segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A verdadeira entrevista de Sasha Grey.

 
Hoje é um dia muito triste para o jornalismo português. O jornal i pretendeu acompanhar o lançamento do fabuloso livro da não menos fabulosa Sasha Grey, Juliette Society, mas as verdadeiras intenções do referido jornal apenas neste blogue são reveladas: esconder o génio da autora e desviar as atenções de um misterioso manuscrito. Com um título canalha e mistificador, escondem a arejada luminosidade da manhã da ressurreição presente na verdadeira entrevista de Sasha Grey. Mutilar uma entrevista, eis um desígnio de que não julgávamos capaz o jornalismo nacional. A entrevista não foi concedida a Clara Silva, mulher respeitável e portadora de uma desarmante cultura literária, é verdade, cujos espirituosos amigos envergam camisolas de Motörhead e pedem para comparecer nas suas estimulantes entrevistas. A entrevista foi concedida, isso sim, a um conhecido jornalista português, alegadamente o autor de O homem de Constantinopla. Sim, foi ele o verdadeiro entrevistador de Sasha Grey. Por motivos graves e secretos, desvendados em seguida, uma vez que O Elogio da Derrota teve acesso aos preciosos materiais, as estrondosas declarações desta rapariga oriunda do Estado da Califórnia foram miseravelmente desfiguradas. Mas a verdade vai ser reposta. Tal como as recordações da infância estão para os sonhos, e as ruínas romanas para alguns palácios barrocos da cidade eterna, também o conjunto de declarações publicadas pelo i não representa mais do que a pálida sombra das esplendorosas palavras que se seguem, essas sim, verdadeiras. Palavras portadoras de asas, e prontas a penetrar os recessos fabulosos da curiosa mente do leitor.

 
José Rodrigues dos Santos mordisca a caneta, tamborila os dedos na mesa, pisca duas vezes o olho direito, limpa a boca com um lenço de linho, trauteia um corridinho algarvio, e dispara:
 
- De onde surgiu a ideia de escrever um romance erótico?
- Se reparar no triste desempenho da literatura erótica contemporânea verá que a multiplicação do mau-gosto não é proporcional à coragem moral. Pior do que isso, o mais radical dos viciosos escritores do século XX, na medida em que se comprometeu em determinando ponto do caminho com a multiplicação do sucesso comercial, perdeu toda a virilidade mórbida e diabólica dos libertinos, cujo projeto de expressão servia única e exclusivamente a sua própria depravação. Usavam o sucesso como ariete e preferiam mil vezes o anonimato de uma luxuriante alcofa a qualquer raciocínio público. Enfrentaram a prisão com uma abnegada piedade que não chegámos a ver em Gandhi e nunca veremos num Santo Padre. Não há coleção de pornografia contemporânea capaz de invocar o estremecimento de uma página de tinta manuscrita a pena de ganso, sob a luz da mesma vela onde escorrega a escaldante lágrima de cera, a caminho da ateniense anca da criada analfabeta, cujo dorso repousa entre alvos lençóis, enquanto lá fora os cristais de neve lembram a natureza geométrica e proporcional de toda a forma de vida. Sem o archeiro do mal como glorificar o sofrimento virtuoso? Estamos menos inibidos, é verdade, mas quem é capaz de garantir não ser esta a mais paradoxal das armadilhas. Creio que foi um francês e grande amante dos libertinos o primeiro a definir a história da repressão sexual como uma progressão para a visibilidade. Nunca o seu contrário. 
 
A Sasha é uma mulher lindíssima, mas não sei se isto me é sugerido pelas proporções do seu rosto, ou por um determinando ponto de vista, note-se que o meu pescoço é sem dúvida monumental. Logo no início do livro fala de “120 Dias de Sodoma”, um clássico do inestimável marquês de Sade. Na cultura latina há um verdadeiro mistério historiográfico: o coração da depravada Roma, e mesmo o famoso deboche de cidades como Alexandria, Hipona, Damasco deram origem a um mediterrâneo onde a vigilância do desejo tem sido associada, pelos mais sagazes historiadores, ao perdurar das formas mais arcaizantes das relações sociais.  A Sacha é uma mulher onde, não certamente por acaso, corre sangue grego, irlandês e polaco, três vértices de um esquisito triângulo da mais abrutalhada censura religiosa do sexo...
Acho o tema completamente irrelevante. Isto é uma tentativa para me determinar como libertadora dos povos latinos e oprimidos? Confesso que o projeto não me atrai. Sabe, tive a minha conta de atletismo sexual (não o recomendo ao José porque me parece incapaz de apreciar o confronto com os seus próprios limites, limites certamente distantes, ou mesmo insondáveis). Por agora, interessam-me sobretudo perguntas sobre um estranho manuscrito que ontem me chegou às mãos e sobre o qual a imprensa portuguesa mantém um sepulcral silêncio.
 
E porque é que isso acontece?
Não sei... Maturidade... Ou falta dela. [risos]. Talvez o senhor saiba explicar o sucedido, uma vez que o título do manuscrito parece parafrasear uma recente obra sua.
 
 
Não me diga?
Digo, digo. Eu tinha chegado a Lisboa há pouco mais de uma hora. Caía uma chuva oblíqua e alguém referiu a importância de conhecer o triste e melancólico efeito das ruas paralelas do centro histórico da cidade. Aqui um tal de Fernandez Pessoa transformou-se num rendimento social de inserção cultural, não havia como evitar a fotografia junto à estátua esverdeada. A chuva incomoda-me, mas mesmo assim, subi até um largo onde duas Igrejas neoclássicas apontam a agulha dos frontões para o inominável céu de Lisboa. O que antes foi um porto internacional, com tragédias secretas, estivadores cicatrizados, prostitutas galegas, pareceu aos meus olhos, sofridos mas rigorosos, um lugarejo pacato, muito provinciano. É verdade que não há estudante do liceu que não refira o particular como lugar do universal, todavia, interpõe-se sempre nessa metamorfose um critério racional, a construção inteiramente artificial (nem particular, nem universal) de um ponto de vista, e essa operação, como sabe, não é para todos. É para mágicos, eruditos, encantadores e calculadores automáticos. Sabe, os grandes espaços americanos, as nossas árvores de sangue e as colinas desérticas pontilhadas de catos e carcaças de bovinos, tornaram-me indiferente às especulações metafísicas do pequeno-funcionalismo europeu, educado na cultura clássica dos colégios ingleses, sempre com as mãos suadas de passarem a adolescência a sonhar com as ancas da tia solteira, ou na pior versão, com a velha governanta da casa dos pais. Estando eu nestas considerações, um velho amigo da Califórnia, e autor de um blogue obscuro, telefonou-me. Meia hora depois, almoçávamos junto à antiga Alcáçova (é assim que se diz?) do Castelo. Com uma voz abatida referiu o facto de as roseiras, com os seus pingos escarlate, serem o mais perfeito comentário ao sofrimento vicioso. Depois deste estranho prólogo, palpou com a mão esquerda uma fratura na pedra marmoreada da mesa, e abriu uma velha mochila azul. Com as mãos trémulas (é um requintado apreciador de café) tirou um caderno verde e traduziu-me de imediato o título: O rapaz da periferia.
 
 
O rapaz da periferia? Que  tem isso a ver com O Homem de Constantinopla? A senhora está a começar a parecer-me um Jorge Luís Borges da pornografia.
É engraçado, não me importo com essa comparação. Se querem comparar-me a alguém que vendeu milhões de cópias sem escrever um romance, OK, espero que isso faça alguma coisa por mim [risos]. Mas somos duas pessoas diferentes, de backgrounds completamente diferentes. Isso é a coisa boa da escrita, como na música, podes vir de onde quiseres e ser quem quiseres, toda a gente te dá uma oportunidade. Estou a lembrar-me de um conto de Borges, «O Guerreiro e a cativa» onde se destaca o contraste entre a figura atroz de um bárbaro e a sua doce simplicidade. Todas as coisas possuem aspetos contraditórios, até o amor de uma cativa, em geral, puro e sofredor, ou o desejo de um selvagem, em geral, intenso e violento. A fonte é um velho historiador latino, Paulo Diácono (e não me venha novamente com simplificações culturais sobre a soteriologia e a evolução sociológica dos países da Europa meridional) mas o argumento central da narrativa aponta para a similitude entre duas histórias, com desenlaces paralelos. Os desamores entre cativos e civilizados são uma e a mesma coisa. Mas podemos também ver aí a sucessão do tempo como um gerador automático de oportunidades. Nesse sentido, o indivíduo de sucesso vive ameaçado pelo fluir do tempo, enquanto o derrotado anónimo pretende cavalgar o fluxo dos acontecimentos e todos os dias se deita confiante na luz da manhã seguinte. Entre vitorioso e derrotado, florescem todos os dias novos infernos, simulacros, a perplexa seta de bronze apontada ao acaso. Contudo, eu pretendia era mesmo saber por que razão as redações dos jornais, após os meus contatos, não noticiaram a informação inscrita logo na primeira página do primeiro capítulo de O rapaz da periferia?
 

