quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Gonçalo M. Tavares: investigação de um sucesso inevitável (com um bocadinho de inveja à mistura)

«Estar vivo é o contrário de estar morto» 
Lili Caneças - elaborando sobre um provérbio chinês


O nosso companheiro de luta, o Ouriquense, desafiou certa vez o mundo dos vivos para uma crítica à obra de Gonçalo M. Tavares (GMT), com o estimulante mote: «Estará a Crítica de Rastos?» Ora, do nosso ponto de vista, a resposta é simples: afirmativo, a Crítica está efectivamente (e nomeadamente) de rastos! Pelo que somos chamados a dizer: Presente!

Falar sobre a obra de GMT é falar de toda uma galáxia de conceitos sugados ao universo da ciência, conceitos capturados de forma selvagem, para serem depois cruzados em cativeiro com um moralismo literário da espécie mais elementar, concretizado em expressões como a «psicologia do mal». Oremos irmãos.

Primeiro aspecto fundamental a reter: não só a obra de GMT é muito insípida em relação a questões de ambiguidade do comportamento, como é mesmo brilhantemente pífia no que respeita ao problema do mal. Há mais considerações relevantes, no que respeita à antropologia da maldade, nos comentários criminais de Moita Flores ou Carlos Anjos nas madrugadas da CMTV do que em toda a obra de GMT.

Dito isto, de que forma um académico sem cadastro, conhecimentos de criminologia, currículo político ou experiência de guerra, teria algo de interessante a dizer sobre a maldade, não se baseando em quaisquer fontes citadas? É o mistério que pretendemos desvendar. Em todo o caso, será possível uma literatura sem fontes, ou como diria Nabokov, sem factos? Não me parece. Com isto, não negamos a possibilidade de um escritor ficcionar (ou friccionar) situações no âmbito da psicologia do mal e dos usos da racionalidade (seja o panorama dos Campos de Concentração, a Revolução Russa, um passeio de sandálias carregando a fotografia de Kafka pelo deserto do Utah ou mesmo um jantar de grelhados com molho à espanhola, numa esplanada de Massamá na companhia da Cristina Ferreira). Mas fazê-lo, apelando a ganhos de conhecimento (as famosas explicitações sobre - e passo a citar  - a condição humana), sem orientar o leitor sobre as fontes ou o panorama da literatura (trau) sobre o assunto, já me parece um exercício no mínimo insólito. Assim também eu.

Claro que o escritor pode apresentar os factos como lhe aprouver - é essa a liberdade maliciosa (trau) da literatura. Contudo, ao abordar tão directamente uma conhecida área da Filosofia, como seja a Ética ou a própria Filosofia da Linguagem, e ao trabalhar tão ingenuamente uma área das Humanidades como a História da Ciência, GMT está a percorrer um campo armadilhado, e é incompreensível que referindo tantas vezes GMT a expressão «investigações» (oremos) para caracterizar o seu trabalho - e tendo publicado um inenarrável livro intitulado Breves Notas sobre as Ciências -, a crítica, em vez de confrontar GMT com um discurso racional e informado sobre as - e passo a citar - investigações nas áreas respectivas abordadas pela sua obra, embarque nas obscuridades típicas da astrologia. Perdoem-me as pessoas mais sensíveis, mas em matéria de Ciência, GMT apresenta o mesmo nível de conhecimentos de uma Alexandra Solnado. E não se trata de uma questão de mais ou menos notas de rodapé. Como disse certa vez uma dama espirituosa da Corte de Luís XV, o problema de Madame de Chatelet é falar de ciência para pessoas que não entendem nada de ciência. E notemos que a tradução dos Principia de Newton, concretizada pela senhora Chatelet nos intervalos das suas cambalhotas com Voltaire (bendito seja), era até há poucos anos ainda a única tradução integral para francês das referidas investigações do filósofo de Cambridge.

Veja-se, a título de exemplo, o absoluto silêncio sobre as riquíssimas e férteis áreas da AI e da Ciências da Computação, tão imprecisa e desajeitadamente tratadas por GMT em muitos dos seus livros. Também nesta matéria sugiro desde logo uma comparação, por exemplo, com Italo Calvino (que escreveu páginas admiráveis sobre os desafios colocados pelo artifício e a máquina). É bom de ver, como síntese provisória, como GMT labora, com grande lucro, nos férteis territórios da indigência geral em matéria de ciência e filosofia, peço desculpa a todas as pessoas esforçadas.

Na verdade, estamos diante de uma obra saturada de problemas, sobre os quais existem toneladas de críticas estruturadas e publicadas de forma acessível, sem que os críticos tenham mostrado o menor interesse na resposta a duas singelas perguntas. 1) Se GMT pretende ter ambições epistemológicas e não meramente ficcionais, o que diz a Epistemologia, a Lógica ou a Filosofia da Ciência sobre os problemas (ou soluções?) ou teorias apresentados por GMT nas suas obras? Se a resposta a esta pergunta for invocar os célebres jogos de linguagem de Wittgenstein, estamos conversados. Vamos todos nadar para o rio Trancão que sempre é melhor.

Quero dizer, aos mais distraídos, que tanto a Lógica como a Filosofia da Ciência há muito integraram toda a complexa teia de problemas sobre a relação entre teoria, ficção/narrativa e verdade, pelo que nem um suposto estatuto de excepção do discurso ficcional, salva um autor com ambições epistemológicas da necessária crítica. Se GMT não pretende acrescentar nada de novo a esses campos, de um ponto de vista, diríamos (trau) técnico, mas simplesmente explorar o mundo ficcional (ou o mercado de doutorandos acéfalos, calma camaradas), qual a razão para se insistir ad nauseam nessas características, ditas racionais, em vez de se convocar a Estética, a Ciência, e a própria Teoria Literária para o julgamento da sua obra?

Eu tenho uma resposta, embora seja melancólica. As pessoas não têm tempo para ler, e mesmo quando têm algum tempo, sabem da existência de coisas mais relevantes, como esgalhar no pessegueiro ou escrever uma carta de amor. Ou simplesmente ir ler na diagonal uma obra de GMT  e produzir um qualquer disparate a propósito, para progredir numa carreira Académica de Humanidades ou conceder uma entrevista ao suplemento cultural de um jornal de referência. E muito justamente, note-se. Parvo somos nós que ainda insistimos no conteúdo da verdade.

É curioso notar como, apesar do propalado conteúdo Lógico ou Epistemologicamente (trau) crítico das obras de GMT, as sinopses, os artigos, as teses de doutoramento e mesmo os comentários dos leitores, acabem sistematicamente a falar de problemas morais, numa insípida crítica das «máquinas» e outra tralha pós-moderna. Em grande medida, isto deve-se ao facto de o binómio mal/bem ser a mais elementar das dicotomias e também o mais fértil tópico literário, em termos de ganhos de curto prazo, na história da literatura.

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Pequeno Excurso sobre eficácia literária 
(o leitor mais interessado em imagens pode saltar para a próxima figura)

Na percepção do cidadão comum, a filosofia pós-moderna foi olimpicamente engolida pelas ciências, e isso tem consequências em prestígio e em poder de compra, a preços de 2017. Desse modo, numa pirueta circense mas eficaz (o próprio Teatro Praga não se tem saído financeiramente mal, segundo julgo saber) os departamentos de Filosofia, mesmo derrotados no campo da análise da língua (devido ao extraordinário avanço das neurociências e das linguagens artificiais) migraram para os Departamentos de Literatura, onde existia um vazio de tralha teórica, precisamente pelo facto de quase todos os grandes especialistas em literatura, ou seja, os grandes escritores, se estarem positiva e aritméticamente a borrifar para teorias de quinta categoria sobre o que é a literatura.

Todos nós sabemos que a invocação da racionalidade, da lógica, de uma certa estrutura semântica metamatemática, ou simplesmente proposicional, funciona na obra de GMT como mecanismo retórico e não como método sistemático e crítico no tratamento dos problemas abordados. É divertido constatar como os críticos (e mesmo alguns especialistas) não conseguem (ou não querem) dar por isso. Ora, este magnífico desvio em termos de estrutura textual - do imaginário novelesco e da história do romance - para o campo da epistemologia pós-moderna, é no fundo, uma fusão entre géneros literários, e nada tem a ver com a Lógica, e muito menos com a Matemática. Escapa a todo um grupo de tocadores de bombo com elogio fácil que, justamente, num nível elementar (precisamente aquele onde GMT se exercita) a Lógica não se funde facilmente com a experiência subjectiva.

Se existe qualidade Lógica na obra de GMT, isso desde logo devia ter uma consequência evidente: absorvida a mecânica da operação lógica (ou das suas operações lógicas)  não necessitaríamos de repetir o exercício dezenas de vezes para provar a sua consistência, ou entraríamos na campo da estatística baiesiana. Porque não sintetiza GMT a sua reflexão lógica e crítica sobre ciências num livro de compreensão universal? A resposta é evidente: porque não sabe nada de Lógica e porque o seu negócio se assemelha menos à actividade de um Herbert Simon ou de um Frank Ramsey do que às elaborações estético-terapêuticas de um vendedor de Calcitrim.

Concluindo uma primeira ideia: a obra de GMT utiliza todo o arsenal conceptual pedido emprestado às indisciplinas saídas desse arraial de charros e mamalhudas, o Maio de 68. Já lá iremos aos exemplos, por agora interessa perceber o sucesso deste discurso anti-científico, anti-industrialista, anti-capitalista e anti-tecnológico.

