narrativa de ficção se tratasse. Compreendo, por outro lado, o efeito entediante. É um pouco como aquelas pessoas para quem assistir às várias etapas de um Tour de France, com as suas intermináveis subidas e descidas, é algo incompreensível. Não o será, quando dominamos os tempos médios das etapas, as características de cada ciclista, os seus picos de forma (e problemas familiares) os impactos da meteorologia nos trepadores, as probabilidades de acidentes no empedrado, o currículo dos directores de equipa, os orçamentos salariais, etc.

No fundo, a ideia de densidade dos textos (para alguém educado literáriamente) está muito ligada à capacidade de invocar esforço de leitura e conhecimento da tradição (autores, revistas, eventos, entrevistas) sobre a qual se escreve. Isto foi sempre uma enorme armadilha para os escritores de todos os tempos: a confusão entre os valores das academias de especialistas e os valores do leitor comum. O nosso juízo sobre as diferenças de densidade, sobretudo no nosso tempo - como temos por aqui referido - não resulta de nenhum fenómeno obscuro da psicologia da arte, mas da muito palpável economia salarial onde estamos inseridos, vulgo, dinheiro para se comprar o pão com chouriço - e perdoe-se deste já o marxismo da afirmação. Dito de outro modo, a capacidade de resistir à chatice evidenciada por Luís Miguel Rosa, suscita aplausos em eremitas e eruditos precisamente por serem essas pessoas pagas para serem eruditas e eremitas, isto é, campeões na capacidade de resistência à chatice. Se isto poderá ser exagerado para 100% dos eruditos, não o será para 99%, pois a erudição - como todos sabemos - custa muito tempo e dinheiro.

Podemos voltar a invocar o ciclismo: quem sobe aos 1,912 metros do Mont Ventoux recebendo dinheiro e glória para chegar em primeiro lugar, terá alguma tendência para olhar com sobranceria quem se dedica a subir ao Domingo à Rampa da Falperra. Tentemos forçar ainda mais analogia. O problema é quando procuramos justificar em que sentido o ciclista profissional vencedor do Tour realiza qualquer coisa de mais digno, profundo, inteligente ou importante do que o domingueiro subindo ao Bom Jesus de Braga com uma sandes de carne assada na mão esquerda. Se o domingueiro conseguir ganhar mais dinheiro do que o ciclista profissional, então teremos esse fenómeno bem característico de todos os tempos: os cavaleiros do Apocalipse cultural.

Analogia não é perfeita, bem sei, pois em assuntos humanos, o sentido da linguagem não é quantificável (distância/tempo) o que nos tem lançado neste Carnaval a que chamamos a crítica literária. Podemos sempre desistir perante a sabedoria do mercado e o julgamento dos eruditos (para depois nos mostrarmos aborrecidos quando os eruditos e os eremitas são facilmente aclamados e se julgam os guardiães da eterna sabedoria). E com isto termino. 

A questão é se queremos continuar a fazer de conta que existe um sistema de valores literários, mantendo prémios e até cursos superiores de Letras (quando a maior parte do público e dos cidadãos não especializados olha para  crítica como um desperdício de tempo, e tende a considerar de mau gosto o esforço de se apontar - e criticar - méritos literários indevidos) ou se queremos pensar mais profundamente na relação entre a reputação literária e os seus efeitos económicos e políticos ao longo do tempo. Como sabem, pertenço ao segundo grupo, até porque - ao contrário do que pensamos - o próprio conceito de chatice (central na nossa economia) está directamente ligado ao problema da literatura oficial e do seu ensino preparatório e secundário, ao qual - Deus nos valha - estamos todos obrigados. 

Saber onde estão os embustes literários, não é apenas um problema de mau fígado: é zelar pela felicidade das nossas crianças, é ajudar a construir uma linguagem mais eficaz e rigorosa, é dotar os adolescentes de armas contra a ilusão, o pedantismo e o orgulho injustificado. É ajudar a demolir o mundo de enfatuados contra o qual, justamente, a autora de Um Jeito Manso se insurge, perturbada pela incompreensão dos elogios fáceis.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

A crítica da crítica

Um simpático leitor veio aqui ameaçar-nos com um blogue onde, alegadamente, se escrevem textos longos e impressionantes, e onde, de caminho, se revela um impressionante conhecimento da literatura. Apesar de sufocado por uma tenebrosa falta de tempo, fiz minhas as palavras de um conhecido poeta no meio de uma tempestade de neve, e fui ver: o blogue intitula-se Homem-de-Livro e é da autoria de Luís Miguel Rosa. O autor escreve poucos textos mas recorrendo à forma longa. Deixando de lado os textos em inglês, li apenas com atenção o ensaio «A Cada Esquecido o seu Adido» e o maior elogio que se pode fazer é que foi capaz de colocar em progresso as pesadas e gastas correias da minha mecânica mental.