Ora, não posso responder a isso. Não tenho o mínimo conhecimento sobre essa pseudo-obra, anónima, é a primeira vez que oiço tal coisa. Mesmo que por qualquer motivo o conteúdo justificasse um apontamento breve, as contenções orçamentais, a autonomia jornalística, a sagrada liberdade de imprensa são justificações mais do que bastantes. A Sasha vai ficar muitos dias em Lisboa? Quem sabe se me mostrar o manuscrito, talvez tenha uma ideia do que seja, e logo se vê o que posso fazer por si.
Isto é uma tentativa de encontro?

 
Já agora, ganha-se muito dinheiro com a pornografia ou quem ganha é quem produz os vídeos?
As produtoras e as distribuidoras é que fazem a maior parte do dinheiro: tal como com os livros do walter hugo mãe, aliás. Embora nesse caso ninguém se preocupe com as propriedades pornográficas do fenómeno. Devo esclarecer que, em geral, a pornografia não está a salvo do desafortunado carrocel das expetativas. Keynes, um homem que entregou parte da sua  vida ao estudo das probabilidades, tinha um interesse desmesurado na ilusão como disciplina do pensamento. As estrelas, sejam porno ou siderais, não são o que as pessoas pensam que são. Só há uma pessoa na indústria de entretenimento para adultos com um jacto privado... o Larry Flynt, criador da “Hustler Magazine” e não há registos de algum dia se ter mostrado particularmente rigoroso em relação à posição das constelações, quando por acaso, desfere com velocidade um golpe de luz no véu da noite. As pessoas dizem que é a indústria de mil milhões de dólares e é, mas estás a falar de brinquedos, de clubes de strip, de lingerie... Mas é bom dinheiro para quem tem 18 ou 19 anos. Quer dizer, a menos que tenhas uma inclinação tecnológica e desenvolvas algum software... Não é o salário normal que ganhas com essa idade, por exemplo a trabalhar num restaurante enquanto estudas… Mas já saí da indústria há quatro anos e tenho ouvido números bizarros.
 
 
No livro tem várias referências cinematográficas e agradece a Godard, Fellini, Buñuel… De que maneira é que estes realizadores  influenciaram o seu trabalho?
Está a tentar desviar a atenção do público com essas perguntas tolas? Tenho todo o prazer em indicar literatura especializada sobre o assunto. Aliás, creio que foi Gary Becker, o prémio nobel da economia casado com uma iraniana a escrever um artigo que talvez não ficasse mal na sua mesa de cabeceira.
 
 
Ai sim? Qual?
De Gustibus Non Est Disputandum (1977). A produtividade analítica do sistema de preços na era da economia de mercado (e dos prémios literários) tem a propriedade de penetrar todos os nossos gostos, até uma explicação sobre o número de filmes pornográficos consumidos, sei lá, pelas freiras de todo o mundo, vá. O problema é que insistimos em espreitar pelo buraco da fechadura, com os tornozelos atados por uma ansiedade nascida do nosso respeito pelos rendimentos marginais decrescentes do prazer sexual. Não seria melhor abrir a porta, e dirigir a quem de direito as nossas aspirações e interesses, testando os nossos medos numa base racional, partindo para uma ampla discussão sobre a origem dos nossos mais secretos comportamentos? Não devemos travar a nossa curiosidade só porque, aparentemente, os dados racionais acerca das nossas preferências se apresentam como uma caixa negra, seja a natureza, o espírito de deus bailando sobre as águas, ou as leis do equilíbrio geral. O cérebro humano é a última fronteira e o senhor fala-me de cinema. Câmaras, teorias do movimento e efeitos físicos dos impactos da luz sobre os objetos são coisas do século XVII. Fala-me de linguagem, de números computáveis, da teleologia e dos limites do raciocínio paralelo quando pudermos montar, a preço chinês, circuitos integrados com a mesma capacidade da nossa triste esponja cinzenta: cerca de 20 milhões de biliões de cálculo por segundo.

 
É amiga do Julião Sarmento. Como é que o conheceu?
Que raio de história é essa do Julião Sarmento? Não conheço nenhum Julião Sarmento. Quem é o Julião Sarmento?
 
 
O Julião Sarmento diz que é uma das pessoas mais inteligentes que conhece.
Ora, isso vindo de uma pessoa chamada Julião Sarmento deve ser mais ou menos como perguntar a um gorila quem é a pessoa mais delicada que conhece. A verdade é que fui interrompida várias vezes ao longo desta entrevista e não posso deixá-lo terminar este triste espetáculo sem esclarecer alguns dos factos já adiantados. Primeiro: vou garantir a publicação on-line de O rapaz da periferia, em fascículos num blogue intitulado O Elogio da Derrota (reservo explicações para mais tarde). Segundo: vou entabular diversos contactos junto de alguns dos mais influentes críticos para que o manuscrito seja divulgado. Terceiro: enviarei uma segunda vez para a imprensa a pequena nota, por mim redigida, com a sinopse do manuscrito, e agradeço desde já, a sua publicação.
 
 
O rapaz da periferia, Lisboa, 2013
anónimo, manuscrito a tinta azul e preta, caderno de tipo «Sebenta», 134 pp.
 
António Antão trabalha num loja de computadores num bairro suburbano da capital. Nos seus tempos livres, coleciona edições de jornais desportivos amarelecidos pelo tempo, e aposta nos mais variados jogos de azar, multiplicando cálculos nas costas de papéis velhos. Usa sempre lápis e engana-se repetidamente nas operações de subtração. Gosta de pássaros. Se lhe perguntam por que não usa um calculador automático, António responde que não gosta de misturar prazer com trabalho. Desenvolveu um gosto mórbido por literatura marxista dos anos 60 e 70 mas não gosta de pornografia russa. Atravessou o rio da sua cidade um milhão de vezes, viu levantar a bandeira de um santo degolado, numa noite de insuportável calor. Rasgou uma página de Proust no cimo da Torre Eiffel, bebeu vinho quente numa ilha portuguesa no preciso momento em que uma gaivota se preparava para morrer, copiou fórmulas incompreensíveis numa edição de Camões comprada numa velha livraria e só depois notou o velho carimbo da Biblioteca de uma Universidade Africana, comeu morcela de sangue no meio de uma floresta de abetos, mediu a altura de uma criança cega apenas com o auxílio da memória e do dedo indicador erguido contra um céu macabro e plúmbeo.

Certo dia, casualmente, uma tia (lá está) regressada de África oferece a António Antão o último dos sucessos literário do seu país. Ao abrir o livro, depara-se com uma enigmática dedicatória («917897680 Liga-me, é muito urgente»). A tia, entre referências à Santíssima Trindade e um variado e rico leque de ofensas a um conhecido líder democrático socialista, não consegue explicar aquele rabisco na folha de rosto do livro, jurando ter comprado o presente nessa mesma manhã. Como demonstração da sua integridade e poder financeiro, a tia Ermelinda Antão agita esbaforida, entre as garras nodosas, um talão de compra com a data desse mesmo dia. Dois dias depois, numa especular manhã de Inverno, António decide comunicar, através desse número, e mergulha numa aventura sem precedentes. Sexo, intriga e espionagem. Numa luta contra sociedades secretas, economistas mefistofélicos e banqueiros cripto maníacos, António vai aprender os limites do amor e atravessar as fronteiras da morte. 

A meio do caminho da sua vida, encontra Anastácia Karenina, uma descendente de ucranianos, e jovem estudante de história de arte, uma deusa do sexo, praticante de artes marciais, e especialista na teoria arquitetónica do Renascimento.  Aos 21 anos já tinha publicado numa conhecida revista internacional  um artigo intitulado «Statistical demonstration to save the W. Kula theory of the feudal mode of production», Harvard Marxist Review, 2011, pp. 24-46. Aos vinte e um anos e um mês Anastácia pintou nos seus cabelos de fogo uma madeixa esmeralda, a cor dos seus olhos felinos, amendoados. Esbofeteou um polícia numa estação alemã, visitou Tóquio sem qualquer peça de roupa interior, respeitou as proibições religiosas nos templos da Sicília, viu o amanhecer numa colina escocesa, ouviu as doze badaladas numa igreja contemporânea de Nuremberga, mergulhou as mãos frias nas águas quentes de uma praia de S. Salvador da Baía. Depois conheceu António Antão e concentrou-se num único objetivo: desvendar o mistério «daquela voz doce, maquiavélica e desesperada», assim descreveu António a mulher cujo número foi inscrito na página daquele livro. António e Anastácia vão salvar a Europa de uma conspiração horrorosa. Se julga que está vivo, leia esta história, e nada mais será como dantes.
 