Com efeito, através desta estratégia, GMT alcança um triplo objetivo: 1) consegue motivar um exército de estudantes, bolseiros, professores, investigadores, jornalistas, cineastas, a braços com a insignificância epistemológica das suas disciplinas num mundo altamente matematizado e controlado por linguagens artificiais, oferecendo-lhes um cheirinho de vitória; 2) sugere uma originalidade estilística pela mera introdução de originalidade verbal (e este é, sem dúvida, um mérito de GMT, ainda que relativo) invocando tópicos, imagens, e impressões extraídas do imaginário das ciências exactas num contexto literário e narrativo; 3) lança sobre as suas óbvias incapacidades narrativas (do ponto de vista da verosimilhança) um manto bastante espesso, feito de tópicos, imagens, leituras já filtradas por textos filosóficos da moda e muito conhecidos dos guardiões do sistema literário, os académicos literariamente falhados. Veja-se o absoluto desinteresse de GMT por textos, diria eu com tom professoral, fundamentais na história da racionalidade: Aristóteles, Tomás de Aquino, Kant, Vico ou Rousseau, preferindo pasteladas delirantes, como Derrida ou Agamben. Os problemas do drop naming não são decisivos para a nossa questão, mas são reveladores da honestidade (peço desculpa), consistência e extensão do trabalho literário.

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Curiosamente, o aplauso consensual (430 traduções em curso no planeta e espaço inter-galáctico) da obra de GMT, aparece como um sinal de prodígio literário universal. Isto sobre uma obra onde tanto se questiona a universalidade da razão, o que apenas pode ser lido paradoxalmente (trau) como uma prova cabal da (i) universalidade da razão ou (ii) da eficácia da propaganda e do efeito de contágio da submissão à autoridade. Creio que o próprio GMT, à luz da sua filosofia, se mostrará espantando, estando o mundo cheio de maldade, como foi possível achar-se universalmente aclamado, traduzido e entronizado antes dos 45 anos.

O que é muito interessante na sua afirmação como autor canónico (oremos) é precisamente a forma magistral como utiliza banalidades filosóficas (a ideia primária, sentimental e muito pouco rigorosa de humanismo) e cria um contexto verbal, retórico, pseudo-moderno. Sejamos justos, é também preciso reconhecer a sua enorme capacidade para construir metáforas de grande alcance comercial e mediático, explorando com competência os temas preferidos dos filósofos da moda. Numa entrevista à RTP2 GMT referiu: «a avaria (da máquina) cria a possibilidade de um novo humanismo». Mas basta um conhecimento residual da historia da ideia de humanismo (uma tecnologia de reflexão e comunicação criada pelas elites renascentistas a partir da sua paixão pela ciência, a técnica e as máquinas das culturas antigas) para percebermos os surpreendentes níveis de imprecisão em que trabalha GMT.

É que o seu toque a reunir contra a máquina funciona precisamente pelo facto de a máquina ser dominante, estimada e útil, e por isso, a avaria cria uma ideia de «crise» entendida como oportunidade. Ou seja, se apenas enquanto avaria, o humanismo é possível, estará sempre ameaçado quando a avaria for reparada. No fundo, GMT caracterizou a sua própria literatura, um humanismo (ou seja, uma amálgama frágil de boas intenções instintivas) que funciona nos intervalos escassos e deprimentes da enorme força criativa da máquina. Se isto é tudo o que temos para o problema da avaria, ou dito de outro modo, se à literatura já não resta outro papel a não ser o de um humanismo associado a uma civilização estragada, então, boa noite e boa sorte, estamos inteiramente fodidos. Felizmente, não é esse o caso. Há textos que são como máquinas que nunca avariam.

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Contudo, quero deixar claro que ao apelar (sem sucesso) para aspectos característicos de uma linguagem racional (o que não é o mesmo que dizer uma utilização de processos críticos baseados em conhecimentos avançados de linguagens racionais) os livros de GMT são sempre variações, exercícios, ou investigações, como o próprio gosta de dizer, da mesmíssima pergunta: a razão despida do seu contexto (e do seu processo) pode tornar-se irracional? É uma boa pergunta, mas demasiado óbvia se considerada do ponto de vista comportamental (claro que sim, todos o sabemos) e tecnicamente muito difícil, se considerada do ponto de vista de uma avaliação crítica dos processos de racionalidade (embora a resposta também seja afirmativa) e só existiria novidade se GMT pretendesse dizer-nos que descobriu um método em que a razão nunca se torna irracional. Mas isto seria como pedir a Lili Caneças para comentar Ariosto em italiano.

Com efeito, o problema foi tratado por muita gente, incluindo o famoso Gödel, que me escuso de comentar, pois não tenho gabarito para tal (estão a ver pessoas das Humanidades?, reconhecer a ignorância não é assim tão difícil). De resto, Gödel (e todos os restantes deprimidos de Viena cerca de 1920) tem servido a uma série infinita de ignorantes para atacarem, de forma ingénua, as raízes da certeza matemática. No entanto, julgo que Gödel estava precisamente a tentar provar o contrário, nomeadamente, a existência de um mundo platónico onde as ideias são eternas, refutando a fundamentação material de toda a demonstração. O seu processo contra a Matemática não assentava num relativismo das formas de racionalidade, antes pelo contrário. Mas adiante, não queremos ficar malucos.

Posto isto, e este é o tremendo paradoxo, a obra de GMT não tem relevância crítica - do ponto de vista da ciência, como é óbvio - e torna-se (do ponto de vista da Lógica Formal) caótica, irrelevante e redundante, dispensando o seu conhecimento exaustivo, só tendo interesse para quem encontra no efeito estético dos jogos literários, o seu interesse (e bem). Não se justificando o seu conhecimento, como dizem as pessoas do Marketing, do ponto de vista do conceito, ou seja, da pergunta sobre os limites da universalidade da razão, pois a uma pergunta crítica responde GMT com repetições particulares do mesmo caso geral: a máquina é repetição, enquanto a humanidade é o improviso, a desorientação e a empatia com o sofrimento; será que resta alguma coisa de profundamente original na obra de GMT como experiência literária? Entramos aqui num admirável mundo novo, o terreno próprio da Crítica Literária, onde, desde há um século, apenas rebentam bombas e voavam estilhaços em todas as direcções. Tentemos pacificar esse território.


A metáfora e a experiência emocional

Consideremos a título de exemplo a obra de GMT Viagem à Índia:

O que é o passado? Isto: tempo que cada vez ocupa
menos espaço, e tal facto é visível na mala de Bloom.
O presente - agora, este momento -, pelo contrário,
ocupa todo o espaço que nos rodeia. Porém, deste latifúndio 
que é o tempo neste minuto, amanhã pouco
restará: talvez, quem sabe, a senhora da limpeza tenha as
cinzas para varrer. Séculos inteiros guardam-se agora em
gavetas medíocres.

Enquanto o raciocínio é geral, GMT aguenta-se bem, a ideia de o passado ser tempo que cada vez ocupa menos espaço é interessante. Mas não demora cinco segundos a cair no moralismo mórbido, quando pretende ser mais rigoroso.

Núpcias da História com a imaginação 
provocaram mais filhos e cópulas divertidas
do que núpcias de verdade com
a boa memória. Uiva como os lobos, eis
a História do mundo; tem apetite, sente-se
isolada; a História é um fluido que
passa ao lado dos homens, fluido espesso

Mas, apesar disso, o homem considera-se
Importante - a espécie com o ofício de jardineiro.
Contudo, o planeta não é o jardim do homem criativo,
Nem do cientista fundamental, nem do general corajoso;
A espécie humana, sim, é um dos jardins do planeta,

O canteiro mais civilizado, é certo. Mas pouco mais.

Para o leitor descansar um bocadinho das minhas elaborações, vejamos a extraordinária perspicácia de um adolescente no GoodReads, comentando a mesmíssima obra:

«Leitura obrigada porque fui obrigado a ler pela escola e também porque deu-me a entender que ele foi coagido a escrever esse livro, porque não demonstra prazer na escrita. A sua decisão de ter as mesmas estrofes que "Os Lusíadas" levou-o a criar um monumento elegível a património internacional da arte de encher chouriços. O que ele escreve é aborrecido; irrelevante; repetitivo; tem ideias execráveis, apesar do seu curso em filosofia demonstra ser um ignorante das teorias filosóficas de que fala (por exemplo: a sua opinião sobre o consumismo na nossa sociedade); 

Isto tem um nome: incapacidade de criar personagens. E uma preocupante incapacidade de representar a densidade dos problemas do comportamento humano. Bem sei que existe o argumento da «personagem plana». «As personagens sabem que são personagens» diz-nos o autor. Mas parecem não saber da existência de um escritor a construir a sua reputação à custa delas. O problema é que o campo ilimitado do raciocínio ou da combinatória (estafado por Calvino, Perec e Queneau, mas também pelos aforismos de Karl Kraus) tende a esquecer uma dimensão fundamental da natureza: os seus limites. 


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A verosimilhança é um dos esteios da arte literária. É muito difícil sugerir a experiência da realidade a partir de mecanismos ficcionais. Ou se quisermos, através do prestígio da mentira. Ora, GMT é incapaz de mentir e por isso nada diz de verdadeiro - como facilmente faria notar um Oscar Wilde - passando logo a declarar a sua incapacidade, tentando fazer das fraquezas forças, quanto a mim, sem sucesso, embora lhe reconheça certa dignidade no esforço.

Na verdade, mesmo nas situações mais absurdas, seja o Nariz de Gogol ou a Metamorfose de Kafka, o espectacular talento desses escritores está na capacidade com que sugerem uma sensação de mundo real, no meio do mais absurdo cenário. Ao abdicar inteiramente da ficção - e repare-se como GMT chegou a citar o velho aforismo de Adorno sobre a impossibilidade da poesia depois de Auschwitz - no fundo, retoma uma velha crítica do entretenimento. GMT escreve para acordar consciências, para corrigir ilusões, para identificar a maldade. Ora, no que me diz respeito, quando ouço esta retórica de sonso, fecho logo os olhos para dormitar um bocadinho.

Mais um caso de Hiper-literatura?

Aqui devo fazer uma vénia a António Guerreiro. O seu conceito de hiper-literatura é a mais adequada expressão para designar alguns dos fenómenos contemporâneos, onde infelizmente Guerreiro não inclui GMT. A hiper-literatura só dialoga com a grande literatura hiper-literatura. Todos os restantes mecanismos ficcionais, o mais pequeno cheiro a best-seller ou mainstream, logo relegaria o livro para o mais fétido sub-mundo das cabeleireiras da Brandoa ou das vendedoras de farturas de Peniche. O autor da hiper-literatura recusa-se aliás a falar sobre o desempenho comercial dos seus livros, a suprema prova de que estamos diante de um génio. A hiper-literatura, como diriam os comentadores de futebol, prefere jogar «entre linhas».