Não é comum dizermos por aqui coisas positivas, sobretudo quando se trata de jovens autores, mas eis chegado o dia em que somos forçados a aplaudir um (pelo menos para mim) desconhecido. Apesar de o autor, Luís Miguel, se exceder na extensão da argumentação, nem sempre utilizando a famosa e sempre tão necessária navalha de Occam, e mesmo recorrendo a expressões arcádicas como «acúmen sentimental» ou «irmanizam» e deixando de lado alguma falta de brilhantismo no estilo (o que funciona como vantagem no alcance democrático da sua reflexão) só podemos agradecer a este promissor autor o seu trabalho. Pensamos sobretudo na compilação de dados que certificam muitas das nossas ideias, por vezes aqui por nós apenas afloradas, mas sem a devida fundamentação, em virtude dessa saborosa combinação (que sempre nos assiste) entre a fatal preguiça e a necessidade de ganhar a vida com outras coisas mais apreciadas pelo vulgo.

Como não podia deixar de ser, passaremos em revista algumas pequenas irritações, para de caminho podermos soltar alguns elogios a Luís Miguel Rosa, com estoiro e espumante, na alegria de ver em letra de forma algumas singelas verdades que, por razões históricas e económicas, é muito raro vermos defendidas no nosso contexto literário. 

Primeiro problema: pela boca morre o peixe. O Luís Miguel parte de considerações sociológicas muito abrangentes mas escolhe como representação desse retrato apenas duas figuras, sobre as quais se demora, Baptista Bastos e sobretudo Joana Emídio Marques. Na verdade, além da insólita e deselegante tareia aplicada a Baptista Bastos (um homem falecido, segundo julgo saber) Luís Miguel Rosa aponta a Joana Emídio Marques - uma crítica literária e jornalista com recente protagonismo nas páginas do Observador - com especial, ainda que justa, severidade. Reconheço que o caso possa ser paradigmático, mas seria muito mais eloquente se o Luís Miguel apontasse vários exemplos, incluindo os vários académicos, muitos editores e infinitos presidentes de júris de prémios literários, mas palpita-me que Luís Miguel Rosa sabe bem por onde passa a linha vermelha da sobrevivência e comete aqui um erro similar, em termos de crítica, ao que pretende denunciar com a sua curiosa e profunda, mas às vezes confusa, análise do problema crítico português: a energia despendida e desperdiçada a fabricar elegias a «escritores esquecidos» é apenas uma via para impiedosamente se poder insultar os novos e contemporâneos. 


«Toda a boa crítica é uma celebração, um acto de louvor, se não de amor. Porque não há valores absolutos na estética, o crítico deve dar menos importância à explicação do que ao encantamento. (...) O sermão, a invectiva, o vitupério, a verrina, a diatribe, eis os géneros favoritos dos pretensos guardiões da nossa memória colectiva.»

e mais adiante:


«Volvido um século, esse tom sobrevive em catastrofistas como Clara Ferreira Alves, Ana Cristina Leonardo, António Guerreiro e os demais que se têm em conta como orientadores da cultura e formadores do gosto. Nas mãos deles, os esquecidos são um pretexto para destilarem ódio de forma socialmente aceite (“Ela preocupa-se!”), pois acabam antes por estadear a sua superioridade sobre os outros e expressar de forma segura o habitual desdém pelos portugueses que é o apanágio de todo o intelectual que odeia ter nascido nesta pasmaceira quando podia ter nascido em Paris, Londres, Nova Iorque.»

Caro Luís Miguel, mas não será esse longo texto um magnífico exemplo daquilo que, precisamente, identifica como um problema da crítica nacional? O Luís Miguel - muitas vezes nesse texto, sem grande demonstração ou consistência lógica - acusa a crítica de não ser demonstrativa (o que é correcto) e apesar de aduzir toneladas de informação sociológica (assunto a que voltarei para o elogiar) censura o tom verrinoso e acusatório dos críticos, para logo acusar, verrinosamente, uma série de críticos de serem verrinosos e acusatórios. Isto significa que o problema talvez não esteja na dimensão acusatória ou na verrina, ou nos problemas de sociologia da literatura, que o Luís Miguel Rosa muito bem critica (desmontando falsas ideias sobre escritores alegadamente marginalizados ou esquecidos) mas sim na dificuldade em dizer qualquer coisa de lógico, fundamentado e universal no que respeita ao valor estético de um texto. 

