sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O sonho não comanda a vida: o que comanda a vida é a estupidez e a boçalidade.

No vasto alfobre que a natureza muito generosamente nos oferece, e que já os poetas românticos julgavam ser o sintoma da bem-aventurada distinção humana, nada mais extraordinário e digno da nossa atenção do que o homem esclarecido.

A primeira característica do homem esclarecido é o seu território, isto é, os jornais e as televisões. Embora pudéssemos julgar que o homem esclarecido, conhecedor exímio das secretas engrenagens da tragédia humana, e habituado a mover as alavancas da história, se pudesse encerrar humildemente na sua sabedoria trabalhadora, veladamente guardando para si os frutos do seu labor, nada mais contrário à estirpe invulgar do homem esclarecido. O esclarecimento é audaz e gosta de voar pelos espaços, espalhando por todo o lado uma clarificante visão do mundo.

A segunda característica do homem esclarecido é o método de raciocínio, fulgurante como uma moto-serra: o homem esclarecido sabe que só existem vencedores e perdedores, e que a sociedade longe de ser uma colmeia (onde existem hierarquias, equívocos, autoridade, coordenação coletiva, ilusão) a sociedade, repito em coro com o homem esclarecido, é um ringue onde a violência da luta deve ser voltada a favor do homem esclarecido, clarificando o lugar que cada um deve ocupar nesta longa cadeia de crocodilos devoradores de lagartixas e lagartixas que pretendem ser crocodilos.


Assim, o chato e insistente leitor, pouco habituado à velocidade fulgurante do homem esclarecido, poderia perguntar: mas se a realidade flui melhor da maneira que o homem esclarecido anuncia (e não como parece fluir, desagradando ao homem esclarecido) por que razão é necessário vir o homem esclarecido convencer a realidade das suas próprias leis? O homem esclarecido, como esclarecido que é, não se prende com os fundamentos do esclarecimento. O homem esclarecido esclarece, e é só, impondo aos ignorantes das férreas leis da psicologia humana - os sonhadores - duas violentas estaladas nas suas sonhadoras faces. E para quê? Para que possam deixar-se de sonhos e servir o homem esclarecido.


Vamos seguir um exemplo. O Nuno Abrantes Ferreira é um homem esclarecido, que por dotes de esclarecimento, encontrou uma fórmula mágica. Convidado para escrever num jornal (não por sonho, não por vontade de ultrapassar a sua triste condição de anónimo ou qualquer outro destempero sonhador, mas pelo simples facto de ser mais esclarecido que nós todos juntos atados a um chouriço) o Nuno Abrantes Ferreira gasta uma parte do seu tempo a esclarecer a sociedade que adora olhar para a lua através do ralo de esgoto onde vive. E assim, o Nuno Abrantes Ferreira, por comprovado domínio de um pensamento esclarecido e das qualidades pessoais (nunca por qualquer sonho insólito nascido na sua santa cabeça, ou na do diretor de jornal que o convidou) decide lançar mãos à obra e limpar a porcaria do nosso pensamento, esbofeteando-nos a face, enquanto olhamos para a lua através do ralo deste esgoto onde habitamos, note-se, por nossa culpa apenas e tão só por nossa grande culpa.

A ideia de que o sonho comanda a vida é o maior disparate enraizado e repetido vezes sem conta numa sociedade que adora olhar para a lua através do ralo do esgoto onde vive.

Quero isto dizer que um dos problemas da sociedade é o esgoto onde vive. E que deve fazer uma sociedade para mudar, segundo o homem esclarecido? Deve sonhar com um projeto para melhorar a sua condição? Deve a sociedade procurar encontrar mecanismos eficientes para fornecer informação de modo a que quem ser fadista o seja, e quem quer ser empregada doméstica seja bem pago, se o trabalho for eventualmente desagradável? Não, deve aceitar as características do esgoto onde vive, pois é preciso que alguém viva no interior do esgoto, limpando (e apenas limpando) a porcaria, o resto são conversas de sonhadores.