Se me pedem um julgamento final sobre a obra de GMT, direi que, por um lado, do ponto de vista intelectual me parece pobre, pois a grande argumentação presente em toda a obra de GMT sobre os limites da razão e da maldade, não encontra qualquer conexão com o mundo real, nem a sua estratégia de distorção da realidade para melhor representar a irracionalidade do mundo, parece produzir efeitos satisfatórios. João Pedro George disse recentemente que os livros de GMT se tornaram cansativos, parecendo quase obras de ficção científica. Antes fossem obras de ficção científica. A mim parecem-me projectos de tese de doutoramento de jovens candidatos sem talento para abordar um tema demasiado difícil. Ou na exacta formulação de um famoso blogger, «parecem ter sido escritas pelo Jorge Luís Borges depois de sofrer 9 AVC'S».

Curiosamente, é neste terreno sagrado que brota um dos mais implacáveis projectos de marketing literário. Basta considerar os elogios quase religiosos com que o autor se fez rodear desde cedo - Viagem à Índia saiu logo com prefácios autoritários de Eduardo Lourenço e Vasco Graça Moura. Admitamos: GMT é uma máquina de sucesso; ficamos esmagadas com os níveis de espectacularidade. Afinal, há muito quem considere que Viagem à Índia será uma das mais importantes obras do século XXI - estando o século XXI a começar - o que é fantástico.

Claro que o comentário dos livros sagrados - e é isso que em grande medida GMT faz, invocando os filósofos da moda - sempre pagou bem na história intelectual do Ocidente. A sinopse de um dos últimos livros é sintomática: «surgem personagens, situadas em tempos indistintos, que serão também centrais em futuros livros.» No fundo, tal como nos encontros religiosos, ou nos congressos de Humanidades, em que todas as conclusões, por serem pífias e privadas de qualquer efeito demonstrado, consistente ou útil (a não ser para a carreira dos próprios) acabam sempre por invocar a necessidade de mais estudos, a promessa de que se voltarão a encontrar em futuros encontros (um pleonasmo digno do Paraíso, no fim, seremos todos salvos). Os livros servem para produzir mais livros, bem o sabemos, mas nesse caso, escusamos de fingir um ar tão sapiencial. No fundo, como bem sabia Cervantes, o romance conduz a outro romance, que conduz a outro romance, que conduz a outro romance, e no fim à loucura. Mas para saber isso, não era necessário tanto papel.

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Em suma, o que podemos concluir. Nada. Quero terminar lembrando que a actriz preferida de Wittengestein (mais conhecido por Vicky, entre os amigos gauleses de Swansea) era Carmen Miranda. O homem detestava a filosofia profissional, abominava académicos e detestava mistificações. Se me pedirem a opinião, não seria tão intransigente. Acho Wittengestein algo excessivo. Como prémio a quem eventualmente chegou aqui, preparei um joguinho a partir do famoso Livro de Dança de GMT,

Você é concorrente! Venha Jogar!
Apenas um dos três poemas abaixo apresentados pertence ao grande GMT. Significa assim (segundo aritmética básica) que dois foram inventados por mim, agora mesmo, em cerca de dois minutos e meio, enquanto preparava uma sandes de atum e revia mentalmente a lista de compras da mercearia para o fim de semana. No final da aposta, e ao clicar nos respectivos encadeados líricos poderão obter a resposta a correta. Que comecem os jogos!


Metafísica 

No fio do Trapézio em movimento.
Instalo-me nessa incerteza. Penso a
instabilidade do CORPO. A Sensação vital.
O INSTINTO da geografia: a visão
dos anjos. O trapezista HIPNOTIZA a morte com os pés
e na passada: Vê caminhar o espectro da MORTE 
no infinito preso por um fio.


Confirmação

Confirmar o Círculo com os pés. 
Comecei hoje a metafísica da casa: comecei por limpar 
a pele. 
O PARTO no PALCO deve evitar o sangue mas não o SUS‑ 
TO, espalhar a FISIOLOGIA dos anjos pelo público, libertar 
a Religião e os animais no meio da Lógica do 
óbvio e do Sensato. Confirmar Círculos com os pés. 


Metodologia II

A Loucura é uma equação sem incógnita.
Um movimento contrário ao mundo. Como DAN-
ÇAR racionalmente, ferir o corpo nas arestas do universo.
Se as arestas libertam: não corras, dança e corta a rigidez da PALA-
VRA. O SANGUE  não tem projecto definido. 
Eu digo: a perfeita SOLIDÃO
é um movimento perpétuo. É
adiar a velhice por mais um dia.



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Baby K

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Giusy Ferreri

Roma-Bangkok (excerto)

Stacca dal tuo lavoro almeno per un po'
La vita costa meno trasferiamoci a Bangkok
Dove la metropoli incontra i tropici
E tra le luci diventiamo quasi microscopici
Abbassa i finestrini voglio il vento in faccia
Alza il volume della traccia
Torneremo a casa solo quando il sole sorge
Questa vita ti sconvolge

Se o assunto são as poéticas do movimento, prefiro, pois, este grande momento da literatura contemporânea, já aqui sublinhado, e protagonizado por Giusy Ferreri (Palermo) e Baby K (Singapura).

terça-feira, 15 de outubro de 2019

A loira e o sábio

Estamos todos melancólicos com a morte do grande crítico literário e guardião do bom gosto, Harold Bloom. A Civilização Ocidental parece irreversivelmente condenada ao inferno, entre a subida das temperaturas e o aumento do interesse pelo Tofu. Recusar o consumo da alheira de Mirandela parece quase tão imperativo como reconhecer a genialidade de Titus Andronicus

Aproveitando a efeméride, assinalamos a morte de Harold Bloom, o crítico que heroicamente mais tempo resistiu a António Lobo Antunes, parecendo (desta feita) restar apenas, algures numa cave em Massamá, um professor de carpintaria do ensino profissional, desde sempre enfastiado pelos livros do aclamado Antunes, hábil cultor na repetição de um tema já imortalizado por Molly Bloom, a saber: ai, ui, (pausa) ui, ai (pausa) ui (dupla pausa) ai.

O autor Nuno Camarneiro, também ele vencedor algures durante a atribulada História da Civilização Ocidental, de um prémio Leya, e pessoa preocupada com a degradação da leitura, lembrou na sua página do Facebook (oremos):

«Morreu o Harold Bloom, um dos maiores e mais influentes críticos literários de sempre. Troquei alguns emails com ele e espantou-me a disponibilidade, a inteligência e a erudição (lia em 7 ou 8 línguas, entre elas o português, e tinha um enorme conhecimento da literatura em língua portuguesa).»

Calculo que Camarneiro após examinar Quintiliano e Valla, Pope e Boileau, Arnold e Pater, decretou com severidade: ora aí está um dos melhores críticos literários de sempre; vou trocar uns mails com ele. Felizmente, também nós podemos agora morrer em paz, após sermos notificados da existência desse insólito evento: Bloom tinha um enorme conhecimento da literatura em língua portuguesa (coitado) que expressou generosamente nos mails trocados com Nuno Camarneiro. Vale a pena toda uma vida de incompreensão dos novos movimentos literários, uma vida atravessada pelos sistemáticos ataques da cultura popular e dos estudos pós-modernos, uma vida assombrada pelo ódio de esquálidas feministas e marxistas perigosos, uma vida toda consumida pelo exigente ensino nas melhores Universidades norte-americanas, uma vida de luta solitária pelos méritos da sabedoria bíblica e a divulgação das crípticas intemporalidades do Bardo; tudo isso vale a pena quando sabemos estar-nos reservada, no fim dessa mesma vida, uma troca de mails com o Nuno Camarneiro.

Eduardo Pitta assinalou o lado político-ativista de Harold Bloom:

«Politicamente incorrecto, combateu a crítica marxista, o afrocentrismo e o feminismo, ou seja, aquilo que designava por «escola do ressentimento». Admirava profundamente Emily Dickinson, Jane Austen, George Eliot, Virginia Woolf, Toni Morrison, Maya Angelou e Amy Tan.»

Depois desta impressionante lista de génios, ficamos a saber que o politicamente incorrecto Harold Blomm «detestava a saga Harry Potter». O que é absolutamente compreensível. Também o grande Frank Raymond Leavis demorou 22 anos a compreender o génio de Dickens, até que ao fim ajoelhou, publicando um livro intitulado Dickens the novelist (1970). Calculo que o problema "Harry Potter" represente um caso de similar embaraço para as mentes mais académicas. A história conta-se num parágrafo, de quatro ou cinco frases.

Uma inglesa loira e periférica, sem ponta de singularidade, criada na fronteira do País de Gales, recusada por Oxford nos exames de admissão, depois reformatada pelo vernáculo de uma cidade suja de um país pobre e analfabeto, após engordar com as delícias do pastel de Chaves e da Francezinha, sonha forjar uma mitologia infantil com o poder hipnótico de Dickens e as cornucópias morais de Tolkien, e sem para isso recorrer à aprendizagem das línguas antigas, ao enxame de citações, às vénias doutorais, numa palavra, ao ranço que a Literatura vai acumulando pelo seu tortuoso caminho. A rapariga, entretanto divorciada, deprimida e desempregada, põe-se a escrevinhar pelos cantos de cafés obscuros, pisando insegura as mesmas ruelas que receberam generosas os pés de Thomas de Quincey e Adam Smith, e num toque de magia pirosa (com estrelinhas de ouro e unicórnios voadores) algures sonolenta, cansada, vencida, prestes a ser lançada para a pobreza, o ressentimento e o mais que certo definhamento moral e físico, algures num comboio entre Manchester e Londres - nessa linha de fuligem e gritos surdos onde reina o fantasma de Oliver Twist -, eis que um rapazinho imberbe e insolente, aparece no meio do entulho sofrido da sua extenuada cabeça. Naquele momento, ao contrário do que nos contam muitos dos livros (que têm passado, nas últimas duas décadas por Literatura), a mente da rapariga loira não é apenas uma espiral caótica de emoções difusas e imagens incontroláveis, mas uma máquina de produzir sentido. De modo que a loira burra, pilotando a endiabrada máquina da mente, se dedica a ordenar, numa narrativa transfigurada, todos os pedaços de prazer e horror de uma vida destinada (ó mistério dos mistérios) a produzir uma mitologia pessoal: no fundo, o destino absurdo e horrível de todos os génios. Obstinada, imperial, terrível, enlouquecida pelo desespero, essa rapariga mergulha no reino sombrio e orgulhoso da sua imaginação, atingindo as terras proibidas onde, apenas aos escolhidos, são revelados os íntimos segredos do Cânone e da Universalidade. Tudo isto, envergonhando, pelo caminho, os pedantes doutores de Oxford, Harvard e Yale. Como aceitar de bom grado esta narrativa barata? Sinceramente, não sei.

