quarta-feira, 14 de maio de 2014

No fim dos tempos, faremos as contas.

As artes elocutivas são a eloquência e a poesia. Eloquência é a arte de exercer um ofício do entendimento como um jogo livre da faculdade da imaginação; a poesia é a arte de executar um jogo livre da faculdade da imaginação como um ofício do entendimento.

Emanuel Kant, Crítica da Faculdade do Juízo, citado por Frederico Nietzsche no seu Curso sobre Retórica.

Porque o natal é quando eu quiser e boa sorte aos vermelhos.


Agora desculpem qualquer coisinha porque vou voltar para o buraco de onde nunca deveria ter saído. 

terça-feira, 13 de maio de 2014

Lazar Markovic como exemplo da narrativa combinatória, espelhando a incerteza da vida, e dando alento aos que fundamentam a sua esperança no casamento entre a beleza e a eficácia.



O elogio da derrota orgulha-se de ser consistente com a verdade dos factos, nomeadamente a inexistência de capacidades de previsão sobre o futuro (e mesmo descontando as merdices do libanês Nassim Taleb) afirmando, nomeadamente, e também, a total ausência de instrumentos que nos permitam identificar logicamente, ou pelo menos demonstrar, a trajetória dos carris onde se desloca, insidiosa e vertiginosamente, o comboio da realidade, um meio de transporte demasiadas vezes atrasado. Se eu fosse uma mulher e a natureza fosse ainda mais flexível do que tem mostrado ser, teria encontrado finalmente o sentido da minha vida: casar com Lazar Markovic; acontece que o mundo é muito mais interessante.

Foto: twitter/@Deyasrb

A vida custa muito mas para medir o custo da vida seria necessário estar na posse de meios de comparação apropriados, o que desde os comentários de David Ricardo aos Princípios de Economia Política do reverendo Malthus, um gajo a quem o sexo fazia impressão, se tem provado tarefa mais complexa do que marcar Lazar Markovic (e veja-se, nomeadamente, aqui, o efeito da aliteração, ou da anáfora, ou alguma coisa desse género, nunca soube essas merdas, nos testes de português interessava-me sobretudo o caminhar dos relógios, objetos onde se esconde a morte, segundo Andrei Béli).

„Svaki posao je težak - kako nekog radnika za  mašinom, tako i nas igrača na terenu. I fudbal je  rudarski posao. Svim radnicima

O facto de figurar no título deste blogue o vocábulo derrota torna-nos especialmente habilitados para compreender a complexidade do mundo. No entanto, não pretendemos vigarizar o leitor com receitas para comer menos e dormir melhor, pois como diria Marcel Proust, não estimamos demasiado a vida, ou só a estimamos na justa medida em que nos permite controlar a dor e estar diante da beleza como Santa Teresa diante do espírito de Deus (e vamos na segunda alusão a paixões homossexuais, a nossa homenagem ao inacreditável paneleiro recentemente vencedor da Eurovisão). Para que não restem dúvidas sobre a magnitude da nossa (humana) ignorância, apresentamos aqui um belíssimo conjunto de fotografias, onde a referida complexidade do mundo está bem patente, nomeadamente nos resultados, decorrentes da reunião entre: a ebulição balcânica, que tem sido para a ciência política o que o supositório representava no passado para o homem com febre, e os efeitos socio-económicos da especialização do trabalho, nomeadamente, quando situada em contexto desportivo de alta-competição, sobretudo depois da vandalização jurídica, por meio da lei Bosman, da virtude específica de cada função humana, neste caso, a violação das idiossincracias (palavra que detesto) do futebol baseado em clubes regionais, de onde se destaca o mais do que evidente choque entre a escala e os interesses das comunidades étnicas, tribais e outras, as unidades políticas formais, e a circulação de capitais (confrontar aqui a República de Platão e a interessante discussão entre Sócrates e Trasímaco sobre a virtude específica de cada função humana em relação com o binómio justiça/injustiça).