 
Boa tarde. Em que posso ajudá-lo?
 
O Dr. Claude Shannon, o nosso advogado e representante, estará disponível para prestar todo e qualquer esclarecimento.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Jorge Jesus: o último samurai.

The sucessful man adapts himself to the world. The loser persist in trying to adapt the world to himself. Therefore all progress depends on the loser.

Paráfrase do grande Simon Leys a um aforismo de Sir George Bernard Shaw, no espetacular The Hall of Uselessness: Collected Essays


Retribuindo a extensa atenção dispensada pelos meus leitores internacionais (lembro que a China lidera de longe o número de visitas desde blogue) quero começar por esclarecer que Jorge Jesus era o treinador de um clube desportivo de Lisboa no longínquo ano de 2013. Mas o seu caso serve aqui apenas como tipo sociológico, e pisco desde já o olho a  Maxi Weberiano Pereira, no nosso propósito de uma reflexão geral, irreversível e perigosa: saber até que ponto a violência pode ainda redimir-nos como povo, como nação, enfim, como conjunto de pessoas dotadas de braços e pernas. Atenção, não estou com isto a fazer uma apologia da violência - não comecem por me interpretar erradamente para não acabarmos em bizantinas explicações sobre os universais, a filosofia de Abelardo, o papel de Wittegenstein como socorrista na primeira guerra mundial -, ou não vivêssemos nós abraçados a um sistema político onde ser afirma deter o Estado (e não o Estádio) o monopólio da violência, isto segundo Maxi Weberiano Pereira. Vamos seguir antes noutra direção e chamo desde logo a atenção dos meus leitores para a palavra monopólio. Num tempo em que o efeito de «monopólio» é perseguido com talibânico zelo, não se terá oferecido Jorge Jesus - como cordeiro na pedra fria do altar do sacrifício - no sentido de entregar ao mercado a escolha sobre os titulares da utilização da violência? Por académica consideração vamos supor que sim, Jorge Jesus decidiu enfrentar o monopólio da violência, concorrendo com a Polícia, a republicana e a de segurança pública, os pretos da Cova da Moura, a marinha, os ciganos, o exército, e o Adelino Caldeira. Não terá Jorge Jesus introduzido os seus braços entre estes prestigiados players da trolha, apenas com o inocente e abnegado propósito de lançar o debate sobre o que é uma polícia democrática e qual é o papel do cidadão no contributo para a democratização da polícia?

 
Jorge Jesus executa o SakapuKiri, ou lá o que é, numa tentativa de resolver a situação sem recorrer à violência.

Claro que debater esta questão significa enfrentar as sagradas leis da previsibilidade, da segurança e dos consumos intermédios do Estado, nomeadamente em viagens turísticas nos estádios portugueses, para não falar dos coletes refletores com a expressão: Polícia. O saudoso Maradona, nos seus tempos de ser vivo, costumava exercitar-se em manifestações de adoração em relação à violência policial em nome do Estado Constitucional, amen. Eu também gosto muito da violência policial mas não de toda a violência policial, por exemplo, não gosto da chamada violência policial desproporcionada. Ora, estando nós num país mergulhado em corrupção, onde se desvalorizam todos os monopólios estatais, a começar pelo da educação, é sintomática a nossa contínua e inabalável respeitabilidade dos atos policiais. Não que eu pretenda subscrever o preconceito das pessoas que consideram Karl Marx o maior pensador de todos os tempos - sobretudo em arruaças com manifesto vandalismo urbano - mas não posso deixar de considerar interessante que ninguém queira pagar impostos para se pagar principescamente -e apertar violentamente os critérios de seleção - das forças policiais, mas esteja sempre toda a gente olimpicamente disposta a reivindicar direitos penais de proteção, repressão, explosão, recurso a masmorras, matracas, juristas vociferantes, manadas de elefantes para defender a polícia, sobretudo quando a polícia arreia em pessoas em inferioridade numérica e desarmadas. Não seria melhor pagar mais aos senhores polícias e proteger menos os senhores polícias? Segunda questão: é preciso as pessoas envolverem-se em «gravatas e cafricos» e golpes de karaté para devolver uma pessoa, aparentemente pacata, à bancada de onde proveio? O cidadão é obrigado a respeitar os códigos em todos os contextos? Não são as contradições entre legitimidades precisamente o banquete onde os juristas se deliciam com as suas saborosas piruetas argumentativas?

 
Depois da Descida da Cruz, de Caravaggio, não há melhor que isto na paleta visual dos últimos séculos. Tentativa de arrancar a cabeça, por parte dos seguranças e Polícia, a um cidadão português munido com a camisola de Ola John, outrora uma criança nascida na Libéria, e hoje arma secreta do maior clube português de futebol. À esquerda, Cardozo, o paraguaio, que representa borgianamente o labirinto do amor clubístico, coloca a mão direita sobre o sagrado ombro de um elemento da Polícia de Segurança Pública.
 

Estaremos todos de acordo: a polícia defende a nossa segurança como até um burro do tamanho do Jorge Gabriel consegue vislumbrar entre as pausas jornalísticas de cada uma das suas amplamente complexas frases, e aí estão os códigos civis e penais para eloquente demonstração dos especiais direitos de proteção de que goza a polícia. O leitor afine agora os seus dotes de perceção pois o meu argumento vai entrar de seguida escoltado por fanfarra, bombeiros de capacete reluzente, criancinhas trajadas de anjo, e bandeiras franjadas.


 
Jogadores do Benfica exercitam movimentos «Samurai», industriados pelo mestre Jorge Jesus San


A cultura da Europa ocidental e contemporânea ergue-se contra o fluir inexorável do tempo. Mas os orientais servem de boa vontade o fluxo da sucessão natural das coisas, ou não tivessem eles inventado os primeiros relógios mecânicos. A aparente placidez do indivíduo asiático combina-se com um extraordinário domínio das técnicas de ataque com o uso das próprias faculdades motoras. Já os ocidentais, desde a invenção da pólvora, e a coisa agravou-se com a descrição estatística das trajetórias de disparo, não têm feito outra coisa se não engordar, veja-se o lamentável caso norte-americano, a maior concentração do mundo de lutadores de sumo. Pelo contrário, o Oriental desenvolveu uma fina capacidade para integrar a sua formação mental numa política da autonomia moral e autodomínio corporal. Não é por acaso que as pressões económicas e civilizacionais têm penetrado na Ásia com um total desrespeito pelas versões oficiais dos manuais escolares. Um eloquente ensaísta inglês chega mesmo a afirmar que o Chinês (mas podíamos dizer o Japonês, para nós é igual) constrói com materiais perecíveis porque respeita a marcha inexorável do tempo e sabe que a única forma de combater a destruição das realizações humanas é aceitar o movimento, a mudança, a finitude dos materiais. Só há uma forma de eternidade: a palavra escrita, ou diríamos nós, na forma mais sofisticada, o código, a linguagem racional com regras de produção finitas. Na verdade, o oriental desenvolveu uma sistemática do comportamento em articulação com o caso, não utiliza o julgamento moral como sistema de segurança, e não coloca a vida como valor supremo da organização civilizacional. Maravilhosos, estes nossos irmãos orientais. No que me diz respeito já quase não como outra coisa se não Sushi, e não utilizo talheres.


Contudo, no Ocidente, a moralidade parece ser uma função de adaptação ao ambiente: conforme o sucesso material de um dado comportamento exterior, o ocidental tende a resfolegar na inconsistência de raciocínio como o porco na lama. Sacrifica tudo ao estômago e à pilinha. Pelo contrário, o oriental raciocina sempre em função de um código de sobrevivência conceptual (a honra, o autodomínio, o sacrifício do desejo, o comportamento imperturbável diante do perigo, a conservação da ordem, a imperturbabilidade, olé, dos papéis sociais). O ocidental esbraceja desesperado para eliminar o tempo, em função do consolo do seu desejo. Não por acaso, veja-se o festival de incoerência a propósito do piropo: embora estejamos no âmbito moral aponta-se a criminalização como instrumento de resolução do problema, não havendo grande interesse em argumentar com fundamentação moral, recorrendo ao exemplo, à educação, à saudável convivência e à sofisticação das formas de linguagem. Já no caso da épica embrulhada do suburbano treinador de um clube desportivo com membros da força policial, apesar dos factos estarem amplamente criminalizados e o seu julgamento seguir a devida tramitação nos tribunais, prolifera toda uma multiplicação de juízos morais sobre o caso, com tentativas de sistematizar o importante papel pedagógico do treinador, a responsabilidade mediática das pessoas televisionadas, o papel de companheiro, de pai, de zelador pelo nosso futuro e segurança, pretensamente atribuído ao crístico Jorge Jesus.
 