Para lá dos excessos sobre Shakespeare e a invenção do humano, Hardold Bloom soube reconhecer um problema, digamos, de sociologia literária, no seu aclamado A Angústia da Influência (1973), o que não é pouca coisa. Notou que o «poder que faz de um homem um poeta é demónico» esquecendo-se porém de notar, da mesma forma, que não será menos demónico o poder que faz poeta uma mulher.

Deus nos conserve lúcidos para venerar, ajoelhando, o Cânone com a mesma força com que nos endireita a espinha prontos a cuspir no Cânone. Quanto a Harold Bloom, paz à sua alma, agora que se prepara para mergulhar no abismo do esquecimento.

Como já aqui foi referido por diversas vezes (e nunca é demais lembrar) a Literatura é isto mesmo. 

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Prolongamento

A autora de Um Jeito Manso teve mais uma vez a simpatia de me fazer um reparo e creio que também desta vez sou forçado a dar-lhe razão, de forma ainda mais rápida.


Considerando injusto dizer-se que o «Alf não gosta de concorrência» (em princípio, ninguém gosta, mas esse é um assunto ainda mais difícil, por ser ainda mais abstracto do que o problema da crítica literária) esta reflexão da autora de Um Jeito Manso - sem ostentar emblemas de autoridade literária mas carregada de ideias - tem bastante sentido e constitui uma generosa oportunidade para que possa clarificar e resumir a minha anterior crítica ao trabalho de Luís Miguel Rosa. Justifica-se esta clarificação também por oferecer - com a coragem característica deste autor que vos fala - um motivo para mergulhar na psicologia da pedantice e da arrogância intelectual, mostrando até que ponto somos vítimas dos sistemas de reputação onde pretendemos triunfar. Ora vamos lá. 

Sim, Luís Miguel Rosa é um pouco chato. Aflorei o assunto quando referi a ausência de brilhantismo no estilo e o facto de a sua prolixidade suscitar incoerências e até alguma confusão argumentativa.

Sim, o Luís Miguel Rosa parece não se incomodar com a evidente necessidade de fazer demonstração da sua imensa cultura sobre irrelevâncias socio-literárias (também sugiro isso ao longo da minha crítica) quando nem sempre essa informação vem acompanhada por uma igual densidade, digamos, filosófica.

Sim, a vida (mas a também a literatura) não exige este longo calvário de leituras para se atingir a profundidade, a riqueza de sentido(s), e até a propriedade de argumentos críticos adequados aos problemas estéticos implícitos na escrita de um texto.

Sim, o Benfica será provavelmene Pentacampeão (peço desculpa).

Contudo, a chatice tem muitas faces, e é essa a razão pela qual meia bloga cai aos pés de Luís Miguel Rosa. Para quem se interessa pela sociologia da literatura, o Luís Miguel apresenta não só um conhecimento enciclopédico - como ficou referido - como um trabalho de compilação de dados (datas de edição, entrevistas, edições, prémios, referências em jornais e revistas) absolutamente esmagador. Quem cresceu hipnotizado por esta memorabilia do eterno jogo de sombras socio-literário (que está na base de toda a consagração literária) lê a prosa de Luís Miguel Rosa como se de uma entusiasmante narrativa de ficção se tratasse. Compreendo, por outro lado, o efeito entediante. É um pouco como aquelas pessoas para quem assistir às várias etapas de um Tour de France, com as suas intermináveis subidas e descidas, é algo incompreensível. Não o será, quando dominamos os tempos médios das etapas, as características de cada ciclista, os seus picos de forma (e problemas familiares) os impactos da meteorologia nos trepadores, as probabilidades de acidentes no empedrado, o currículo dos directores de equipa, os orçamentos salariais, etc.

No fundo, a ideia de densidade dos textos (para alguém educado literáriamente) está muito ligada à capacidade de invocar esforço de leitura e conhecimento da tradição (autores, revistas, eventos, entrevistas) sobre a qual se escreve. Isto foi sempre uma enorme armadilha para os escritores de todos os tempos: a confusão entre os valores das academias de especialistas e os valores do leitor comum. O nosso juízo sobre as diferenças de densidade, sobretudo no nosso tempo - como temos por aqui referido - não resulta de nenhum fenómeno obscuro da psicologia da arte, mas da muito palpável economia salarial onde estamos inseridos, vulgo, dinheiro para se comprar o pão com chouriço - e perdoe-se deste já o marxismo da afirmação. Dito de outro modo, a capacidade de resistir à chatice evidenciada por Luís Miguel Rosa, suscita aplausos em eremitas e eruditos precisamente por serem essas pessoas pagas para serem eruditas e eremitas, isto é, campeões na capacidade de resistência à chatice. Se isto poderá ser exagerado para 100% dos eruditos, não o será para 99%, pois a erudição - como todos sabemos - custa muito tempo e dinheiro.

Podemos voltar a invocar o ciclismo: quem sobe aos 1,912 metros do Mont Ventoux recebendo dinheiro e glória para chegar em primeiro lugar, terá alguma tendência para olhar com sobranceria quem se dedica a subir ao Domingo à Rampa da Falperra. Tentemos forçar ainda mais analogia. O problema é quando procuramos justificar em que sentido o ciclista profissional vencedor do Tour realiza qualquer coisa de mais digno, profundo, inteligente ou importante do que o domingueiro subindo ao Bom Jesus de Braga com uma sandes de carne assada na mão esquerda. Se o domingueiro conseguir ganhar mais dinheiro do que o ciclista profissional, então teremos esse fenómeno bem característico de todos os tempos: os cavaleiros do Apocalipse cultural.

Analogia não é perfeita, bem sei, pois em assuntos humanos, o sentido da linguagem não é quantificável (distância/tempo) o que nos tem lançado neste Carnaval a que chamamos a crítica literária. Podemos sempre desistir perante a sabedoria do mercado e o julgamento dos eruditos (para depois nos mostrarmos aborrecidos quando os eruditos e os eremitas são facilmente aclamados e se julgam os guardiães da eterna sabedoria). E com isto termino. 

A questão é se queremos continuar a fazer de conta que existe um sistema de valores literários, mantendo prémios e até cursos superiores de Letras (quando a maior parte do público e dos cidadãos não especializados olha para  crítica como um desperdício de tempo, e tende a considerar de mau gosto o esforço de se apontar - e criticar - méritos literários indevidos) ou se queremos pensar mais profundamente na relação entre a reputação literária e os seus efeitos económicos e políticos ao longo do tempo. Como sabem, pertenço ao segundo grupo, até porque - ao contrário do que pensamos - o próprio conceito de chatice (central na nossa economia) está directamente ligado ao problema da literatura oficial e do seu ensino preparatório e secundário, ao qual - Deus nos valha - estamos todos obrigados. 

Saber onde estão os embustes literários, não é apenas um problema de mau fígado: é zelar pela felicidade das nossas crianças, é ajudar a construir uma linguagem mais eficaz e rigorosa, é dotar os adolescentes de armas contra a ilusão, o pedantismo e o orgulho injustificado. É ajudar a demolir o mundo de enfatuados contra o qual, justamente, a autora de Um Jeito Manso se insurge, perturbada pela incompreensão dos elogios fáceis.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

A crítica da crítica

Um simpático leitor veio aqui ameaçar-nos com um blogue onde, alegadamente, se escrevem textos longos e impressionantes, e onde, de caminho, se revela um impressionante conhecimento da literatura. Apesar de sufocado por uma tenebrosa falta de tempo, fiz minhas as palavras de um conhecido poeta no meio de uma tempestade de neve, e fui ver: o blogue intitula-se Homem-de-Livro e é da autoria de Luís Miguel Rosa. O autor escreve poucos textos mas recorrendo à forma longa. Deixando de lado os textos em inglês, li apenas com atenção o ensaio «A Cada Esquecido o seu Adido» e o maior elogio que se pode fazer é que foi capaz de colocar em progresso as pesadas e gastas correias da minha mecânica mental.

Não é comum dizermos por aqui coisas positivas, sobretudo quando se trata de jovens autores, mas eis chegado o dia em que somos forçados a aplaudir um (pelo menos para mim) desconhecido. Apesar de o autor, Luís Miguel, se exceder na extensão da argumentação, nem sempre utilizando a famosa e sempre tão necessária navalha de Occam, e mesmo recorrendo a expressões arcádicas como «acúmen sentimental» ou «irmanizam» e deixando de lado alguma falta de brilhantismo no estilo (o que funciona como vantagem no alcance democrático da sua reflexão) só podemos agradecer a este promissor autor o seu trabalho. Pensamos sobretudo na compilação de dados que certificam muitas das nossas ideias, por vezes aqui por nós apenas afloradas, mas sem a devida fundamentação, em virtude dessa saborosa combinação (que sempre nos assiste) entre a fatal preguiça e a necessidade de ganhar a vida com outras coisas mais apreciadas pelo vulgo.

Como não podia deixar de ser, passaremos em revista algumas pequenas irritações, para de caminho podermos soltar alguns elogios a Luís Miguel Rosa, com estoiro e espumante, na alegria de ver em letra de forma algumas singelas verdades que, por razões históricas e económicas, é muito raro vermos defendidas no nosso contexto literário. 

