domingo, 16 de junho de 2013

Breve faena, que estou de ressaca da noite anterior

Quem não tem andado arredado do mundo, com certeza que já ouviu notícias sobre o PRISM, a operação ultra-secreta começada na era Bush e continuada pelo Obama, para espiar tudo quanto é comunicação. E quem já tinha atingido a idade da razão nos idos anos 90, certamente lembra-se do Echelon. Até aqui não há novidades.

A estória começa a ser interessante quando os liberais, tão preocupados com a liberdade e privacidade individuais, começam a gritar aqui d'el rey, que o grande irmão está a tomar forma. Ó da guarda que vamos todos a prazo conhecer como é a vida na Coreia do Norte.

O que me faz pensar por onde tem andado esta gente nos últimos 20 anos. Desde o Google, passando pelo Facebook e terminando no cartão de cliente do Continente, todos nós damos informações da nossa vida privada a empresas que depois se ocupam a monetizar essa informação. Nesta frase, enfâse nos verbos dar e monetizar. Assim sendo, que é a vigilância governamental senão o governo da nação a se modernizar e seguir os ares do tempo ?

O contra-argumento de tão óbvio que é até doi.  A informação dada às empresas é dada de livre vontade, e regra geral contractualizada em "termos de serviço". O governo por outro lado não contractualizou com ninguém esquadrinhar a vida privada.

Certo, mas olvidem por um momento a bola e concentrem-se na canela. As empresas alegam utilizar informação privada sobre nós para nos oferecerem melhores serviços e no processo lucrar meia-dúzia de tostões. Por outro lado o governo alega coleccionar registos das nossas vidas privadas para nos proteger do terrorismo. Estamos a falar da motivação para invadir a privacidade de cidadãos e não da utilização eventualmente dada à informação recolhida.

Portanto, é imoral a invasão de privacidade quando o motivo é a protecção e segurança da sociedade mas é perfeitamente moral quando o motivo é o lucro ?

quarta-feira, 12 de junho de 2013

O Primo Levi morreu em queda numa escada interior de um prédio de Turim, local onde, curiosamente, tinha nascido umas décadas antes, ele há coisas, prédio por certo respeitável e sinistro, como são todos os prédios com escadas interiores mal iluminadas, uma morte estúpida, ele há coisas, e isto umas boas décadas depois de um épico regresso a Turim escapando à morte com fúria e determinação, ele há coisas, a cavalo, a pé, num soviético comboio de mercadorias, perfurando florestas selvagens e cidades fortificadas do centro da Europa em ruínas, onde às vezes uma jovem rapariga ídiche muito bonita esperava sentada com a sua malinha e o vestido coçado da deportação, em estações desertas sob a chuva impiedosa e desumana deste velho continente, por isso, meus amigos, meus amigos, temos tempo, meus amigos, temos tempo.

Quem tiver dúvidas sobre a matéria dada pergunte à Sara Norte. Eu gosto muito de pessoas que choram na televisão. Nem sei para que serve a televisão se não for para chegar ali e nos desfazermos em lágrimas. Julgo que as velhinhas de bata e permanente (quem raio terá inventado a permanente, a maior ofensa contra as mulheres?) durante séculos votantes em António de Oliveira Aníbal Cavaco Silva Salazar, também partilham desta opinião. Há qualquer coisa de muito profundo nestas lágrimas mas não sei ainda dizer o quê. Podia ser uma samaritana enxugando com os cabelos perfumados os pés daquele judeu maltrapilho e caminhante. De qualquer modo, as lágrimas são as mesmas. A Fátima Lopes, por exemplo, é uma mulher muito bonita, maternal, atenciosa, olha com aqueles grandes olhos de sacerdotisa experimentada, há muito solitária num templo tão antigo que foi necessário atualizar a língua na qual era expresso o nome da divindade, um templo já coberto de hera. Mas a Fátima Lopes olha para os convidados e o que resta fazer aos convidados? Desfazem-se em lágrimas, claro. E a Fátima Lopes, tranquila, às vezes pega-lhes na mão, e fala muito baixinho mas de modo firme. Que faríamos nós nesta situação? Ficaríamos sem saber se lhe enfeitávamos de grinaldas o cabelo, ou derramaríamos lágrimas no seu colo ou outra coisa qualquer. Fica desde já prometido um comovido pranto na minha primeira entrevista, altura em que o leitor exclamará: com que então, o alf era este gajo? Tanta coisa para isto. Boa merda.


E o mundo continuará o vibrante enrolamento em torno de si próprio e os leitores ficarão felizes por terem descoberto o mistério das coisas, inteligentes, profundos e desconfiados perante todas as formas de intenção, muito orgulhosos perante o seu sarcástico julgamento de todas as formas de discurso ornamentado, a começar pela literatura. E olharão para as plantinhas da sala, passivas e desmaiadas com o calor do Verão, abandonadas na sua posição vegetal, e darão por bem empregue o tempo nunca dedicado a projetos de indagação interior, ou à produção de discursos comovidos sobre tragédias pessoais. Darão sardónicas gargalhadas perante as elucubrações acerca da natureza humana, e sorrirão irónicos e satíricos diante dos inquéritos em torno da essência das coisas, pois parece que o movimento e a metamorfose, e as coisas todas muito obscuras e difíceis, e aqui, normalmente, alguém muda de argumento e diz: não, de modo algum, meu caro, pelo contrário, as coisas são muito simples, muito simples, tão simples que chega a ser humilhante - e surgem as habituais objeções, as perguntas, o cansaço. Com sorte alguém nos acusa de onanismo, na pior das hipóteses somos ignorados. Mas já o senhor Deus dizia, nem um dos teus cabelos será confundido. Contudo, é estranho, porque ainda hoje o ralo da banheira ficou quase preenchido por uma pequena barragem de restos capilares indignados perante a sua sorte, e quando os vi descerem canalização abaixo sem apelo nem agravo, fiquei melancólico com as gotas do chuveiro a pingarem num fio triste e cadenciado no alto da minha cabeça estúpida e irrelevante. Caramba, que trabalheira lá nos serviços administrativos de Deus. E foi então que me deu para vir aqui dizer qualquer coisa de substancial, fazer prova de vida, dizer a todos os bravos resistentes o quanto é difícil a escalada (só ontem, foram mais dois títulos de romances marcantes e inesquecíveis lançados para os escaparates, e depois, lá dentro, o mesmo de sempre, mediocridade sem capacidade de esconder a mediocridade). Ao menos eu, procuro escondê-la, e tenho sido bastante eficaz nessa tarefa. Até ver, ninguém me pode acusar de ter publicado livros medíocres. Falta o resto. O mais difícil, o mais difícil, dirá aqui com vigor e propriedade um coro grego digno das responsabilidades que o assistem na definição dos grandes momentos dramáticos. Já vos disse que tenho um conto intitulado «Conflito com um coro grego?»