 
 A magnificamente bela, deslumbrante e desesperadamente charmosa Koyuki em The Last Samurai, Edward Zwick, 2003.
 

Tenhamos calma. Jorge Jesus limitou-se a colocar ao serviço do cidadão a sua força de braços, martelando a força policial de forma a libertar um adepto da utilização desproporcionada da força. Jorge Jesus limitou-se suspender o cálculo estratégico de longo prazo para resolver um problema moral imediato com o recurso dos seus dois braços. Estará a nossa segurança em perigo por causa de umas estaladas? Estaremos assim tão lerdos que tenhamos que, às portas da era do androide, utilizar a jurisprudência como mecanismo de repressão geral para segurança nos estádios? Viveremos ainda mais um século entre a religião dos magistrados? Teremos ainda que inclinar as nossas cabeças ante os mecanismos de controlo automático exógeno (os Tribunais e a Polícia) só porque deixámos de conseguir introduzir automatismos cerebrais de controlo motor na cabeça das nossas crianças? Não saberemos nós distinguir uma situação de perigo de um arraial? Não devíamos estar antes a discutir o que faziam os jovens bombeiros de 20 e poucos anos na frente do fogo, e procurar enviar para a cadeia os responsáveis? Não devíamos estar antes a procurar apertar o pescoço aos comandantes de operações responsáveis por estas estúpidas e inacreditáveis mortes, a começar pelo Ministro da Administração Interna? Temos assim tanto medo do futuro? Somos assim tão incapazes de computação paralela de forma a identificar a melhor solução para cada problema colocado? Sim, parece que tristemente, assim somos. Mas vivam o Continente e o Tony Carreira, duas instituições que nunca terão problemas com a polícia.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Diário de uma louca.

 
Cate Blanchett in Blue Jasmine, Woody Allen, 2013. 
 
 
Quem passar os olhos pelos comentários da imprensa internacional ficará estarrecido com o julgamento votado ao mais recente filme de Woody Allen. Veja-se este lamentável caso. Não só falha inteiramente toda a temática da narrativa como ainda mergulha em exercícios de um ridículo atroz. As pessoas perdem-se em labirínticas interrogações em torno do nível de misoginia do realizador, e apenas por se descrever, neste admirável filme, e com particular rigor, a tragédia de uma mulher tragicamente bela, terrivelmente elegante e neuroticamente perturbada. Mas temos assim tanto medo das mulheres fortes, belas e terríveis? Mas padecemos assim tão intensamente de um ódio mortal contra todo o discurso artístico belo, tenso e rigoroso? Não passa pela cabeça de ninguém apelidar Gogol de anti-masculino por descrever com esmerado rigor a tragédia de um funcionário público, particularmente inteligente, e com atração sobre-humana por capotes de gola francesa, gravatas que alto lá com elas, e botas do mais caro que se podia comprar na Avenida Nevsky de meados do século XIX. Podemos desde logo confirmar como o discurso da paridade entre sexos consegue galgar todas as fronteiras do bom gosto, e emporcalhar-se nos mais fétidos charcos morais, mas não quero voltar a esse tema sórdido, quando estamos na presença de algo de muito mais substancial de um ponto de vista artístico da minha obra enquanto demolidor de mitos românticos.


Desde sempre a arte viveu da mais crua tragédia e, contudo, desde sempre revelou também preocupantes semelhanças mórbidas com o estilo da recomendação moral. Por muito que tenha sido enorme a potência subversiva de um Tolstoi, não podemos deixar de sentir um certo cheiro a sacristia ortodoxa, quando folheamos algumas das suas páginas mais conscientes.  A sua admirável sensibilidade sinfónica no que respeita à forma é por vezes interrompida pelo horripilante zurrar de uma corneta moralista. E o incómodo chega a ser ameaçador ao ponto de, por vezes, os seus romances, prismaticamente urdidos, se parecerem com um cavalo de Tróia, cujo ventre vem recheado com os pigmeus da ética vitoriano-ó-burguesa-ó-cristã. Está bem que tudo começa sempre por ser apenas um cheiro atribulado e confuso, com tanto de adocicado como de áspero, emanando das suas páginas mais convencionais. Mas ainda assim, sobre o corpo dilacerado de uma madura e adúltera mulher russa, desiludida e abandonada à neve em plena ferrovia, parece espreitar o exasperante dedo filisteu de um velho conde, demasiado piedoso para trair e demasiado cobarde para tomar uma decisão responsável. Por motivos de uma dor de cabeça elefantina, não vou sequer falar da trágica colonização socialista do século XX, às mãos da qual escritores cheios de talento como Steinbeck ou Orwell se viram travestidos com a mais pirosa manta de retalhos morais de que há memória na história ginecológica do Ocidente. No cinema também se vive o mesmo dilema e o filme de Allen comete a ousadia de incorrer no supremo pecado. Não o da arte pela arte (que isso não existe, arte tem sempre uma mensagem, pode é dar-se o caso de o mensageiro ser mais ou menos inteligente - e este é um recado especificamente dedicado à menina limão) mas o de introduzir uma ideia artístico-política, contrária ao programa da sua tribo de origem: os indefetíveis do cinema de estilo europeu.

 
Se Ana Karenina foi uma traidora apaixonada (ai, ai, ai) desiludida com os pântanos da traição (ai, ai, ai) a Jasmine de Woody Allen (ainda estou a tentar endireitar-me sob o peso das toneladas de charme descarregadas no ecrã) só se perde quando realmente falha o consolo material e a devida muleta sociológica, isto é, o estatuto. É uma pena que o público falhe a grandiosidade do momento, ignorando o que está em causa neste filme terrível. É que Jasmine faz o pleno dos pecados artísticos para os filisteus educados nas parvoíces do século XX: primo, Jasmine praticou, antes de mais, o supremo crime - que julgo rigorosamente pensado com cruel ironia pela novaiorquino -, de ter abandonado a Universidade sem concluir a sua educação, e logo, ó clemência, ó piedade, essa suprema ciência do mistério,  a Antropologia. Risos, risos, risos; secundo, Jasmine é uma mulher instalada, e confortável, num casamento burguês, mas por mecânica determinação, por uma vontade de não ser escrava da vontade, por um desejo de luxo e estatuto, e não apenas guiada pelo relâmpago do amor. Como o filme demonstra, o relâmpago do amor rasga muitas vezes o céu, quantas o tamanho do nosso desejo, o problema são os limites sociológicos do nosso poder de compra. Jasmine vive para evadir-se da miserável falta de gosto, da indigência estética, da indolência vocabular e mental onde foi produzida, pois foi adotada. Mas não se cansa de repetir, num bordão profundo e fulgurante: os genes não explicam tudo. Mas explica-o a determinação sociológica do meio, pois a mais penetrante e perturbadora ideia artística do filme é transmitida pela fragilidade com que a poderosa Jasmine reage aos grandes momentos da sua derrocada, seja a derrota ou o triunfo, isto é, com tremeluzentes lágrimas e luminosa atribulação. 
 

O que Allen parece querer pintar com o sagrado rosto de uma deslumbrante Jasmine, é talvez a sua mais conseguida versão do falhanço do sonho americano, no fundo um epílogo fantástico de toda a sua obra. Nem rodeada de ouro, nem bafejada pela sorte e nem coberta por uma grega beleza, a consciência ferida, sensível e inteligente, marcada pelo sofrimento de uma infância de carências, logrará fugir à tragédia que a persegue desde o berço. Mesmo não se concordando, é de um determinismo científico que destrói qualquer tentativa de punição. É belo como um raciocínio de Newton. Mas alguém compreendeu o contraponto (que é uma espécie de prova alternativa constante) representado pela irmã pobre de Jasmine? As duas foram adotadas e educadas pelos mesmos pais, e embora uma fosse geneticamente beneficiada, segundo a mitologia familiar, acabam as duas na mais miserável carência, profissional, se bem que uma, a mais burra e limitada, se limite a reconhecer a sua situação e mergulhe assim na «felicidade». Atente o espectador na cena final e veja o ridículo allegro em torno de uma fatia de pizza, enquanto a beleza personificada se afunda no abismo. Com o suplementar interesse de que a mais bela, inteligente e determinada,  sofre também a mais cruel, horrível e profunda desilusão. O filme começa com a comovente Jasmine a falar sozinha, caminhando junto ao abismo, mas sem abandonar a preocupação com o aprumo da sua imbatível elegância, a viagem em primeira classe, a limpeza, claridade e abertura dos espaços por onde quer mover-se. Como não verter uma lágrima de paixão e invocar o espirituoso funcionário de Gogol, humilhado pelo chefe de secção, e as suas incontornáveis perguntas, perguntas que mais valia gravar a ouro e fornecer com o bilhete de identidade aos cidadãos da república: «Se me derem uma casaca da Casa Rutch (uma casa da moeda na época) e se atar uma gravata ao pescoço como a tua, não me chegarás aos calcanhares. Não tenho recursos - é esse o problema».
 