Primeiro problema: pela boca morre o peixe. O Luís Miguel parte de considerações sociológicas muito abrangentes mas escolhe como representação desse retrato apenas duas figuras, sobre as quais se demora, Baptista Bastos e sobretudo Joana Emídio Marques. Na verdade, além da insólita e deselegante tareia aplicada a Baptista Bastos (um homem falecido, segundo julgo saber) Luís Miguel Rosa aponta a Joana Emídio Marques - uma crítica literária e jornalista com recente protagonismo nas páginas do Observador - com especial, ainda que justa, severidade. Reconheço que o caso possa ser paradigmático, mas seria muito mais eloquente se o Luís Miguel apontasse vários exemplos, incluindo os vários académicos, muitos editores e infinitos presidentes de júris de prémios literários, mas palpita-me que Luís Miguel Rosa sabe bem por onde passa a linha vermelha da sobrevivência e comete aqui um erro similar, em termos de crítica, ao que pretende denunciar com a sua curiosa e profunda, mas às vezes confusa, análise do problema crítico português: a energia despendida e desperdiçada a fabricar elegias a «escritores esquecidos» é apenas uma via para impiedosamente se poder insultar os novos e contemporâneos. 


«Toda a boa crítica é uma celebração, um acto de louvor, se não de amor. Porque não há valores absolutos na estética, o crítico deve dar menos importância à explicação do que ao encantamento. (...) O sermão, a invectiva, o vitupério, a verrina, a diatribe, eis os géneros favoritos dos pretensos guardiões da nossa memória colectiva.»

e mais adiante:


«Volvido um século, esse tom sobrevive em catastrofistas como Clara Ferreira Alves, Ana Cristina Leonardo, António Guerreiro e os demais que se têm em conta como orientadores da cultura e formadores do gosto. Nas mãos deles, os esquecidos são um pretexto para destilarem ódio de forma socialmente aceite (“Ela preocupa-se!”), pois acabam antes por estadear a sua superioridade sobre os outros e expressar de forma segura o habitual desdém pelos portugueses que é o apanágio de todo o intelectual que odeia ter nascido nesta pasmaceira quando podia ter nascido em Paris, Londres, Nova Iorque.»

Caro Luís Miguel, mas não será esse longo texto um magnífico exemplo daquilo que, precisamente, identifica como um problema da crítica nacional? O Luís Miguel - muitas vezes nesse texto, sem grande demonstração ou consistência lógica - acusa a crítica de não ser demonstrativa (o que é correcto) e apesar de aduzir toneladas de informação sociológica (assunto a que voltarei para o elogiar) censura o tom verrinoso e acusatório dos críticos, para logo acusar, verrinosamente, uma série de críticos de serem verrinosos e acusatórios. Isto significa que o problema talvez não esteja na dimensão acusatória ou na verrina, ou nos problemas de sociologia da literatura, que o Luís Miguel Rosa muito bem critica (desmontando falsas ideias sobre escritores alegadamente marginalizados ou esquecidos) mas sim na dificuldade em dizer qualquer coisa de lógico, fundamentado e universal no que respeita ao valor estético de um texto. 

É sempre cómico contemplar o momento em que críticos inteligentes, com formação superior em Literatura e gosto apurado, constatam esta singela realidade (o valor em Literatura é um pântano fumegante), mas horrorizados pelo desperdício de tempo a que, nesse caso, se entregaram, se recusam a daí extrair todas as dolorosas consequências sobre a irrelevância da informação, por eles acumulada ao longo de anos, sobre «literatura de qualidade». Se tudo é manifestação de amor, estaremos mais perto de um Toy do que de um I. A. Richards. Se o Luís Miguel considera despropositado os críticos censurarem Z por não ter lido A (pois a experiência literária é subjectiva) das duas uma: ou o Luís Miguel demonstra que existe uma crítica não subjectiva ou terá de aplicar à crítica a mesma receita que aplica à literatura: o amor honesto é o elementar critério da verdade, pois tudo é subjectivo. Como experiência subjectiva, gosto muito do estilo acusatório e verrinoso e faço neste caso o diagnóstico oposto: temos carência e não excesso desse medicamento genérico.

Aliás, o próprio Luís Miguel conclui na parte final do texto isto mesmo, contradizendo, de alguma maneira, o que escreveu na primeira parte do texto (provavelmente, partes escritas até em dias diferentes e já não tendo o autor inteiramente presente as primeiras afirmações).


«Não há escritores intocáveis, muito menos os actuais; nem estou a proscrever resenhas negativas aos críticos de jornal. Penso aliás que foi a falta de uma tradição de resenhas negativas feitas honestamente que exacerbou este problema: o medo de emitir uma opinião, o medo de julgar, o medo de avaliar, o medo de ofender, levou à falta de um cânone sólido e aceite de forma generalizada. Penso ainda que foi a falta de rigor na avaliação dos escritores dos últimos vinte anos, os quais foram deificados depressa e sem resistência, que leva muitos adidos a iras tremendas.»

Aqui a confusão fica patente: da impotência da subjectividade literária - e da inutilidade de convencer os outros dos nossos gostos - passamos a uma economia do «cânone sólido e aceite de forma generalizada» assente num aumento do número de críticas negativas «honestas». Substituir a verrina pela honestidade, eis o que não se afigura como solução para o problema do valor em Literatura. Mas não sejamos severos. O Luís Miguel - repito - arrisca aqui pisar terrenos que praticamente apenas neste blogue (perdoe-se o exagero) vão sendo desajeitada e preguiçosamente pisados.

Segundo problema: a tendência para polemizar contra tiques ideologicamente institucionalizados num país onde a esquerda política teve inegável relevância literária, leva o autor a entusiasmos político-sociológicos que ferem o tom geral de moderação das suas argumentações ao nível da história literária. Diz a certo momento que «Este medo de contaminação relativo a tudo quanto nascesse além-fronteiras, meio século mais tarde, tornar-se-ia o cavalo de batalha dos filósofos filofascistas ligados ao Estado Novo, o Grupo 57. Esta é uma das muitas semelhanças que irmanizam a I República e a ditadura, embora o seu aprofundamento não costume estar no topo das prioridades dos historiadores.» Muitas semelhanças que irmanizam a I República e  a ditadura? Façamos uma dupla pausa. I República. Ditadura. Parecem-me dois conceitos diferentes. Nem seria necessário sair do reino da filologia para justificar as razões de não chamar à ditadura, II República, dadas as enormes diferenças entre esses dois regimes políticos. E isto fazendo uso da teoria apreciada pelo Luís Miguel Rosa (se as coisas não foram aprofundadas é porque não precisam de aprofundamento). Aliás, esta ideia das semelhanças entre I República e Ditadura é uma banalidade divulgada pelo grupo estrangeirado produzido em Oxford e inseminado artificialmente nessa dourada teta do Orçamento de Estado, o Instituto de Ciências Sociais (peço desculpa, acordei mal disposto). Aqui, o Luís Miguel Rosa volta a incorrer num outro erro que, justamente, pretende censurar: neste caso, cometeu o pecado da verrina, pois faltam dados a confirmar este tremendo juízo disparado a talhe de foice entre a rápida caracterização de um intelectual republicano.

É aliás a única crítica de fundo que tenho a fazer ao belo texto de Luís Miguel Rosa: mistura a génese do nacionalismo (um fenómeno bastante abrangente e complexo, comum a quase todas unidades políticas existentes no planeta terra) o medo da colonização cultural (uma realidade mais circunscrita mas ainda assim bastante comum a outros espaços nacionais) com os problemas da crítica literária em Portugal (um problema de contornos especificamente nacionais determinado pelo tamanho da indústria editorial, a qualidade e quantidade das Universidades e os níveis de alfabetização da população). Resolvido este problema, o ensaio do Luís Miguel seria das coisas mais valiosas escritas em portugal nos últimos tempos

Terceiro problema: oscilação psicanalítica entre a evidente censura do nacionalismo serôdio e a crítica do provincianismo que, como quase sempre - e veja-se o caso de Eça de Queiroz -, redunda numa bipolarização entre declarações de amor ao bacalhau de cebolada e homilias sobre a superioridade intelectual dos anglo-saxões.

«Pode-se facilmente escrever uma história da tradição de os autores portugueses acusarem as próprias épocas de incompetência generalizada, excepção feita ao acusador e compinchas».

E logo adiante:

«Nenhum escritor merece ser atacado em duas linhas rápidas de um artigo, sobretudo quando esse ataque serve apenas o engrandecimento do favorito do crítico. O efeito que isso tende a ter sobre mim é questionar a parcialidade do adido. Isto é uma coisa, entre tantas outras, em que o modelo anglo-americano da crítica literária nos poderia ensinar algo sobre foco e acentuação do positivo. Eles sabem separar a comemoração da aniquilação. Quando um crítico anglo-americano quer festejar um escritor morto há décadas, não desperdiça cinco parágrafos a lamentar o quão maus todos os escritores são hoje em dia; explica da primeira linha para a frente os méritos do seu favorito.»

Jesus, Maria, José! «Foco e acentuação do positivo»? Nada me move contra seminários motivacionais mas creio que, neste particular, Luís Miguel se perdeu no seu amor pelos estudos ingleses. Bastaria um conhecimento tão profundo da sociologia da literatura inglesa como Luís Miguel Rosa demonstra ter da portuguesa, para fazer coro com Sebald, citando Goethe: não há ódio como aquele que é manifestado entre literatos. Só neste país é que se diz «só neste país» para citar a canção de um cantor desafinado e mesmo assim corajosamente detentor de uma carreira de razoável sucesso. Luís Miguel Rosa tem igualmente de rever este ponto no seu texto. Há problemas específicos do meio literário português e há problemas estruturais de qualquer meio literário. Como o próprio afirma, a inveja e a maledicência não são monopólio nacional. E muito menos os esquemas de apreciação literária anglo-saxónicos servem como modelo no complicado panorama estético, tecnológico e político em que nos encontramos. Aqui, caro Luís Miguel, como em tudo na vida, cada um está por sua conta.