É sempre cómico contemplar o momento em que críticos inteligentes, com formação superior em Literatura e gosto apurado, constatam esta singela realidade (o valor em Literatura é um pântano fumegante), mas horrorizados pelo desperdício de tempo a que, nesse caso, se entregaram, se recusam a daí extrair todas as dolorosas consequências sobre a irrelevância da informação, por eles acumulada ao longo de anos, sobre «literatura de qualidade». Se tudo é manifestação de amor, estaremos mais perto de um Toy do que de um I. A. Richards. Se o Luís Miguel considera despropositado os críticos censurarem Z por não ter lido A (pois a experiência literária é subjectiva) das duas uma: ou o Luís Miguel demonstra que existe uma crítica não subjectiva ou terá de aplicar à crítica a mesma receita que aplica à literatura: o amor honesto é o elementar critério da verdade, pois tudo é subjectivo. Como experiência subjectiva, gosto muito do estilo acusatório e verrinoso e faço neste caso o diagnóstico oposto: temos carência e não excesso desse medicamento genérico.

Aliás, o próprio Luís Miguel conclui na parte final do texto isto mesmo, contradizendo, de alguma maneira, o que escreveu na primeira parte do texto (provavelmente, partes escritas até em dias diferentes e já não tendo o autor inteiramente presente as primeiras afirmações).


«Não há escritores intocáveis, muito menos os actuais; nem estou a proscrever resenhas negativas aos críticos de jornal. Penso aliás que foi a falta de uma tradição de resenhas negativas feitas honestamente que exacerbou este problema: o medo de emitir uma opinião, o medo de julgar, o medo de avaliar, o medo de ofender, levou à falta de um cânone sólido e aceite de forma generalizada. Penso ainda que foi a falta de rigor na avaliação dos escritores dos últimos vinte anos, os quais foram deificados depressa e sem resistência, que leva muitos adidos a iras tremendas.»

Aqui a confusão fica patente: da impotência da subjectividade literária - e da inutilidade de convencer os outros dos nossos gostos - passamos a uma economia do «cânone sólido e aceite de forma generalizada» assente num aumento do número de críticas negativas «honestas». Substituir a verrina pela honestidade, eis o que não se afigura como solução para o problema do valor em Literatura. Mas não sejamos severos. O Luís Miguel - repito - arrisca aqui pisar terrenos que praticamente apenas neste blogue (perdoe-se o exagero) vão sendo desajeitada e preguiçosamente pisados.

Segundo problema: a tendência para polemizar contra tiques ideologicamente institucionalizados num país onde a esquerda política teve inegável relevância literária, leva o autor a entusiasmos político-sociológicos que ferem o tom geral de moderação das suas argumentações ao nível da história literária. Diz a certo momento que «Este medo de contaminação relativo a tudo quanto nascesse além-fronteiras, meio século mais tarde, tornar-se-ia o cavalo de batalha dos filósofos filofascistas ligados ao Estado Novo, o Grupo 57. Esta é uma das muitas semelhanças que irmanizam a I República e a ditadura, embora o seu aprofundamento não costume estar no topo das prioridades dos historiadores.» Muitas semelhanças que irmanizam a I República e  a ditadura? Façamos uma dupla pausa. I República. Ditadura. Parecem-me dois conceitos diferentes. Nem seria necessário sair do reino da filologia para justificar as razões de não chamar à ditadura, II República, dadas as enormes diferenças entre esses dois regimes políticos. E isto fazendo uso da teoria apreciada pelo Luís Miguel Rosa (se as coisas não foram aprofundadas é porque não precisam de aprofundamento). Aliás, esta ideia das semelhanças entre I República e Ditadura é uma banalidade divulgada pelo grupo estrangeirado produzido em Oxford e inseminado artificialmente nessa dourada teta do Orçamento de Estado, o Instituto de Ciências Sociais (peço desculpa, acordei mal disposto). Aqui, o Luís Miguel Rosa volta a incorrer num outro erro que, justamente, pretende censurar: neste caso, cometeu o pecado da verrina, pois faltam dados a confirmar este tremendo juízo disparado a talhe de foice entre a rápida caracterização de um intelectual republicano.