 
Dante era, segundo a qualificação de um filósofo alemão, «a hiena que versifica nas sepulturas». Parece que Dante ouviu dos próprios lábios de Virgílio que nunca este entraria no céu, e Dante, em vez de entrar em pânico, ou passar para o outro lado do passeio, abanando a cabeça, e fingindo não o conhecer, terá dito ao poeta condenado, «meu mestre e senhor». Tal confissão não diminuía o afeto. Pois sucede o mesmo com Jasmine. É por sabermos que está de uma vez por todas, perdida para sempre, que a amamos infinitamente. Antes o abismo que esta porcaria em que vivemos.


blue_jasmine

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Editorial para que este blogue se transforme num bastião da luta sem quartel a favor das pessoas que leram muitos livros e mesmo assim não deixaram de ser pessoas.

Inspirado em factos reais, O Homem de Constantinopla reproduz a extraordinária vida do misterioso arménio que mudou o mundo – e consagra definitivamente José Rodrigues dos Santos como autor maior das letras portuguesas e um dos grandes escritores contemporâneos.
Cena promocional da FNAC enviada para o meu mail


O leitor enganou-se! Neste texto não me entregarei ao ódio gratuito, vilipendiando o abnegado e comovente esforço de um «autor maior das letras portuguesas e um dos grandes escritores contemporâneos», o amor de Cristo nos uniu, saudai-vos na paz de Cristo. Apenas perguntarei, perplexo, se a vida de Kalouste Gulbenkian, pelos vistos um gajo nascido na Arménia e apaixonado pela beleza (duas coisas aparentemente contraditórias, mas enfim) interessará a alguém no seu perfeito juízo e na plena posse das suas capacidades. A editora, ou melhor a distribuidora, ou melhor, a central de propaganda, informa-nos sobre uma interessante obra versando sobre o dito assunto (um arménio que mudou o mundo) e a publicar em dois volumes, uma vez que um só não chegava. Caro José Rodrigues dos Santos, com todo o respeito: tem mesmo a certeza de que existiu um arménio que mudou o mundo?

Atenção, devo dizer que tenho por José Rodrigues dos Santos a maior das simpatias, é uma pessoa com um pescoço assinalável, um ser humano detentor de uma rara capacidade de se locomover sem tropeçar nos próprios pés, às vezes comove-se em direto, e chega mesmo a piscar o olho, com cumplicidade, se uma menina mais marota surge, por mero acaso, numa trivial notícia do programa informativo que lidera. Mais recentemente ficámos mesmo a saber que pode descender de D. Dinis, ou D. Afonso Henriques, ou Moisés, agora não me recordo (desculpem, mas foi um documentário sobre grandes portugueses televisionado há uns meses) e tem contribuído nos últimos anos para lançar esse imorredoiro debate em torno da função social da arte e do papel do mercado na consagração de uma hierarquia artística.


Como as pessoas são em geral muito, mas muito inteligentes e versadas nas várias disciplinas do conhecimento (situação que amplamente favorece a espécie humana - veja-se, no entanto, o caso dos bombeiros desaparecidos este Verão, conjunto de pessoas que para a microeconomia ensinada nas nossas faculdades, não existem) vou explicar pela enésima vez o que é um mercado. Um mercado é uma organização social avançada para coordenar de forma eficiente a distribuição de informação com vista à obtenção de uma situação de eficiência tendencialmente ótima. Ora, isto quer dizer que o mercado, tal como a maior parte dos conceitos metafísicos, é uma pomba branca de avistamento muito raro. Contudo, indiferente às distinções entre ficção e realidade (só existe realidade, quer dizer só existe ficção, quer dizer só existe o que existe) o mercado utiliza, alegadamente, o sistema de preços para saber onde são procuradas determinadas necessidades e onde se podem encontrar ao mais baixo custo os recursos para satisfazê-las. Um mercado - no seu conceito útil - é um vasto computador cujos processos de decisão descentralizados permitem eliminar o desperdício. Mas o que é o desperdício?

Uma boa resposta exigiria estudar a formação das necessidades de consumo e o papel dos meios de comunicação na influência das curvas de venda. Melhor, exigiria estudar a formação de necessidades de consumo. Daí que eu tente pacientemente explicar, com sistemática perseverança, aos meus leitores mais cínicos, que a conversa sobre o «mercado resolve» implica desde logo reforçar uma dada hierarquia de decisão sobre as necessidades de leitura (e defender a posição de um conjunto de livros com características de «mercado», a saber, o nível de burrice da maioria dos potenciais consumidores, o que, no caso português, é de uma trágica e indigente estupidez) e não a defesa da pluralidade e liberdade de escolha, como eles, por vezes com exasperante ignorância, pretendem. Recentemente jantei com um conjunto de literatos e pessoas do jornalismo cultural, e uma dessas distintas pessoas assegurava que o mercado apenas reage ao desempenho comercial dos autores, o que é uma assunção espetacular, uma vez que, neste caso, os autores começam por apresentar desempenhos na Terra do nunca e só depois, e muito justamente, são aproveitados pelo mercado. Estarei eu a afirmar que José Rodrigues dos Santos perverte as regras do mercado? Não, José Rodrigues dos Santos é demasiado pequeno para isso. Estarei eu a dizer que as pessoas não sabem o que querem? Sim, naturalmente, e desde que não me justifiquem as vendas de José Rodrigues dos Santos com o «funcionamento do mercado» estará tudo bem entre nós.


O que pretendo eu fazer? Educar o conjunto da população segundo o meu gosto? Sim, a melhor hipótese seria sem dúvida essa, mas na impossibilidade de trazer o conjunto da população até às altitudes nevadas onde muitos certamente seriam atacados por vertigens, devo contentar-me com a situação intermédia, mas igualmente desejável, a existência de literatura crítica e associações de consumidores que avaliem e testem, de forma sistemática, os livros publicados, tal como testam os detergentes e as máquinas de lavar. Não é pedir muito, pois não? E se o fizéssemos aqui? Não querem começar a enviar as vossas críticas literárias que eu responsabilizo-me pela edição? Como é caros leitores, vamos virar esta merda do avesso, ou continuamos a sonhar com os amanhãs que ladram mas não mordem?

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

ganha esta discussão quem fizer o melhor piropo a esta senhora(?)


Como aqui o alf tem as costas largas, e não percebe nada de nada (é um simples verme, decadente e depravado) deixemos falar uma mulher habituada a trogloditas, uma mulher daquelas que leram livros.

O assédio sexual torna-se insuportável quando implica a redução da liberdade da vítima, comprimindo o seu espaço de decisão. Na reforma penal de 1998, foram introduzidas novas modalidades de coação sexual e de violação, relativamente a atos sexuais extorquidos com abuso da autoridade, resultante, por exemplo, de dependência familiar, laboral ou hierárquica.
 
Há, porém, uma área difícil de caracterizar, que engloba condutas que não atingem esta gravidade objetiva, embora possam molestar subjetivamente uma pessoa. O Direito Penal não deve intervir nessa área nebulosa, sob risco de se confundir com a Moral, imiscuindo-se em relações privadas e íntimas que podem ser geridas sem recurso aos tribunais.
 
Fernanda Palma, Professora Catedrática de Direito Penal (por sinal, uma senhora bastante... ai que não se pode) aqui. Os sublinhados são nossos.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Uma resposta à crítica do piropismo: derradeira fase do capitalismo.