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Quarto problema: alguma confusão entre a fundamentação lógica da crítica literária e um esboço de catecismo para uma boa vida.

Luís Miguel Rosa considera que o esquecimento é não só natural como desejável e depois procura demonstrar que em muitos casos não se verifica sequer um esquecimento. «Opinadores culturais nunca aceitam que os imbecis, usando critérios estéticos rigorosos e válidos, possam ter decidido não atribuir qualquer grandeza aos seus favoritos.» Compreendemos, o assunto não é fácil. Luís Miguel oscila aqui entre o imortal argumento liberal aplicado à literatura (e que é não só o resultado da colonização estrangeira - não discuto se com efeitos civilizadores ou barbarizantes - mas também um fruto apodrecido da autoridade ideológica vigente: tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis) e o impulso para considerar a crítica literária um artifício humano gerador de consequências e produtor voluntário de hierarquias, valorizações e efeitos económicos. Chega a aflorar o assunto, quando refere as quantidades industriais de livros e textos produzidos pelos sistemas de informação (sejam livros, revistas ou, hoje em dia, redes sociais) mas desiste perante a dificuldade e deixa depois à consideração de um mecanismo ético individual - a honestidade - a resolução do problema, profundo e perturbador, a saber, a dimensão política e reputacional de um sistema literário nascido de uma cultura elitista e invadido pela democratização da escrita e multiplicação de tecnologias de difusão de textos. Para Luís Miguel Rosa resta esperar de quem escreve nos jornais, quem edita, quem ensina, a defesa e o amar de um conjunto de «autores preferidos», divulgados com argumentos sólidos. E a crítica Luís Miguel? E a crítica? Se é fruto da subjectividade, incorremos noutros fascinantes problemas: deverá o Estado financiar Universidades onde se ensinam Estudos Ingleses?

Bem sei que o decadentismo, salpicado de nacionalismo e verniz poético, precisa das apropriadas doses de naftalina. Mas é igualmente preguiçoso considerar que as coisas são pela simples razão de que existem razões para o terem sido, o que nos dispensa de explicar as razões e – ainda melhor – nos exime de sair à rua com um programa de trabalhos e melhoramentos para o que consideramos ter sido mal construído por essa engenheira feminista, a Natureza. Mesmo se estamos a  falar sobre a Natureza da efeméride literária. Não se pode demolir a tendência para o decadentismo - censurando todos os que diariamente engrossam o coro diante da perda de valores - para depois abraçar uma outra versão Correio da Manhã TV da filosofia Ocidental: as coisas sempre foram o que são.

«Dos clássicos não aprendemos que o passado foi mais simples, mais apetecível; aprendemos que o mundo sempre foi tão horrível quanto suspeitamos que é.»

Discordo! Com os clássicos aprendemos que a cada nova geração é preciso reinventar o mundo (sejam as nossas ideias sobre o horror, sejam as nossas concepções sobre as diferenças entre o passado e o presente) e o julgamento sobre a nossa responsabilidade nessa interminável batalha de dar sentido às coisas, será medido pela fertilidade do nosso trabalho (escrito e publicado) no alívio do sofrimento e no alcance da sobrevivência para as gerações futuras. Mas compreende-se que Luís Miguel Rosa não pudesse corresponder a exigências de um nível, digamos, olímpico.

Em suma, aplaudindo o que interessa: Luís Miguel Rosa apresenta uma boa ideia e um mérito raro e demonstrado. A ideia, consistente e brilhante, reside na defesa de uma crítica literária mais exigente.

 «Quais são as probabilidades de uma pessoa nascer numa geração tapizada de génios? Em Portugal são mesmo muito boas! A literatura não é uma caridade; o talento é sovina, não partilha os seus dons com as massas por geração – excepto por cá. »

O mérito raro e demonstrado reside na apresentação de dados e no esforço de fundamentação como pouco se tem visto na imprensa publicada. Como o próprio afirma, o sentido global é fundamental para o crítico, e o conhecimento da história literária portuguesa apresentado por Luís Miguel Rosa é enciclopédico. Teme-se que Rosa durma na secção de revistas e periódicos da Biblioteca Nacional. As correcções de erros factuais sobre conferências, prémios e artigos de jornais são impressionantes. Que possa existir alguém disposto a passar horas destruindo os globos oculares diante de micro-filmes e esquecidas edições da Colóquio Letras de 1958 ou ignorados números do Jornal de Letras de 1969, para saber em que ano Natércia Freire foi agraciada com uma medalha ou Artur Portela Filho conferenciou por trás de uma mesa com um arranjo de flores, acerca das técnicas de Robe-Grillet, é constatar um acidente social e contrair uma dívida da qual nunca nos poderemos libertar. Como os limites da racionalidade humana (e já agora, também os da memória auxiliar) são uma realidade confirmadíssima pela ciência, tememos pelo que faltará a Luís Miguel Rosa noutros campos essenciais do conhecimento. Mas deve dizer-se com franqueza: se a especialização pode ser uma virtude, aqui está uma indesmentível confirmação. Já o suspeitávamos, mas é sempre bom poder confirmar como na crítica literária, a exaustividade dos dados aduzidos aos argumentos pode ser muito frutuosa na hora de construir juízos críticos mais exigentes. 

Deixo-vos com um emblema de coragem: 

«Há três anos ainda pude comprar 6 livros dele (José Cardoso Pires) na Leya na Feira do Livro; tenho a edição da BIS d’O Delfim, leve, barata, portátil e livre de prefácios de Gonçalo M. Tavares.»

Com ou sem esquecimento, com Luís Miguel Rosa, há esperança para a crítica literária em Portugal.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Progressista - escrito como quiserem! Ricardo Araújo Pereira e os perigosos inimigos invisíveis.

Ricardo Araújo Pereira (RAP) é um homem inteligente, deixemos desde já estabelecido este ponto, como serviço aos leitores que, militantes na causa das vitórias garantidas, já afiam os dentes na áspera lima das suas mórbidas expectativas, e partem do princípio que vamos aqui atacar o talento humorístico ou a capacidade estratégica do maior humorista português dos últimos, digamos, vinte anos. Contudo, caros camaradas, a inteligência é uma propriedade fisiológica, não um método infalível. E sendo uma propriedade fisiológica, tendo em conta o que julgamos conhecer quanto à estrutura evolutiva do nosso ecossistema, enfrenta crescentes desafios, consoante o ambiente se torna aparentemente mais dócil para o indivíduo na sua progressão, íamos a dizer labuta, diária. O que hoje constitui uma deliciosa facilidade, pode revelar-se a horrorosa tragédia do amanhã: eis a grande lição de mais de dois mil e quinhentos anos de literatura estóica. Acontece, todavia, aos melhores, o serem amolecidos pela aclamação precoce. Creio que foi (e é) esse o caso de RAP no seu último livro, Reaccionário com Dois Cês, Rabugices sobre os Novos Puritanos e Outros Agelastas, Tinta da China.

Para poupar os leitores a uma análise fastidiosa, vou abordar o texto impresso na badana do livro, até pelo poder simbólico que representa na economia do sistema editorial.



No texto que serve de aperitivo ao perspicaz livro de compilação das suas Crónicas, RAP constrói uma situação absurda, em que pretende revelar a pouca inteligência dos utilizadores das redes sociais. Vejam bem, falamos aqui dos utilizadores das redes sociais, isto é, nós mesmos, que somos tolinhos e não atingimos o significado oculto das nossas acções populistas, demagógicas e pouco esclarecidas. Utilizadores que, na sua boçal compreensão das coisas, sujeitam os corajosos, sensíveis e espectaculares produtores de conteúdos de valor cultural reconhecidamente excelente, a um rol de interpretações delirantes. E que faz RAP para erigir esta crítica sobre o delírio da internet? Resolve teletransportar Shakespeare para os nossos dias, submetendo-o à violência bárbara e obscurantista de uma alegada italiana farmacêutica, natural de Verona e utilizadora do Facebook. Percebemos perfeitamente onde RAP pretende chegar e estamos solidários com a sua luta. E isto apesar de por vezes cometermos o nosso imperdoável pecado, a saber, sermos detentores de uma opinião crítica sobre a realidade, baseada em, digamos, valores «politicamente correctos».

Acontece que o absurdo da situação se revela relativamente pouco absurdo, na nossa modestíssima opinião. E quase temos vergonha de o dizer, caros leitores, para não melindrarmos a liberdade de expressão de ninguém.

Sobre o facto de a simpática farmacêutica italiana de Verona - imaginada por RAP - ter ficado indignada com a facilidade de aquisição do veneno, comprado por Romeu a um pobre Boticário, deve assinalar-se que o próprio Shakespeare foi bastante cuidadoso com esse aspecto. Podemos dizer, com a coragem que nos caracteriza, que o poeta e autor de Romeu e Julieta chegou mesmo a ser, digamos, «politicamente correcto». Pois deixa bem claro no texto da peça, pela própria boca do Boticário, como a lei de Mântua punia com a morte quem vendesse ao público aquele veneno letal. Eram cuidadosos os cidadãos de Mântua. E vergonhosamente, politicamente correctos. Se Shakesperare fosse utilizador das redes sociais, talvez, ele mesmo, considerasse uma infâmia não se ter esclarecido o público sobre esse curioso aspecto.

Que a página do Globe Theatre fosse invadida por centenas de mensagens, também não nos parece uma situação insólita. Na época tinham métodos bastante mais eficazes para expressar o politicamente correcto, nomeadamente, o encerramento do teatro, a prisão dos autores e dos actores, ou simplesmente a monumental vaia, a interrupção da peça, ou o civilizado pontapé directamente aplicado ao rabo dos artistas.

Sobre a mensagem negativa de Romeu e Julieta, quanto ao universo problemático dos jovens adolescentes, que a preocupada mãe de Verona e farmacêutica - imaginada por RAP - julgou necessário noticiar nas redes sociais, para aviso dos futuros amantes, julgamos que, sobretudo neste aspecto, não andará a bela italiana de Verona longe das intenções de Shakespeare ao escrever a peça.