É aliás a única crítica de fundo que tenho a fazer ao belo texto de Luís Miguel Rosa: mistura a génese do nacionalismo (um fenómeno bastante abrangente e complexo, comum a quase todas unidades políticas existentes no planeta terra) o medo da colonização cultural (uma realidade mais circunscrita mas ainda assim bastante comum a outros espaços nacionais) com os problemas da crítica literária em Portugal (um problema de contornos especificamente nacionais determinado pelo tamanho da indústria editorial, a qualidade e quantidade das Universidades e os níveis de alfabetização da população). Resolvido este problema, o ensaio do Luís Miguel seria das coisas mais valiosas escritas em portugal nos últimos tempos

Terceiro problema: oscilação psicanalítica entre a evidente censura do nacionalismo serôdio e a crítica do provincianismo que, como quase sempre - e veja-se o caso de Eça de Queiroz -, redunda numa bipolarização entre declarações de amor ao bacalhau de cebolada e homilias sobre a superioridade intelectual dos anglo-saxões.

«Pode-se facilmente escrever uma história da tradição de os autores portugueses acusarem as próprias épocas de incompetência generalizada, excepção feita ao acusador e compinchas».

E logo adiante:

«Nenhum escritor merece ser atacado em duas linhas rápidas de um artigo, sobretudo quando esse ataque serve apenas o engrandecimento do favorito do crítico. O efeito que isso tende a ter sobre mim é questionar a parcialidade do adido. Isto é uma coisa, entre tantas outras, em que o modelo anglo-americano da crítica literária nos poderia ensinar algo sobre foco e acentuação do positivo. Eles sabem separar a comemoração da aniquilação. Quando um crítico anglo-americano quer festejar um escritor morto há décadas, não desperdiça cinco parágrafos a lamentar o quão maus todos os escritores são hoje em dia; explica da primeira linha para a frente os méritos do seu favorito.»

Jesus, Maria, José! «Foco e acentuação do positivo»? Nada me move contra seminários motivacionais mas creio que, neste particular, Luís Miguel se perdeu no seu amor pelos estudos ingleses. Bastaria um conhecimento tão profundo da sociologia da literatura inglesa como Luís Miguel Rosa demonstra ter da portuguesa, para fazer coro com Sebald, citando Goethe: não há ódio como aquele que é manifestado entre literatos. Só neste país é que se diz «só neste país» para citar a canção de um cantor desafinado e mesmo assim corajosamente detentor de uma carreira de razoável sucesso. Luís Miguel Rosa tem igualmente de rever este ponto no seu texto. Há problemas específicos do meio literário português e há problemas estruturais de qualquer meio literário. Como o próprio afirma, a inveja e a maledicência não são monopólio nacional. E muito menos os esquemas de apreciação literária anglo-saxónicos servem como modelo no complicado panorama estético, tecnológico e político em que nos encontramos. Aqui, caro Luís Miguel, como em tudo na vida, cada um está por sua conta.

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Quarto problema: alguma confusão entre a fundamentação lógica da crítica literária e um esboço de catecismo para uma boa vida.

Luís Miguel Rosa considera que o esquecimento é não só natural como desejável e depois procura demonstrar que em muitos casos não se verifica sequer um esquecimento. «Opinadores culturais nunca aceitam que os imbecis, usando critérios estéticos rigorosos e válidos, possam ter decidido não atribuir qualquer grandeza aos seus favoritos.» Compreendemos, o assunto não é fácil. Luís Miguel oscila aqui entre o imortal argumento liberal aplicado à literatura (e que é não só o resultado da colonização estrangeira - não discuto se com efeitos civilizadores ou barbarizantes - mas também um fruto apodrecido da autoridade ideológica vigente: tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis) e o impulso para considerar a crítica literária um artifício humano gerador de consequências e produtor voluntário de hierarquias, valorizações e efeitos económicos. Chega a aflorar o assunto, quando refere as quantidades industriais de livros e textos produzidos pelos sistemas de informação (sejam livros, revistas ou, hoje em dia, redes sociais) mas desiste perante a dificuldade e deixa depois à consideração de um mecanismo ético individual - a honestidade - a resolução do problema, profundo e perturbador, a saber, a dimensão política e reputacional de um sistema literário nascido de uma cultura elitista e invadido pela democratização da escrita e multiplicação de tecnologias de difusão de textos. Para Luís Miguel Rosa resta esperar de quem escreve nos jornais, quem edita, quem ensina, a defesa e o amar de um conjunto de «autores preferidos», divulgados com argumentos sólidos. E a crítica Luís Miguel? E a crítica? Se é fruto da subjectividade, incorremos noutros fascinantes problemas: deverá o Estado financiar Universidades onde se ensinam Estudos Ingleses?