O homem esclarecido sabe que não vale a pena perder tempo com a descrição das responsabilidades da porcaria enviada para o esgoto, nem consumir recursos a sonhar com o péssimo sistema de ventilação (formado pelas instituições) que empurra as pessoas para o ralo na vã esperança de que ao contemplar a lua, ao menos o mau cheiro se possa suportar com um pouco mais de paciência. Não, mais vale suportar o cheiro e o esgoto (que são realidades irrevogáveis deste nosso mundo) e limpar a porcaria. Outros, menos avisados, poderiam perder tempo a considerar projetos para transformar o esgoto num local habitável, ou a considerar as razões pelas quais uns estão no esgoto e outros no jardim do esclarecimento, mas isso seria ignorar que o homem esclarecido não se perde em considerações oníricas. O homem esclarecido conhece como ninguém a dureza da vida, conhece cada canto do esgoto (embora não o frequente, pois o esgoto é para os sonhadores) e não pode, de modo algum, ser responsabilizado pela colocação dos ralos. A construção do esgoto é da responsabilidade do espírito santo.


Aqui surge um problema de mecânica psicanalítica, ou seja, não se deve admitir o sonho como instrumento de trabalho. De outro modo, desagradaremos ao homem esclarecido. Na verdade, a pá, a enxada, o ferro de engomar, a vassoura, são instrumentos de trabalho, o sonho não. Bem se vê que não lembraria ao homem do lixo ir dormir para o camião, correndo o risco de a meio da recolha se estatelar no alcatrão e partir a cabeça. Bem vistas as coisas, quem sonha não costuma ser a empregada doméstica, nem o homem do lixo, mas essa espécie absurda, a jovem licenciada que se recusa  a ser empregada doméstica ou o jovem licenciado que se arrisca a ser homem do lixo. Mas atenção, o homem esclarecido é mais sagaz, e arrisca dizer coisas provocadoras, de forma a garantir a sobrevivência da sua atividade como homem esclarecido, não vá deslizar para o esgoto onde estão os restantes licenciados. Ou seja, os sonhos representam aqui o desejo, uma projeção do prazer no trabalho para lá do que se tem à disposição. Como o homem esclarecido perdeu horas a pensar sobre estes assuntos, a limpar a porcaria resultante do seu potente motor do seu raciocínio para arrepiar caminho até à saída do esgoto, perdão, de um raciocínio lógico e empiricamente sustentado, lança sobre a sociedade a chicotada da sua crítica.


Recuperando uma perspicaz e inovadora visão do humano, o homem esclarecido sabe que o trabalho é o contrário do prazer, como o pragmatismo é o contrário do sonho, e a vida é o contrário da morte, para citar Lili Caneças, outro homem esclarecido. Há apenas uma pequena dificuldade: embora o valor económico seja uma função do custo, não é muito fácil determinar a relação entre o custo e o sacrifício. Por exemplo, custa-nos toneladas de sacrifício ler o homem esclarecido, e ainda assim, ele encontra-se justamente gratuito ao alcance de um clique. Significa que alguém deve estar a olhar para a lua em algum esgoto para que o homem esclarecido chegue até nós, gratuito, e com tanta facilidade. Isto levaria os mais distraídos a pensar que talvez seja complexo determinar uma relação clara entre sacrifício individual e custo social, pois ainda que, do ponto de vista microeconómico, uma valorização monetária do trabalho (determinada pela utilidade num ponto do mercado) possa beneficiar uma empresa, pode, no entanto, prejudicar psicologicamente o agente, e a curto prazo lesar quer o agente, quer a empresa que o contratou. Ao abraçar uma profissão indesejada, e mesmo com uma lobotomia de pragmatismo, de forma a servir (sem ais, nem uis) os planos do homem esclarecido em troca de pagamentos monetários, pode acontecer que um indivíduo esteja a tomar a decisão errada, e se isto acontecer com muitos indivíduos, podemos ter um conjunto social a afundar-se num pântano de pragmatismo, abraçando mortalmente a quebra de produtividade exponencial. Há continentes de demonstrações deste género na economia das organizações como existem oceanos de prova da falta de correlação entre curvas de incentivos e produtividade. Todavia, o homem esclarecido está atento, e não gosta de atividade intelectual que não produza estrondo ou efeitos moralizadores. Não se perde em sonhos ou especulações e faz muito bem.