Antes de mais, um ponto de ordem. Se estamos realmente na posse das nossas faculdades mentais (o que não é garantido) julgamos ter compreendido o sentido da ironia do nosso inteligente humorista, RAP. A histeria crítica do nosso tempo - a que alguns chamam o integrismo ou puritanismo do «politicamente correto» - se existisse na época do bardo inglês, teria inibido o poder criativo de Shakespeare. Teria implicado com os poderes artísticos do maior poeta de todos os tempos. Dito de outro modo, se Shakespeare existisse hoje, talvez a sua gloriosa imaginação estivesse (esteja) a ser reprimida por esses infames inquisidores do «politicamente correcto».

Contudo, sou forçado a dizer (embaraçosamente) que Romeu e Julieta é - precisamente - uma peça sobre o «politicamente correcto» e não precisamos de ser escravos da preocupação com as redes sociais para interpretar cabalmente o assunto.

A peça começa com um edital ou a publicação de uma Lei - como muitas das peças de Shakespeare - na tentativa de estabelecer a ordem, perante o desconcerto do mundo. O que revela, desde logo, uma certa ansiedade com a repressão dos comportamentos. Ou seja, Shakespeare era um homem preocupado com o «politicamente correcto». Qualquer pessoa que participasse em distúrbios ou confrontos públicos na cidade de Verona, seria punida com a morte. Shakespeare estaria preocupado com a escalada de violência na sociedade em que vivia, e fez decorrer a acção sobre o absurdo irracional de todos aqueles que, desobedecendo à lei, consideravam os interesses de família, direito e propriedade, superiores ao amor  selvagem entre duas mentes rebeldes. Ou muito me engano, ou isto soa um bocado «politicamente correcto». Mas estamos contigo, RAP, e não nos deixaremos perturbar.


Vamos deixar de lado o facto de Shakespeare ter escrito Titus Andronicus (1592-1594) antes de Romeu e Julieta (1594-1596) pois são pormenores eruditos que não interessam à luta pela liberdade. Com efeito, são muitos os temas que na Lamentável Tragédia de Romeu e Julieta, poderiam ter sensibilizado RAP a construir uma reflexão sobre o mundo em que vivemos. O ataque à luta feudal entre duas poderosas famílias - considerando que as dinastias familiares e os seus fetiches de poder (que o diga a Sonae) já não serviam como fundamento da realidade, numa sociedade cada vez mais entusiasmada com o comércio e os direitos dos indivíduos. Mas RAP não quis abordar o mundo diurno da lei, dos livros e da autoridade, com as suas regras de conduta rígidas, crescendo ameaçador sobre os sonhos de prazer da juventude. Nem mesmo a forma como o velho Capuleto ameaça a sua filha, se esta continuasse a rejeitar a autoridade do pai e a recusar o casamento com Paris, arriscando Julieta, nada mais, nada menos do que a expulsão de casa, da protecção e do conforto, com a multiplicadora violência que esta ameaça lançava sobre uma jovem mulher. Curiosamente, caros leitores (e contra mim falo, de lágrimas nos olhos) Romeu e Julieta - tal como o debate que hoje ameaça engolir-nos - é sobre o direito das mulheres exercerem a sua justa parte num mundo governado por homens. Homens com poder, quase sempre, com alguma tendência para serem parvos e abrutalhados.

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Em todo caso, Shakespeare - e lamento desiludir RAP - está bastante preocupado com as mensagens negativas em torno dos adolescentes, tal como a farmacêutica de Verona, utilizadora do Facebook. Se estivermos atentos à peça, veremos que a criada de Julieta faz menção de recordar - irónica e provocadoramente - como tinha perdido a virgindade aos doze anos. Na verdade, Julieta vê-se confrontada com uma decisão de casar com um homem indesejado, ainda antes de fazer catorze anos. Se RAP estivesse um pouco mais atento (embora compreendamos que a sua luta é exigente e monopolizadora) teria percebido que esse é precisamente o tema central da peça.

Dirão os corajosos defensores da liberdade contra os esbirros do politicamente correcto: «a ironia de RAP pretende apenas denunciar como a deriva inquisitorial dos bons costumes corre o risco de inibir ou reprimir, ou até impedir, a expressão artística no seu mais elevado nível de realização». Certo, estaremos todos de acordo, embora, do meu ponto de vista, os critérios que permitem uma elevada realização artística dificilmente podem ser relacionados com o aumento ou a diminuição da liberdade de expressão, com muita pena o digo.

Ricardo, se me está a ouvir, deixa-me dizer-te: Romeu e Julieta é uma peça sobre o conflito de gerações e a incapacidade de compreender os riscos e a beleza das paixões (aparentemente irracionais) dos novos tempos e dos seus mais frágeis filhos, os mais jovens. A geração mais velha, presa nos seus livros, na sua sabedoria arcaica (e muitas vezes elitista) nos seus direitos de propriedade, nos seus feudos, revela-se quase sempre incapaz de compreender a nova realidade e as suas circunstâncias, a começar por novas formas de amor (pois é, pois é).


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Romeo + Juliet (1996) de Baz Luhrmann com Claire Danes (Julieta) e Leonardo DiCaprio (Romeu). 

Compreendemos que a manutenção de poder dos meios de comunicação de massas seja um tema caro a quem ganha a vida nos meios de comunicação de massas e teme a boçalidade da multidão. Shakespeare também viveu essa angústia, mas revelou-se progressista, abraçou o mercado do teatro isabelino, onde a concorrência era forte e o público soberano, por isso o bardo se apressa a dizer, logo no Prólogo de Romeu e Julieta: «se quiserem ouvir com benévola atenção, o nosso zelo há-de esforçar-se por corrigir o que na peça acharem digno de emenda». Inaceitável contemporização diante do público. Mas perdoemos Shakespeare, pois era um homem «politicamente correcto».

Compreendemos que um humorista como RAP não possa perder tempo com estas ninharias, ocupado a enfrentar multidões perigosas furiosamente teclando nos seus computadores, multidões que vandalizam com horrorosa cacofonia as páginas de Facebook das editoras, dos jornais de referência e das televisões e chegam mesmo a fazer ameaças perturbadoras como: «isso que o senhor disse é machismo». Quem pode resistir a ataque tão violento como este? Quem pode ficar impassível quando os valores da liberdade são atacados por mulheres sensíveis e alfabetizadas?

Compreendemos que RAP tenha de enfrentar irascíveis cardeais munidos com caldeiras de água benta, e donas de casa católicas, frequentadoras dos cursos espirituais dos jesuítas, e perigosas associações de pais de liceus prestigiados, e ameaçadoras advogadas de associações de protecção às vítimas, e selváticas e perigosas jornalistas do Diário de Notícias, e membros de coros alentejanos, e agremiações defensoras da moral pública, com o seu tentacular poder, e ferozes membros da associação dos amigos dos animais, e militantes de grupos activistas defensores da macrobiótica. O número de oponentes cresce todos os dias. Os idosos e reformados já se posicionam para atacar a liberdade e defender os bons costumes. Todos os braços são poucos para travar esta perigosa luta. O inimigo multiplica as suas forças, gerando milhares de pequenos balões de mensagens nas letais caixas de comentários.

Felizmente, temos homens como RAP. Homens que nunca deixarão de lutar em favor da liberdade, apesar de apenas podermos ouvir a sua voz nos frágeis e ameaçados espaços de informação como a TVI24, a Sport TV, a TSF, a Visão ou a Rádio Comercial. Apesar de frágeis, continuarão o seu corajoso trabalho. Não deixarão pisar a dignidade ortográfica da língua.

Guerras, injustiças, desigualdade económica, poder mediático das televisões e dos grandes grupos de comunicação, violências sobre as mulheres, racismo? Que são todas essas ninharias perante a escandalosa supressão de uma consoante surda?

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

A Estranha Ordem das Coisas e a bizarra preguiça intelectual de António Damásio

A ciência está a entrar na sua fase totalitária - o que é uma pena, mas talvez seja uma fase inevitável de qualquer projeto cultural agressivo - e o novo livro de António Damásio, A Estranha Ordem das Coisas, aí está para o provar. 60% do livro (o que não consiste em descrições seguras da biologia evolutiva do cérebro) é formado por banalidades, lugares comuns (e algumas imprecisões) a propósito das culturas humanas. Não tenho por hábito diabolizar a ciência, antes pelo contrário, prefiro diabolizar as Humanidades, mas desta vez julgo que atingimos a fase imperialista do cientismo.

É como se o Boaventura Sousa Santos publicasse um livro resumindo - de forma tosca, rápida e atrapalhada - os últimos 50 anos de publicações nas neurociências, mas omitindo ou lendo apressada e erradamente o contributo dos principais cientistas, e perante esse facto insólito, toda a gente baixasse reverentemente a cabeça. Não pretendo policiar o direito dos neurocientistas dizerem banalidades sobre a cultura. Eu próprio vivo da publicação de algumas banalidades sobre todos os assuntos disponíveis, incluindo a pesca do atum. Já me parece mais preocupante que ninguém até ao momento (que eu saiba) - nem sequer os antropólogos - tenha reagido publicamente a um livro cuja ambição não me parece minimamente adequada às capacidades reveladas pelo autor ao longo do livro. Deixo apenas um exemplo.

Uma parte do que é apresentado como novidade - a precedência (ou pelo menos a enorme relevância) dos sentimentos na criação das culturas humanas (e só esta expressão já faz corar de vergonha uma pessoa educada) - é um problema profundamente discutido, sem conclusões definitivas, na Antropologia, sobretudo desde os artigos de Cliford Geertz, publicados nos anos 70 e 80, para não falar em Levi-Strauss que Damásio arruma numa nota de rodapé, citando bizarramente um único trabalho L'Anthropologie face aux problèmes du monde moderne. Já não refiro Michel Foucault – que o autor despacha sem qualquer referência concreta e ainda dizendo que o seu título (A Estranha Ordem das Coisas) nada deve à publicação em inglês de As Palavras e As Coisas, traduzido como The Order of Things, sendo que Foucault pouco mais fez do que escrever, durante trinta anos, sobre a armadilha das simplificações, na interpretação biológica da natureza, bem como sobre a manipulação cultural dos sentimentos, ou seja, sobre a dificuldade de os interpretar fora de uma ordem (relativa) discursiva.