Bem sei que o decadentismo, salpicado de nacionalismo e verniz poético, precisa das apropriadas doses de naftalina. Mas é igualmente preguiçoso considerar que as coisas são pela simples razão de que existem razões para o terem sido, o que nos dispensa de explicar as razões e – ainda melhor – nos exime de sair à rua com um programa de trabalhos e melhoramentos para o que consideramos ter sido mal construído por essa engenheira feminista, a Natureza. Mesmo se estamos a  falar sobre a Natureza da efeméride literária. Não se pode demolir a tendência para o decadentismo - censurando todos os que diariamente engrossam o coro diante da perda de valores - para depois abraçar uma outra versão Correio da Manhã TV da filosofia Ocidental: as coisas sempre foram o que são.

«Dos clássicos não aprendemos que o passado foi mais simples, mais apetecível; aprendemos que o mundo sempre foi tão horrível quanto suspeitamos que é.»

Discordo! Com os clássicos aprendemos que a cada nova geração é preciso reinventar o mundo (sejam as nossas ideias sobre o horror, sejam as nossas concepções sobre as diferenças entre o passado e o presente) e o julgamento sobre a nossa responsabilidade nessa interminável batalha de dar sentido às coisas, será medido pela fertilidade do nosso trabalho (escrito e publicado) no alívio do sofrimento e no alcance da sobrevivência para as gerações futuras. Mas compreende-se que Luís Miguel Rosa não pudesse corresponder a exigências de um nível, digamos, olímpico.

Em suma, aplaudindo o que interessa: Luís Miguel Rosa apresenta uma boa ideia e um mérito raro e demonstrado. A ideia, consistente e brilhante, reside na defesa de uma crítica literária mais exigente.

 «Quais são as probabilidades de uma pessoa nascer numa geração tapizada de génios? Em Portugal são mesmo muito boas! A literatura não é uma caridade; o talento é sovina, não partilha os seus dons com as massas por geração – excepto por cá. »

O mérito raro e demonstrado reside na apresentação de dados e no esforço de fundamentação como pouco se tem visto na imprensa publicada. Como o próprio afirma, o sentido global é fundamental para o crítico, e o conhecimento da história literária portuguesa apresentado por Luís Miguel Rosa é enciclopédico. Teme-se que Rosa durma na secção de revistas e periódicos da Biblioteca Nacional. As correcções de erros factuais sobre conferências, prémios e artigos de jornais são impressionantes. Que possa existir alguém disposto a passar horas destruindo os globos oculares diante de micro-filmes e esquecidas edições da Colóquio Letras de 1958 ou ignorados números do Jornal de Letras de 1969, para saber em que ano Natércia Freire foi agraciada com uma medalha ou Artur Portela Filho conferenciou por trás de uma mesa com um arranjo de flores, acerca das técnicas de Robe-Grillet, é constatar um acidente social e contrair uma dívida da qual nunca nos poderemos libertar. Como os limites da racionalidade humana (e já agora, também os da memória auxiliar) são uma realidade confirmadíssima pela ciência, tememos pelo que faltará a Luís Miguel Rosa noutros campos essenciais do conhecimento. Mas deve dizer-se com franqueza: se a especialização pode ser uma virtude, aqui está uma indesmentível confirmação. Já o suspeitávamos, mas é sempre bom poder confirmar como na crítica literária, a exaustividade dos dados aduzidos aos argumentos pode ser muito frutuosa na hora de construir juízos críticos mais exigentes. 

Deixo-vos com um emblema de coragem: 

«Há três anos ainda pude comprar 6 livros dele (José Cardoso Pires) na Leya na Feira do Livro; tenho a edição da BIS d’O Delfim, leve, barata, portátil e livre de prefácios de Gonçalo M. Tavares.»

Com ou sem esquecimento, com Luís Miguel Rosa, há esperança para a crítica literária em Portugal.