Um sonhador e ignorante chamado Hayek, em vez de escrever crónicas num jornal de referência (atividade para a qual não teria gabarito) decidiu dedicar-se a analisar os sistemas de preços. Considerou-os como uma máquina automática para sinalizar fluxos, através da troca de informação descentralizada, de forma a garantir uma melhor distribuição dos recursos. Esta máquina seria, na imaginação do sonhador e destrambelhado Hayek, uma máquina dinâmica, e a esta conclusão inútil chegaria facilmente o homem esclarecido se não estivesse justamente ocupado com coisas muito mais importantes. O ponto crítico deste sistema, os preços, também funcionariam como incentivos psicológicos, capazes de relacionar as oportunidades de um dado trabalho com os indivíduos interessados em produzir esse trabalho. Mas isto são balelas, pois o homem esclarecido sabe que as máquinas complexas, como os aviões, são típicas dos sonhos dos frequentadores do esgoto. Por isso, há apenas que trabalhar, mesmo que isso seja muito pouco compensador de acordo com as preferências do sonhador (não importa, afinal de contas, estamos num esgoto) e não perder tempo, por exemplo, com as instituições que garantem a eficácia de um sistema de preços como distribuidor de informação. Que importa que nos jornais esteja um burro do tamanho da Rússia? O homem esclarecido sabe que a realidade garante que isso nunca poderá suceder, pois os jornais, como empresas sujeitas à lei do esgoto, nunca permitiriam sonhadores, ou seja burros do tamanho da Rússia. Os jornais só recrutam indivíduos dispostos a viver na porcaria sem olhar para a lua, ou seja, candidatos a serem homens esclarecidos.

Os portugueses, em vez de meterem a mão e começarem a limpar a porcaria que têm à volta para arrepiar caminho até à saída, preferem sonhar que é possível sair do esgoto com asinhas. Ou que alguém (quase sempre o Estado) os deve ajudar.

Não se pense aqui em qualquer relação entre a mecânica e a engenharia aeronáutica, coisa de sonhadores de asinhas e pessoas que gostam de viver no esgoto. Não, aqui ninguém deve pensar em asinhas, pois o engenho é uma coutada do homem esclarecido e o homem esclarecido (que não se conta entre os portugueses) nunca conta com a ajuda do Estado, que é a imagem diabólica do próprio satanás e o inimigo do género humano.

O português quando nasce, nasce sempre para ser grande. Mas por qualquer razão nunca passa de mais um pequenino.

Sim, isto é verdade, mãe do céu, isto é tão verdade como as maminhas da virgem terem alimentado os divinos lábios do nosso salvador. O português sonha sempre com coisas grandes, é por isso que tem eleito estadistas de nomeada, autênticos pais da pátria que só se medem com o próprio Júlio César; é por isso que o português compra livros num impulso homérico e exige dos jornais o rigor, a erudição, a elegância e a consistência que os caracterizam; é por isso que o português tem suportado no seu lombo as maiores tramoias dos empreendedores e das pessoas altamente valorizadas pelos prémios monetários; é por isso que o português tem dificuldade em ultrapassar o liceu; é por isso que o português de educação superior, encolhido e de cabeça baixa, vai para o esgoto sonhar. É precisamente porque nunca desiste, e isso obriga o homem esclarecido a prestar um serviço a Portugal e a dizer, com altruísta convicção: o que o português precisa é de saber desistir.

No entanto, o homem esclarecido nunca facilita, pois domina os segredos da narrativa, os truques da retórica, por forma a aguçar a inteligência do seu leitor, que certamente não é português, mas vietnamita. Qual golpe de teatro, ficamos a saber, pela mão do homem esclarecido, que o português apesar de nascer para ser grande (pois o código genético do português vem programado de acordo com as ideias encomendadas à seleção natural pelo homem esclarecido), o português, repito, malgrado as altitudes forjadas na sua bigorna genética, nunca vai a lado nenhum e é o autêntico preto da Europa. E porquê? O homem esclarecido, aqui, indignado por ver desperdiçado o potencial dos seus impostos, sabe e vocifera: o português falha só por culpa dele, o português, e só falha porque se põe a olhar para a lua em vez de ir passar a ferro as camisas do homem esclarecido, homem esclarecido esse, que do pináculo da pirâmide social, por mérito e só por mérito da sua capacidade, há-de conseguir endireitar este desgraçado do sonhador português que, nascendo para ser grande, acaba sempre pequenino, sempre por sua própria culpa, nunca por culpa e responsabilidade do homem esclarecido.