Dada a preocupação dos nossos estimados leitores, e as próprias dúvidas existenciais suscitadas pela riqueza do assunto, vejo-me forçado a regressar ao tema do piropo. Devo dizer, antes de mais, que não partilho da opinião dos que julgam o tema como irrelevante. Antes pelo contrário, dificilmente encontraria um assunto mais pertinente para comentar entre as torrentes de interpretações constitucionais e a resistência ao estimável, desejável e inevitável despedimento de professores em catadupa, e não estou a ser irónico. Simplesmente manifestei a minha posição, o que aliás, repito, sublinha a importância do tema, pois tenho dificuldade em falar sobre coisas que não sejam revelantes, o que explica, desde logo, a distribuição de visitas deste blogue. Numa época de multiplicação de pessoas com a mesma profissão do Mário Nogueira, a incidência da visita blogosférica é inversamente proporcional ao espírito critico, independência de raciocínio e fulgor interpretativo do respetivo blogue. Depois desta introdução, e afastados os tristes, continuemos, tu e eu, caro leitor interessado nas fatais questões desta pobre humanidade. Peço desculpa a tod@s mas vou intercalar estas minhas reflexões justamente com as mais distintas e inesquecíveis pérolas da quase extinta e perseguida arte do piropo.


Por acaso és católica? É que tens uma tranca que valha-me Deus.

Em breve os leitores poderão constatar, por meio da minha própria obra literária, que uma das razões que explicam o meu juízo absolutamente crítico e impiedoso sobre a literatura portuguesa contemporânea (e não só, mas deixemos isso para outra altura) pós Saramago/Antunes (e mesmo estes, enfim) se deve à incompreensível incompreensão, ostentada por quase todos os praticantes da própria arte do romance, sobre a própria génese e natureza do romance. A honrosa exceção, deve reconhecer-se a bem da justiça, é o Professor Doutor Juiz Presidente Gonçalo Albuquerque M. Tavares, o praticante da dita «matematização» da angústia, ou seja, uma forma grosseira de apelidar aquelas piruetas lógicas com que o escritor pensa resolver o problema da decadência do amor cortês como objeto supremo da narrativa, e o pobre homem, assustado pela vertiginosa morte do romance, agita-se em manifestações sobre o facto de «as suas personagens saberem que são personagens», quando o problema é outro: o facto de ele, escritor consagrado, ter sobretudo um projeto de escritor consagrado pelas muitas e profundas ideias da sua espetacular cabeça, e não saber muito bem o que fazer com as suas personagens, como se nota em todos os seus livros. Lamento esta perseguição ao Professor Doutor (que é, apesar de tudo, um escritor interessante) mas era importante arrumar desde logo este assunto, pois tem sido origem de muitos e trágicos equívocos e não admito que os meus leitores andem enganados. Todo este «caso do romance como zombie» parece muito estranho, mas é assim o nosso maravilhoso mundo e a arte não escapa às bizarrias da existência, muito pelo contrário. Em certa ocasião, tive o prazer de ler os lamentos de António Deprimido Lobo Antunes a propósito das tristes repetições epígonas, praticadas pelos seus companheiros, em torno dos modelos narrativos romântico-deprimentes, inventados no já longínquo e igualmente deprimente século XIX. Mas eu tenho uma novidade! O caso é ainda mais grave do que Antunes pensa. Como já aqui escrevi, o romance recorta-se como género, tal como todas as coisas vivas, no momento em que a sua forma completa está já a caminho da morte; chamamos a isso o nascimento. Ora, um maneta chamado Cervantes corresponde já a uma enorme gargalhada desferida sobre o amor cavalheiresco, e os trabalhos ensandecidos em que um homem, D. Quixote, incorre para «conquistar» uma mulher bastaram ao veterano de Lepanto para erguer uma obra de génio em torno da desorientação humana. O prémio do cortejar galante são tareias, a chacota pública e a própria loucura.


Ó jeitosa, és mais apertadinha que os rebites de um submarino.

Quando a sociedade de Corte começava a desorientar-se, multiplicando dúvidas sobre a correta forma de assoar o nariz e trinchar o porco sobre a toalha de linho, os modos de cortejar uma mulher sofriam igualmente os mesmos excessos de linguagem. Então, sobre as cinzas do romance, após as labaredas sopradas por Cervantes, os ignorantes cortesãos, a soldo das academias, inventaram o romance. Mas como se o romance já estava morto? Como? Na verdade, sabiam que a parvoíce não tem limites. Veja-se a ressurreição da narrativa policial neste princípio de século, um dos episódios mais deprimentes de toda a história cultural da humanidade. Bem, o certo é que o rumo do amor cortesão parece ter sofrido uma bifurcação. Começou então a esquizofrenia, não por acaso, ligada por dois conhecidos mas confusos intelectuais ao capitalismo. O capitalismo foi, como já vimos, uma forma simples e eficaz de colocar o desejo a render. Por um lado, a Corte obrigou o homem a pegar em garfos e facas, a guardar os punhais, a não cuspir à mesa, a não apalpar as mulheres, a não as agarrar em qualquer corredor para satisfazer uma necessidade dita «animal», para melhor se poder dedicar ao trabalho especializado, o que tem sido, desde então, uma santa chatice. Cá está, para recortar o animal (o autor dessas violências ultrapassadas) foi preciso inventar um «homem». Mas entretanto, esse homem de Corte, civilizado e puro, sofisticado no falar, com trejeitos e creme nas faces rosadas, com mãozinhas de cisne, com a sua meia esticada, o seu calção de veludo e sapato de fivela, encontrou uma outra forma de dominar, fabricando o matrimónio burguês, ocultando a mulher da sociedade e disciplinando o espaço da casa. Mas era um presente envenenado. Claro que os mais inconformados, por outro lado, transformaram-se em libertinos, preocupados com a libertação da mulher, a demolição do romance, e o amor livre; rodopiaram pelos salões e foram meter-se dentro da cama das damas emancipadas. A partir daqui houve de tudo. Desde a poesia dos lagos ingleses com Woodsworth e Coleridge, com a sua recuperação da experiência mental como padrão da linguagem (e já não o sensual chavascal Ovídeano da antiguidade) e toda a recuperação tardo-medieval da mulher anjo, passando pelas assombrosas experiências de Sade, uma das cabeças mais incríveis do século XVIII, boçalmente ignorada pela cultura universitária, muito por culpa dos burros dos pós-modernos que escreveram os mais estranhos disparates a propósito do marquês.


Queria ser um patinho de borracha para passar o dia na tua banheira.

E pronto, aqui estamos nós, ainda indecisos em matéria de abordagem do problema, ou alguém ignora que a internet, ou seja, o mais sagrado pilar da nossa abençoada economia do conhecimento, se sustenta com um produto que de tão complexo, desmotiva todos os estudiosos, isto é, a pornografia. O George Steiner, entre as muitas tolices que escreveu, teve engenho suficiente para ver na pornografia uma forma altamente tipificada, sofisticada e artificial (e muito pouco natural, ao contrário da lenda) de colocar o grave problema enfrentado pela masculinidade; o segredo mais bem guardado de todos os tempos, capaz de fazer da Irmandade do Graal, e dos barbudos de Sião, e essas cenas do Código Da Vinci, uma brincadeira de crianças, a saber, o facto de uma grande maioria de homens (não digo todos, porque assim como assim, a fisiologia também é um mundo variado) sofrer horrores perante a organização sexual da sociedade dita moderna. Claro que o homem morre de medo ao abordar este problema, aterrorizado pelo desfilar de acusações, do esfomeado até ao paranoico, passando pelo ressabiado e o psicopata, do malcasado até ao tarado, passando pelo virgem tardio. Contudo, dentro da cabeça masculina, e quem sabe da feminina também, mas não me atrevo a explorar essas maravilhas, vive um servo sofredor e agrilhoado, cujas lágrimas já secaram, tantos são os sofrimentos e as privações enfrentados desde a adolescência. O primeiro galante, orgulhoso, delicado e satisfeito consigo próprio, que venha aqui desmentir o seu desvio entre a taxa de concretização dos pensamentos e a taxa de imaginação das cenas que poderia vir a fazer se coisa e tal.


Com uma montra dessas, imagino como é o armazém.

A verdade é que não vejo ninguém preocupado com a profunda alteração provocada pela transformação da iniciação sexual do adolescente. A prostituta desapareceu de cena, com o fechar do século XX, para dar lugar à adolescente emancipada em busca de um salário, ou muito pior, da realização profissional, e olhando de igual para igual o seu parceiro masculino. Os homens passaram a ter acesso a uma iniciação de fino recorte estético e já agora, falemos sem medo, superiormente higiénica, mas passaram a ter que sofrer em silêncio os horrores da «relação amorosa», e calam-se, gelados pelo terror do futuro e a esperança de que a enorme gratificação afetiva trazida pelos filhos (que não nego, é um facto indesmentível) possa compensar a gaiola onde foram metidos. E não se julgue que estou a falar do sagrado sacramento do matrimónio, pois a «relação», sem «papel», mantida enquanto durar o «amor» (deixem-me ir ali dar uma gargalhada) é apenas um esquema desajeitado para controlar a incerteza e uma forma pífia de mudança para garantir que tudo continua a ser como dantes, na consagrada fórmula do atormentado Príncipe de Lampedusa.