Lazar Marković i Darko Lazović

Não quero avançar com efabulações dickensianas sobre as reviravoltas do destino, alçando o meu olhar agudo de felino sobre os múltiplos e imundos altares dos ídolos, onde se derrama o sangue dos inocentes (frase que ouvi há pouco nos comentários às pornográficas cerimónias de Fátima) nem pretendo fazer chorar as adolescentes sonhadoras, as professoras infelizes e as viúvas solitárias, com as peripécias de uma qualquer criança resistente aos golpes da sorte, e muito menos embarco em apologias do trabalho, do esforço e da coragem, para gáudio do empresário bronco, do merceeiro vigarista ou do gestor lunático. O meu propósito é muito mais simples. Embora na literatura se tenham travado obscuras batalhas sobre as razões últimas do sucesso individual (esquecendo que a análise devia incidir antes de mais sobre as características semióticas do texto e a economia da informação) e tendo em conta que o próprio Samuel Johnson se pronunciou a favor do dinheiro como objetivo último de todo o escritor (preposição por mim violentamente aplaudida) está por descodificar quais os meios que em última análise favorecem uma vida tranquila ao profissional da combinatória com uso do alfabeto (um dos vários domínios onde a fama restabelecerá o tempo que me foi tirado em vida). Na ausência de certezas, temos defendido que ao autor, como a todo o ser vivo, em geral, dotado de um sistema de representação dos problemas, isto é, um sistema nervoso integrado, não resta outro caminho senão inventar a sua própria narrativa, contando que só importa o sucesso em dotar essa máquina (a narrativa) das mais acabadas competências (uma hipótese aqui servida apenas como exemplo, o caro aprendiz, por favor, não se deixe esmagar e construa o seu próprio caminho, resistindo, até à tortura se preciso for, aos cursos de escrita criativa dos analfabetos que por aí circulam) competências sintetizadas por Calvino nos cinco esplendorosos valores: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade, curiosamente, características que fazem de Lazar Markovic uma concretização biológica dos princípios universais da arte.

O que é bonito, e assustador, é que desde tempos imemoriais parecemos ignorar que o mundo pouco mais é do que um violento e mortal combate entre narrativas, dominando a tendência cíclica para formar rebanho em redor da narrativa vencedora. Há entre nós pessoas (se é que os economistas clássicos, os liberais, os socialistas, os sociais democratas e os marxistas são pessoas) convencidas de que as narrativas vencedoras dependem da compreensão das regras, ou seja, da capacidade dos jogadores em tirarem partido dessas regras na construção das suas narrativas, vencendo o jogo. Quanto a mim, estou convencido de que não havendo qualquer coerência ou relação determinada entre as regras e o sucesso das narrativas, pois as regras, meus caros leitores, estão sujeitas ao próprio jogo humano, resta aos jogadores a construção artificial das suas próprias regras, e das respetivas narrativas adaptadas (ou expondo) essas novas regras, nomeadamente, a capacidade de convencer os outros jogadores de que estamos a respeitar as mesmas regras. Isto não significa negar os limites físicos do mundo, significa compreender que muito pouco do que conta para os humanos se prende com a mera descrição e utilização dos limites físicos do mundo. As narrativas vencedoras são em grande medidas as que têm capacidade de fundar novas regras, inventando um  novo jogo. Os limites não são dados pela natureza mas limitados pelo desejo dos outros em construírem máquinas e ambientes, restando-nos chegar a um acordo onde predominem valores universalmente pirosos e espectaculares como o belo, o bem, de acordo com a ética kantiana, etc, etc, etc.


Lazar Marković i Darko Lazović

A razão pela qual o jogo nos tem atraído, nas suas mais variadas formas (e deixaremos por agora as razões que explicam a predominância de uns jogos sobre outros, nomeadamente a adaptação da sua escala, onde evoluem as possibilidades combinatórias, aos limites dos meios de comunicação de massas, sobretudo os de controlo único) decorre em grande medida da imprevisibilidade. O facto de o maior e mais promissor avanço da economia moderna, que como até saberão os adeptos do Sporting, geralmente gestores de bancos e outros bastiões do grande capital, se ter devido ao casamento feliz e fecundo da teoria clássica do mercado com a aplicação da teoria das probabilidades ao esquema do jogo, tendo sido erigido sobre a base da imprevisibilidade, resultante da escalada infinitesimal dos efeitos do cálculo mental sobre as jogadas do adversário (e por isso necessariamente paralelo, analógico e muito limitado e não necessariamente serial e rigoroso) devia ser suficiente para não estimular a arrogância das pessoas sobre o horizonte aberto do futuro, nomeadamente ao nível dos jogos onde estão inseridos (um conceito espetacularmente introduzido por Jorge Jesus) muito mais do que dois jogadores, e onde por isso a escalada de complexidade ameaça tornar qualquer projeção de resultados numa rábula humorística.


Marković: Imamo dovoljno samopouzdanja da pobedimo Hrvatsku!