Deixem-me citar um pouco mais longamente o homem esclarecido, e deleitar-me com a coragem dos pragmáticos. Aqueles que por esforço mental e impoluta constituição moral, aqueles que por capacidade de tomarem sobre as suas costas as dores dos seus erros (poucos muito poucos, note-se) e até os erros dos seus irmãos de esgoto (muitos, mesmo muitos) aqueles, homens esclarecidos, conscientes de que apenas os melhores podem (e devem) ficar com as melhores profissões. É com lágrimas nos olhos e um coração contrito que abraço este meu irmão da luz e da retidão, Nuno Abrantes Ferreira, o homem da gelatina e um distinto homem esclarecido:

O mundo parece conjurar contra este ser predestinado a conquistar um lugar ao sol, mas deixado ao relento não se sabe muito bem por quem nem pelo quê. Estes Rómulos de Carvalho de pacotilha esquecem-se que eles até podem ser bons e querer muito uma coisa. Mas o mais normal é existir alguém ainda melhor e a querer ainda mais do que eles. O que é uma chatice. Porque isto de serem só os melhores a ficarem com as profissões com mais garbo é um atentado à húbris lusitana.

Respire o caro leitor, respire nestas alpinas atmosferas, e olhe à sua volta. Quem vê? Ninguém, ninguém, pois só aqui estamos nós (eu, o leitor e o excelso Nuno Abrantes Ferreira). Todos os outros, os sonhadores e portugueses, soçobraram a caminho, indolentes e preguiçosos, caíram no abismo da desculpa, pereceram na armadilha do amor próprio, tropeçaram no engano do sonho, desabaram na trapaça do facilitismo, foram engolidos por uma vida de superiores possibilidades. Mas agora que aqui estamos, não paremos, não paremos, e subamos cada vez mais alto, quem sabe até ao próprio sol.

Parece-me uma “lapalissada” que quem é bom chega lá. E quem é menos bom fica com o que há. Feita as contas: cada um tem o que merece. E não há nada de errado nisso. Bem pelo contrário. É justo e socialmente desejável que esta competitividade impere sobre as quimeras de cada um.

Não parece nada uma lapalissada, não devemos tolerar este excesso de humildade ao homem esclarecido. Nunca os Plutarcos ou os Sénecas trilharam estas veredas de refrescante sabedoria. Os méritos do homem esclarecido são para ser reconhecidos, isto se não queremos viver para sempre num esgoto. Quem é bom chega lá e quem não é bom, que vá para o caralho, olha os grandes filhos da puta, a quererem disputar o território de quem é bom. E não há nada de errado nisso. Mas queríamos competição, concorrência? Uma empregada doméstica a querer destronar a Mariza? Um trolha a querer estudar Física? O homem do lixo a comprar um livro de Gogol? Uns a quererem subir quando o jogo já vai a meio? Quem começa em baixo é baixar a cabeça e desistir já. Mas que caralho é esta merda? Alguma rebaldaria? A feira de Carcavelos?

Chiu, desculpem, não devia ter falado no mercado, uma coisa dinâmica. O homem esclarecido não gosta, o mercado é  no fundo o império do homem esclarecido, mas o mercado sem oscilações, sem sobressaltos, sem reviravoltas entre empregadas domésticas e fadistas. O mercado, estático, equilibrado, gelado até ao osso, hirto que nem uma chapa de ferro, sempre de mão dada com o Estado (essa criatura diabólica que por vezes, em vez de servir o homem esclarecido, se põe, infame, a resgatar pessoas do esgoto). Pois é socialmente desejável que a distribuição socialmente social da realidade real impere sobre os sonhos de cada um. Quero agora pedir desculpa ao leitor pois estão aqui a puxar-me o braço. Só um momento.


- O meu nome é Gertrudes do Caralho Quetafoda e Àgrande e queria fazer uma pergunta. O meu caro amigo podia por acaso informar-me como decide a sociedade quem é bom e quem não é bom? E já agora, também queria perguntar ao Senhor Homem Esclarecido, Nuno Abrantes Ferreira, se existe uma forma para os que não são bons poderem entrar, mesmo que a gatinhar, no país dos que são bons, mas isto sem recorrer aos sonhos?

Claro que o homem esclarecido também sofre as suas contrariedades. Assustado com as altitudes, afinal o homem esclarecido é espetacular e muito bom, mas não deixa de ser humano. Eis que o homem esclarecido é obrigado a descer da categorização do bom - consciente de que acaba de se estatelar na sua lógica da batata - e enfrentar outro caminho, mas sempre com a coragem que caracteriza o homem esclarecido.