Anda cá a cima afagar-me a cobra zarolha.

Mas centremo-nos nas formas de comunicação. O piropo, no modo abrutalhado ou inteligente de nos dirigirmos ao sexo feminino, é apenas uma sobrevivência mais ou menos animalesca da extrema necessidade humana, demasiado humana, em manifestar o desejo e a absoluta derrota mental perante o esplendoroso corpo da mulher, terra do paraíso, rosa mística, estrela da manhã. O grau de parvalhice e brutalidade deve ser entendido como uma medida do desespero, um pobre sinal da queda masculina, um sintoma da mais burlesca comédia, a triste marca de mais um que soçobrou no vale de lágrimas da luta pela dignidade. As mulheres fariam melhor se rezassem uma Avé Maria pelo pobre coitado, pois quem muito pecou, é porque muito amou. O homem, no caso masculino, esse animal público e falante por excelência, só por deprimente necessidade aperfeiçoou com exasperante técnica o piropo, que é tanto mais associado a um incómodo, ou a uma agressão, quanto mais é praticado sem imaginação e falta de domínio da arte da retórica, sinal, como disse, de que as força do praticante do piropo estão muito perto do esgotamento total. Peço ao leitor que siga comigo este espinhoso caminho.


Que rica sardinha para o meu gatinho.

A tipificação do crime de injúria abarca, ou pode abarcar, julgo eu, o piropo. Não precisamos de mais leis. O ridículo da situação está precisamente na tentativa de incluir o piropo no campo do assédio sexual, quando o piropo (em 99% dos casos) é apenas a exteriorização de um juízo subjetivo, caindo com eloquência no pantanoso campo da violência de linguagem. Já no caso do assédio sexual pode praticar-se o crime sem qualquer alusão verbal à fisiologia da mulher, o que em nada retira gravidade, mesmo que aparentemente a esmerada educação do criminoso não seja posta em causa. Reparemos que no caso citado por uma nossa leitora, a devolução do epíteto de porco ao autor de um piropo é, na maior parte dos casos, uma realidade objetiva, isto é, a comparação do porco, isto é, do autor do piropo com um animal, por acaso, o porco. Restaria a um juiz medir os danos do facto, e atenção que casos há em que a injúria não colhe por não se verificarem as condições materiais de intenção, de agredir verbalmente, e todas as outras piruetas que há na argumentação do foro. O problema é que o piropo constitui a subjetividade elevada pelo menos à quinta potência. O piropo é todo o resultado de séculos de sofrimento, toda uma obra socio-semântica de extrema complexidade onde se faz uso, quase sempre, da mais refinada retórica. Eu que não sou particularmente adestrado em piropos, julgo saber o suficiente para dizer que os mais ofensivos são também por vezes os mais subjetivos, ou seja, os mais poéticos, mais codificados e menos grosseiramente diretos o que torna a matéria de complexa criminalização. Prateleira, para-lamas, tranca, os inocentes marmelos, comer, fazer de quatro, isto é, toda a não verbalização objetiva é já de si uma proteção contra o aparato policial do Estado.  Para quem quiser avançar com uma tipificação, deixo aqui material de trabalho.


Só não tenho pelos na língua porque tu não queres.

A mulher ignora o facto de o homem se ver há muito confrontado com a perseguição policial mais impiedosa (creio que Nietzsche já o tinha dito mas é preciso estar sempre a repetir porque as pessoas preferem ler o Nuno Camarneiro) e toda a conversa feminista tem distraído a mulher do essencial: os horríveis e intransmissíveis sofrimentos a que o homem é, desde há pelo menos quatro séculos, sujeito com meticuloso horror, em matéria de comportamento público diante da mulher. Já não cito as incríveis carambolas dos romances russos, em que o mero cumprimento de uma bela mulher em praça pública podia ditar um trágico duelo, veja-se O Duelo de Tchékov ou o episódio do barão alemão e sua mulher, em O Jogador de Dostoievsky. A Igreja, com a sua sabedoria milenar, e o seu profundo conhecimento de todos os recantos mórbidos da personalidade humana, procurou resolver o problema com os seus instrumentos brutais e grosseiros. Mas o facto de a Igreja ser estúpida aos olhos da nossa sofisticação de pessoas que usam computadores, não significa que o problema tenha deixado de existir. Claro que aprendemos a fazer cálculos e não vamos fazer coisas que podem ditar ou a nossa insegurança física ou a mais severa privação em matéria de comércio sexual. Em suma, a boa prática do piropo, ou seja, o piropo embrulhado em finas metáforas, pressupõe a consciência do crime, e o criminoso versado na consciência do crime, é um bicho difícil de apanhar. Mas embrulhar tanto o piropo até que o desejo desaparece entre os laçarotes da nossa pobre e polida linguagem quotidiana, fazê-lo sumir-se naquela novilíngua dos romancistas de sucesso, a cheirar a um piedoso sentimento de afeição, muito incensado e puro, é negar o nosso desespero perante o enigma do desejo, e esconder entre os escombros da pieguice o único tema literário ainda vivo: como é que o desejo me define a mim, organismo vivo, como ser sexuado. Costuma dizer-se que é só garganta. Será, e muito por culpa da repressão a que temos sido sujeitos. Pior, o praticante do piropo é um desesperado que não encontrou o caminho da domesticação e sofre abertamente o que todos nós, pessoas educadas e de bem, sofremos no mais repugnante e cobarde silêncio, a que chamamos civilização. No meu texto limitei-me a sugerir isso. Além disso, a perseguição do piropo pressupõe toda uma exegese que com facilidade se transformaria numa humilhação para todos e em níveis inaceitáveis de desperdício repressivo. Queremos mesmo incorrer nessa despesa? Não será tempo de aceitar que temos aqui um conflito de interesses não resolvido e negociar uma forma amistosa de sermos todos felizes?

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Simplesmente não resisti depois de ler a posta do alf




P.S. Tenho estudado desde o 9º ano com uma maioria masculina, chegando ao cúmulo universitário de não existirem mulheres. Simplesmente, diria que faz muita falta ao universo IT mais mulheres, nem que seja para diminuir o tráfego dos sites porno na internet.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Coisas que realmente deviam preocupar as pessoas interessadas em piropos.

Today, women earn a relatively low percentage of computer science degrees and hold proportionately few technical computing jobs. Meanwhile, the stereotype of the male “computer geek” seems to be everywhere in popular culture. Few people know that women were a significant presence in the early decades of computing in both the United States and Britain. Indeed, programming in postwar years was considered woman’s work (perhaps in contrast to the more manly task of building the computers themselves).

O sublinhado é nosso.




sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Está tudo bem.

As pessoas fazem o que podem, os escritores são todos muito bons, está tudo muito bem, calma, isto é são só os terríveis mecanismos da inveja, do ressentimento, da portugalidade, além disso, o Hélder Postiga - uma pessoa nascida num bairro de pescadores - acabou de ser expulso. Estão a ver? Para quê tanto nervosismo?

Two maybe more: o corpo, a cidade, o desespero. E gajas boas, não há?

Uma pessoa intitulada Marco Martins, a propósito de uma peça falada em inglês e cujo texto é da autoria do consagrado Senhor Professor Doutor Juiz Presidente Gonçalo Albuquerque M. Tavares, um homem capaz de tratar «matematicamente as grandes questões metafísicas do nosso tempo» (ver Público de hoje, se ainda não tiverem limpo o rabinho com ele, o jornal, claro, e se tiverem limpo, podem tentar na mesma recuperar a parte legível, enfim, não vou agora aqui entrar na grande questão escatológica, o sentido metafísico das fezes, sobre a qual polemizaram Milan Kundera e Italo Calvino - são assim os grandes -, estando a minha posição mais próxima deste último quando dizia que o grande círculo orgânico da vida e da morte, espelhado na transformação do alimento em corpo, com a devolução do excedente à generosa natureza, longe de ser um sinal do desespero e do nada - isto são coisas habituais nos chatolas dos checos -, é antes uma realidade simples e bela do nosso alegre sistema natural) dizia eu, uma pessoa intitulada artisticamente Marco Martins, um encenador daqueles com óculos de massa e tudo, acaba de dizer que «a imagem da cidade como organismo vivo, um corpo, é um conceito muito contemporâneo».