Os ambíguos e perturbadores acontecimentos desta época futebolística, nomeadamente a cavalgada fulgurante de uma mundialmente famosa equipa de futebol, esfarrapando impiedosamente as mais claras e férreas previsões dos analistas, sobretudo depois do auspicioso mergulho nos abismos do insucesso, da derrota e até, o senhor seja louvado, da humilhação, servem, por si só, o propósito público deste blogue (na minha perspetiva) e a saber, a consagração da vontade humana, quando guiada pela sabedoria e a beleza, como o único fundamento lógico do futuro, e por isso, negando qualquer possibilidade de discursar sobre esse mesmo futuro, pois como futuro que é, encontra-se sempre submetido a vontades individuais múltiplas e a tão complexas relações de causalidade, impossíveis (até ver) de determinar num único ponto de vista (nem sequer com modelos computorizados) razão pela qual me tenho abstido de falar, além de estar cada vez mais convencido, tal como aqui foi sugerido pelo ngonçalves, que os meus amigos deviam começar a pagar pelas toneladas de sabedoria, fruição estética (e trabalho, note-se) aqui fornecidas gratuitamente para pornográfico e escandaloso enriquecimento injusto e ilícito dos merdosos que por aí andam a vender as tecnologias de comunicação digital como uma democracia de oportunidades.

Abrindo um importante parêntesis, gostaria de relembrar às crianças que certamente nos lêem com rejubilante afinco, como a transformação da tecnologia e as suas consequências na organização do ambiente humano não têm, por si só, nenhuma relação com a percepção do sofrimento e muito menos com a realização da justiça, se essas tecnologias (tão democráticas como a carta ou a imprensa mecânica) não forem submetidas a uma crítica sobre os seus custos de acesso, dados os evidentes entorces (sempre) implícitos no livre (aleluia, aleluia) funcionamento de qualquer acção humana (a começar na lei da gravidade), nomeadamente, a velha confusão entre a aparente consulta da maioria e a verdadeira convicção da maioria (a informação caracteriza-se por ser imperfeita, ou numa linguagem mais técnica, comporta ruído) para não falar de que tal como as ovelhas, a maioria também comete erros ou segue caminhos errados (errados), devendo todos os sistemas inteligentes (como muito bem têm demonstrado os engenheiros) possuir um alerta contra os erros de apreciação, sejam eles decorrentes da minoria ou da maioria, o que implica confiar na repetição de processos críticos, e na ampla e profunda avaliação das decisões. Seria de ter sempre em conta o ambicioso projeto do iluminismo kantiano, uma coisa que ou dá nazismo, ou dá a paz perpétua universal, dilema trágico que não representa motivo para fugirmos, sem mais, e com o rabinho entre as pernas a buscar conforto nestas semi-orientalices da democracia selvagem e do sistema de representação baseado, como se sabe, em avultadas quantidades de trabalho escravo além da decapitação intelectual de uma significativa parte dos representados. Fecho aqui este importante parêntesis.

De um ponto de vista da minha obra como escritor que não se rebaixa à estupidez, a verdade é que o mais potente motor dos sucessos imortais, se constrói com válvulas engenhosamente desenhadas pela humilhação, alimentando-se desse combustível precioso, a derrota. Como o próprio e grande Simon Leys referiu, aquando da recepção de um qualquer prémio, é bem provável que o maior escritor não estivesse ali a ser agraciado, mas tivesse ainda pela frente uma ou duas décadas de humilhação em busca de editor (e não me venham agora com as potencialidades tecnológicas do computador, isso é outra técnica relativamente à qual os jovens do futuro, assim o queiram, forjarão a sua própria literatura). Farto da remuneração simbólica (os marxistas e os antropólogos que se fodam) e muito adepto da liberdade combinatória e descritiva das unidades de pagamento monetário em base decimal, pretendo um ambicioso casamento entre as altitudes de um texto que seja uma máquina narrativa original, fulgurante, bela e eficaz (à semelhança de Lazar Markovic) e os meios de subsistência suficientes para me poder rir, com tranquilidade, sempre que me chegar aos ouvidos a consagração de um qualquer piolhoso, que acossado pelo medo tenha escolhido um caminho mais atrapalhado, feio, interesseiro, obscuro e dependente das forças malignas e irracionais do ambiente.

Permitam-me que finalize com uma citação longa, a ver se ao menos levam daqui alguma coisa:

Lucrécio via na combinatória do alfabeto o modelo da impalpável estrutura atómica da matéria; hoje cito Galileu que via na combinatória alfabética («as várias combinações de vinte pequenos caracteres») o instrumento insuperável da comunicação. Comunicação entre pessoas afastadas no espaço e no tempo, diz Galileu; mas temos de acrescentar: comunicação imediata que a escrita estabelece entre todos os seres existentes ou possíveis.

Como em cada uma destas conferências me propus recomendar ao próximo milénio um valor que me seja especialmente caro, hoje o valor que pretendo recomendar é precisamente este: numa época em que triunfam outros media rapidíssimos e de raio de acção extremamente amplo, arriscando-se a reduzir toda a comunicação a uma crosta uniforme e homogénea, a função da literatura é a comunicação entre o que é diferente pelo facto de ser diferente, não embotando mas sim exaltando essa diferença, de acordo com a vocação da própria linguagem escrita.

Italo Calvino, Seis Propostas para o próximo milénio, p. 61




O Senhor vos abençoe.