O sonho comanda a vida dos poetas. Para o resto da plebe, sonhar é funesto. E é o acordar que importa. É o deixar de ser infantil. É o não ter medo de desistir quando todos dizem “não desistas”. É o realizar que há alguém melhor que nós e que, por isso, há que fazer outra coisa. Mesmo que isso implique fazer algo nos antípodas do que se estudou ou receber um terço do que se sonhou (ou mesmo nada nos primeiros tempos). Porque cada um é pago por aquilo que vale. E a verdade é que todos começamos por valer muito pouco. E não é por se ter uma vulgar licenciatura à bolonhesa que as coisas deixam de ser o que são.

Portanto, o juízo dos outros (não desistas) não tem qualquer interesse, pois decidimos essencialmente sobre valores monetários (cada um é pago por aquilo que vale, ámen, ámen) valores monetários esses que são oferecidos pelos anjinhos do céu e não pelos outros, os tais que, segundo parece, dizem «não desistas» (mas que não devem contar) e que apenas podem, segundo rezam as más línguas, aumentar de número a poder de marketing e vontade sonhadora (não, não, isto só vale para os frutos do trabalho do homem esclarecido, para os outros, os potenciais consumidores não existem nem podem ser convencidos). Respiremos fundo. Em suma, temos uma infinita dívida de gratidão, e devemos por isso mesmo agradecer ao homem esclarecido o conhecimento de que existe uma relação linear entre receber um terço do que se sonhou e desistir do sonho onde não se recebe nada. O que não nos deve deixar baralhado. Se a fadista não recebe nada como fadista  deve rapidamente procurar alguma coisa onde receba, mesmo que seja um terço do que sonhou. Está fora de questão explorar os sonhos dos outros potenciais frequentadores de esgoto e consumidores de fado, não, nada disso, estão todos obrigados a ir limpar a porcaria e a engomar as camisas do homem esclarecido.


Que exista uma relação muito complexa entre a qualidade do que se faz, a sua valorização no mercado, a satisfação pessoal retirada de uma atividade profissional e o estatuto social dessa mesma profissão, é coisa que jamais deve preocupar o homem esclarecido. Caso contrário teria que ir estudar o problema, e não poderia escrever num jornal, tendo que reconhecer uma tremenda falha na realidade das coisas serem o que são. Além do mais, o homem esclarecido não poderia permitir que um jornal contratasse um burro do caralho e o remunerasse (ou autorizasse) a derramar sobre o público a sua burrice, falta de respeito e deselegância, fazendo prova cabal de uma profunda ignorância sobre a complexidade das coisas, e comprovando que os péssimos, os maus, e sobretudo as lagartixas que têm a mania que são crocodilos, desde que munidos da sua vontade e desde que devidamente instigados pelo «não desistas» de burros semelhantes (mas com poder de decisão nos jornais), sempre podem chegar onde pretendem e injetar mais um pouco de porcaria no esgoto, cumprindo os seus sonhos, que neste caso não são sonhos mas iluminações de homem esclarecido. Esta realidade (que sai da minha estúpida cabeça sonhadora) nunca a poderia tolerar o homem esclarecido, por ser um homem esclarecido e assim ser socialmente desejável, a bem da paz coletiva e das coisas serem o que são.

Mas calma. Se o caro leitor tem uma licenciatura à bolonhesa (reforma estrutural que como se sabe, se deve aos portugueses e ao seu estúpido desejo de sonharem com a lua) então pode ficar o caro leitor consciente de que as coisas nunca vão deixar de ser o que são. E é com uma rejubilante alegria e uma redobrada confiança no futuro que sou forçado a reconhecer que, na verdade, as coisas nunca vão realmente deixar de ser o que são. Ou seja, nunca os burros, estúpidos, arrogantes e irrefletidos vão deixar de pisotear tudo e todos com a boçalidade da sua ilimitada confiança no parco conhecimento que manifestam ter, e nunca os inteligentes, persistentes, talentosos e sensíveis vão ter uma passadeira vermelha estendida até ao longínquo dia em que se manifesta o seu génio. Estamos bem os dois, o homem esclarecido Nuno Abrantes Ferreira, no seu pragmático e espero que suficientemente remunerado triunfante estardalhaço, e eu, alf, o sonhador não desistente, a malhar no ferro frio da realidade, neste beco escuro, nesta oficina esconsa, nesta minha teimosia mal remunerada, mas sempre sonhando com a mais que justa, mas provavelmente tardia e inútil, consagração.

 
Cristiano Ronaldo, a chupar um chocolatinho enquanto sonha em mandar para o caralho os Nunos Abrantes Ferreira deste mundo.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014