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Damásio refere que a linguagem e a sociabilidade desfilam na história cultural mas não os sentimentos. Talvez por ser difícil dizer mais do que banalidades funcionais sobre os sentimentos, sem recorrer à linguagem. Eu, que sou um ignorante, tenho a ligeira sensação de que a formação da mente cultural é associada pela tradição da história natural (e pelas Humanidades) à linguagem, precisamente por se identificar que o salto qualitativo e significativo, não se compreende sem a linguagem e a complexidade descritiva (dos estados interiores e da relação com o ambiente) implícita na quase infinita gama de possibilidades permitida pela linguagem (e não pela maquinaria biológica básica sentimental). Podemos explicar por sinais (e analisar como fez Darwin) as expressões faciais, mas isso não permite avançar um milímetro na compreensão da evolução das culturas humanas. Como o próprio Damásio reconhece várias vezes, varrendo a contradição para baixo do tapete, as origens da maquinaria sentimental são humildes e comuns a outros animais. Eureka! Daí os cientistas sociais e biólogos terem escolhido a linguagem (e não uma coisa tão difícil de interpretar como os «sentimentos») para momento chave na evolução cultural. Além do mais, a linguagem é a porta (por excelência) para a análise dos sentimentos, como o próprio Damásio reconhece também, invocando a importância da literatura, e definindo Shakespeare como o maior especialista na sua área. Não se percebe então, para lá da graçola nos jornais, a razão de não ter recorrido a Shakespeare para estruturar o seu livro. Seguramente, a coisa tinha corrido melhor, na forma e no conteúdo.


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Sobre a novidade implícita no livro.

Deixo um excerto de Geertz (inteiramente ignorado no livro, talvez trocado por coisas mais actuais, mas serôdias - o primeiro erro do cientismo é considerar a novidade cronológica como valor em si) com respectiva citação, para os interessados pesquisarem depois, se quiserem, e confrontarem com algumas das banalidades escritas por Damásio (quando fala de cultura e história cultural) e para os desconfiados a quem passa pela cabeça neste momento a hipótese de eu ser um pobre pedante, sem noção dos meus limites e indiscutível estupidez, por descrever nestes termos o trabalho do senhor professor doutor António Damásio.

«And therefore, the development, maintenance, and dissolution of "moods," "attitudes," "sentiments," and so on - which are "feelings" in the sense of states or conditions, not sensations or motives - constitute no more a basically private activity in human beings than does directive "thinking." The use of a road map enables us to make our way from San Francisco to New York with precision; the reading of Kafka's novels enables us to form a distinct and well-defined attitude toward modern bureaucracy. We acquire the ability to design flying planes in wind tunnels ; we develop the capacity to feel true awe in church. A child counts on his fingers before he counts "in his head"; he feels love on his skin before he feels it "in his heart." Not only ideas, but emotions too, are cultural artifacts in man. Given the lack of specificity of intrinsic affect in man, the attainment of an optimal flow of stimulation to his nervous system is a much more complicated operation than a prudent steering between the extremes of "too much" and "too little." Rather, it involves a very delicate qualitative regulation of what comes in through the sensory apparatus ; a matter, here again, more of an active seeking for required stimuli than a mere watchful waiting for them. Neurologically, this regulation is achieved by efferent impulses from the central nervous system which modify receptor activity.» 

Geertz, The Growth of Culture and the Evolution of Mind, The Interpretation of Cultures, Basic Books, 1973, pp. 81-82.

 Esta "novidade" foi publicada em 1973.


Camaradas! Não se trata aqui de esgrima sobre notas de rodapé. Trata-se de uma guerra pelo estatuto e mais uma prova de como as Humanidades estão em irreparável perda, em parte por culpa própria, por ignorância, cobardia e situacionismo dos senhores professores doutores em Humanidades. Todo este ensaio de Geertz é impressionante - e fundamental para o tema abordado por Damásio - e posso garantir que dificilmente lerão algo tão rigoroso e profundo, no que respeita à relação entre sentimentos, evolução, mente e cultura, no livro de António Damásio. O livro A Estranha Ordem das Coisas merecia uma estranha discussão à altura da terraplanagem nele contida, mas suspeito que o silêncio vai reinar como uma imperatriz asiática.

Isto é decisivo para o ponto principal desta minha esfusiante indignação: Damásio parte de uma ideia - a de que os sentimentos são um motor decisivo das culturas - apresentando-a como novidade, ou seja, lançando para o caixote das irrelevâncias três séculos de estudos em Humanidades. O que dizer do total silêncio a que vota Rousseau, um homem para quem, até às suas dolorosas lágrimas derramadas na estrada de Vincenne, a enorme preponderância dos sentimentos não tinha sido tida em conta na análise da cultura, das artes e das ciências?

Não resisto a brindar o leitor com uma entusiasmante novidade:

«Pretende-se que a linguagem dos primeiros homens corresponda à língua dos geómetras, mas o que nós vemos é que ela tem antes que ver com a língua dos poetas. E assim deve ter sido. Não se começa por raciocinar mas por sentir. Diz-se que os homens inventaram a fala para exprimir as suas necessidades, mas esta opinião parece-me insustentável. (...) Qual seria então a sua origem? As necessidades morais, as paixões. (...) Não foram nem a fome nem a sede mas sim o amor, o ódio, a piedade ou a cólera que pela primeira vez soltaram a fala dos homens. (...) Os frutos não nos fogem das mãos, podemo-los comer calados; é também em silêncio que se persegue a presa que se pretende abater - mas para conseguir comover um coração ainda inocente ou afastar um agressor injusto é a natureza que nos dita os seus acentos, exclamações ou lamentos.» 

Esta simples conclusão acerca da importância dos sentimentos na história cultural - apresentada por Damásio como novidade - foi escrita por Jean-Jacques Rousseau, no Ensaio sobre a Origem das Línguas, provavelmente, entre 1753 e 1756 e publicada apenas postumamente em 1781. (edição portuguesa, 1981, Estampa, pp. 47-48)

Isto acontece, apesar de António Damásio referir logo no prefácio como as Humanidades são importantes. Sim, importantes, sobretudo como público comprador dos seus livros e consumidor da sua ciência, e para utilizar como emblema na lapela do casaco, citando Shakespeare, pois a forma olímpica como Damásio contorna a biblioteca das Humanidades, o que empobrece o seu trabalho, é verdadeira e espetacularmente, digamos, acrobática. 

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Com a exceção de Hume, Marx, Durkheim, Freud e o inclassificável William James, Damásio praticamente não considera relevante abordar as ideias de autores provenientes da tradição histórica, filosófica e antropológica. Chega a falar da forma como se tem negligenciado o intestino como fenómeno de equilíbrio homeostático, quando para além dos gregos (não exijo o conhecimento de toda a tradição peripatética) por exemplo, Nietzsche escreveu e muito sobre o tema. E o que dizer da lateralização de Adam Smith e das suas impressionantes tentativas de circunscrever uma teoria dos sentimentos morais? A leitura de Smith teria impedido Damásio de escrever os confrangedores parágrafos a propósito de lucro celular, lucro social e ganância.

Para os mais desatentos, o que Damásio acaba por fazer, mesmo involuntariamente, prolongando um imortal debate, é defender a precedência de uma natureza universal (neste caso sentimental) sobre a cultura, com tudo o que isso significa de homérica ignorância sobre a força do hábito, e das segundas naturezas, e sobre as armadilhas dos projetos educativos e éticos, baseados em coisas tão imprestáveis como o conceito de virtudes clássicas. Como já dizia Tucídides, «sagradas são as armas quando só nelas reside a esperança». Talvez Damásio queira explicar a sua teoria educativa aos terroristas, quer os árabes, quer os cristãos, ou talvez os considere como ignorantes, a precisarem de ser educados, ou doentes mentais, a precisarem de internamento, ou talvez reconheça que o contexto das culturas humanas evolui sobre as manipulações da linguagem, a retórica e a escultura dos «sentimentos» e que a compreensão das coisas implica sempre uma certa violência sobre as coisas.

Como não sou um guru académico, não vou cair na tentação de me pronunciar sobre o tema, e fujo cobardemente para a minha irrelevância, mas não deixo de vislumbrar - e este é o sentido deste longo, desagradável e aborrecido post - um certo facilitismo da parte de António Damásio. O que me custa, num autor pelo qual sinto (lá está) um certo respeito.

Deixo uma prova final com a retumbante conclusão a que Damásio chega depois de milhões de anos de análise do caldo de bactérias até às sinfonias metafóricas do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, com que nos brinda para nos elucidar – como se fosse preciso, valha-nos Deus - sobre a complexidade da relação entre sentimentos e consciência:

«A educação, no sentido mais vasto do termo, é o caminho óbvio a seguir. Um projeto educativo a longo prazo que tenha como objetivo criar ambientes saudáveis e socialmente produtivos terá de destacar comportamentos éticos e cívicos e de encorajar as virtudes morais clássicas - honestidade, bondade, empatia e compaixão, gratidão, modéstia.» A Estranha Ordem das Coisas (p. 307).

Saúde e Produção. Ética e Cidadania. Valha-nos Deus, pela segunda vez! Se isto é o que um especialista sobre a Vida, os Sentimentos, as Culturas Humanas (um tema supermodesto, note-se) tem para nos dizer, estamos perdidos. Consta que no Médio Oriente tentaram este projeto educativo, há cerca de 2000 anos, e não tem corrido muito bem. Em parte devido à nossa propensão (Ocidental) para a saúde e a capacidade produtiva.

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No fundo, António Damásio prescreve como modelo para a educação da humanidade o professor doutor António Damásio.

Bem sei, o professor doutor António Damásio trabalha respeitosamente dentro das disciplinas mas quer dinamitar os limites das disciplinas. Contudo, não se pode ter sol na eira e chuva no nabal, como bem diz o povo, que não vai à escola, mas tem sentimentos.