Marco Martins encena uma miscelânea, com música de Pedro Moreira (o Rodrigo Leão estava ao telefone como a Operah Winfrey) e uns bailarinos quaisquer cujo nome agora não me ocorre, versando sobre o desespero do homem urbano, a racionalização do espaço, a depressão geométrica da cidade. Outra vez a impossibilidade da poesia depois do Holocausto? Outra vez a desumanização da máquina? Mas haverá ainda algum ser vivo que desconheça que a única coisa boa produzida pelo homem é a desumanização? Por falar em desumanização, sabiam que o último livro do walter hugo mãe se passa na Islândia? Vai uma aposta em como o gajo consegue o inatingível facto de escrever um livro de 400 páginas passado na Islândia - aquela cena é só gelo, casas quentinhas e mulheres deslumbrantes - sem que nos passe pelos olhos uma única gaja boa? É verdade, o Holocausto existiu e convém não esquecer (a começar pelos escritores que publicam 50 livros por ano, alguns deles já devidamente sacralizados por prefácios sacerdotais obrigando-nos a inclinar a cabeça, a coisa mais próxima da propaganda de que tenho memória), sim, convém não esquecer, mas convém não esquecer igualmente que a poesia pode ter acabado, mas as gajas boas (graças e louvores se dêem em todo o momento) não acabaram, antes pelo contrário: as mulheres estão cada vez melhores. No entanto, eis que os homens atormentados pela arte oferecem ao público cantores torturados dentro de caixotes. Ora, se repararem ainda não atravessámos a Arcádia. Estamos ainda em plena paisagem bucólica setecentista, o último século onde se inventaram coisas com a cabeça.


Neste magnífico evento (que não teremos oportunidade de contemplar, pois temos muito mais que fazer, e eu nunca costumo criticar coisas a que já assisti ou livros que li) adivinhamos já não pastores roliços de caracol loiro, flautinha de cana e tornozelos de anjo, a perseguirem nos arbustos a pura e doce lavadeira mamalhuda (o que seria muito mais interessante, diga-se) mas a mesma coisa só que em negativo, a saber, a desumanização da cidade, a monstruosidade da técnica, a conspurcação da indústria e do comércio, a dessacralização da vida, o relógio, esse tirano, a comandar os ritmos da existência (e já não o vibrante ciclo das estações) ai de nós, o diabólico quadriculado da habitação, em vez dos campos floridos e das árvores frondosas em prados orlados por florinhas amarelas. Mas caramba, no quadriculado desumano da cidade também há outras coisas, e quanto a desumanidade e desespero, faço ideia a dos gajos que passam todo o santo dia a encaixotar os infinitos livros do Tavares. Coitados, não conhecem o murmúrio dos regatos, nem a suavidade da brisa primaveril. E vivem na cidade. Ah, já me esquecia, esses, mesmo tragados pelos mais horríveis sofrimentos, podem sempre disfrutar desse incomensurável poder curativo e libertador que há em todo o grande artista, e sobretudo da profundidade metafísica, matemática, do autor publicado.



- Aristóteles, ai então a cidade como um organismo vivo agora é uma imagem contemporânea? Mas em que momento da história é que a cidade não foi entendida como um organismo vivo? Mais contemporâneo que isto só a água como símbolo da vida. Ou a noite como símbolo da morte. Ou a pomba como símbolo do espírito. Tu pactuas com esta merda e não dizes nada?
- Que queres que diga? - e Aristóteles continua a martelar a sola das sandálias, pois a subida do dracma e os cabrões dos especuladores de trigo de Siracusa deram cabo dos serviços de sapataria.
- Muito contemporânea - respondo eu - é esta salada de frutas (em que a multiplicação do prestígio mediático é o grande motor do evento, e nunca o seu conteúdo) levada ao palco e servida como arte. Ora, arte pressupõe saber fazer, e saber fazer pressupõe ter feito muitas vezes (em casa, na casa de banho ou diante de público).
- Ui, parece que a coisa elabora em torno da cidade e do urbanismo - responde o pobre Aristóteles, martelando um dedo, e depois acompanhando o passear felino de uma escrava trazida de Tiro por um vendedor de tendas zarolho.
- Deixo o desbaste aos especialistas nestes temas, já que as manifestações homéricas de ignorância me deixam sempre deprimido. Aristóteles, vou ali lançar-me da varanda e se sobreviver já venho aqui comentar o resultada da seleção nacional em Belfast.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Psicologia do piropo? Uma falsa questão.

Se não me engano, e eu engano-me quase sempre, foi Werner Sombart - o predileto discípulo de Maximiliano Weber Pereira, e erudito estudioso da emergência do capitalismo na União Europeia Ocidental -, o primeiro a notar que se as mulheres não existissem, o dinheiro não tinha nenhuma importância. Dedicou a isto milhares de páginas de enfadonha exposição com inatingível demonstração histórica, um conhecimento profundo das fontes (as primárias, as secundárias e as terciárias) para não falar da extensa utilização de processos lógico-racionais como só os alemães são capazes de enfadonhamente utilizar (e não me venham com essa merda de que o gajo era Austríaco ou Húngaro - só o Benfica teve para aí 4 treinadores húngaros de cultura alemã - uma cena que o Rui Tavares já explicou com essa trapalhada bélico-semântica da primeira guerra mundial, e isto para não dizer que só o Benfica tem 7 sérvios e um deles parece uma menina apesar de ser claramente o melhor jogador do Benfica desde Fernando Chalana, o que é um claríssimo desafio à mais recente polémica na blogosfera, mas já lá vamos). Sombart chegou mesmo a datar o triunfo das cortesãs nas urdiduras palacianas das Repúblicas italianas como o ufano momento do nascimento da nossa estimada e santa civilização comercial, ou na sua versão iluminista patriótica e de esquerda, democracia constitucional. Como se isto não bastasse vi recentemente à venda numa livraria de uma grande superfície um livro livremente comercializado onde figurava o seguinte título: The End of Men: And the Rise of Women. Já Plauto e Aristófanes, nas suas comédias, concediam o protagonismo do amor a cortesãs e escravas, mas na antiguidade a cena revestia-se de uma misteriosa complexidade e estaremos todos de acordo sobre a não representatividade da literatura na resolução de dilemas político-jurídicos. O que mais me inquieta são os juízos cronológicos em matéria tão sensível. Alguém terá descoberto o medidor do progresso? E o medidor do poder? Quem manda verdadeiramente no mundo? Será o homem? Será a mulher? Haverá lugar para o piropo numa sociedade sem classes? Creio que são dúvidas mais do que suficientes para um individuo do meu gabarito se ver obrigado a fazer um ponto de ordem nesta importante discussão em torno do piropo, da criminalização da boçalidade, comentando a hipotética estrondosa queda da masculinidade.

Há quem diga que vale a pena ler este post. Concordo com a leitura e concordo com o conteúdo. Mas todas as razões apresentadas sobre a espetacular capacidade da opinião pública portuguesa em rebaixar um debate ao nível coiso são precisamente as mesmas que explicam porque razão o piropo preocupa a sociedade portuguesa. Sociologicamente, não tenho dúvidas de que o piropo constitui um problema, um sintoma, uma marca, um sinal, uma epifania do longo caminho a percorrer na estrada da mudança das mentalidades. Contudo, não podemos deixar de considerar perversa a forma como mulheres de esquerda, patrióticas e socialistas, como Fernanda Câncio, ou mesmo mulheres de extrema-esquerda como Daniel Oliveira - e que isto não seja entendido como um piropo - consideram não legítimo o direito dos trabalhadores a considerarem com redobrada esperança o seu futuro sexual - não recorrendo ao complexo mercado do engate por subscrição cultural e aos dolorosos e cansativos jogos de cintura, capazes de levar um Gogol à loucura. Ainda que isso inclua desconhecidas, a linguagem privada ainda é um domínio privado ou estaremos a querer entrar também por aí? Parece-me que desde que não seja quebrada a ténue e sagrada fronteira de filigrana minhota, a saber, a diferença entre dizer e fazer, não estamos perante um crime mas apenas e tão só, o que não é pouco, perante uma sórdida falta de educação. Queremos reprimir esse comportamento? Queremos gastar o dinheiro dos contribuintes a investigar o piropo? Não seria melhor deixar que o assunto percorresse por si só o caminho do esquecimento, à medida que a educação e o convívio disciplinado entre sexos vai grassando nas nossas escolas? Se o facto de um estucador - e atenção que não faço aqui uso de determinismos sociais, simplesmente utilizo a minha longa experiência com honesto estudo misturado, que serviu a Camões, a Sá de Miranda, a Duarte Pacheco, a Pedro Nunes, e a outros intelectuais do renascimento português - se dirigir a uma adolescente com palavras indecorosas passar a implicar a tipificação de um crime, senhoras e senhoras, aí sim, estaremos bem tramados quanto a dívida pública, e os piropos serão o menor dos nossos problemas. Quer isto dizer que subscrevo a coutada do macho ibérico? Claro que não. Desde o triunfo de Iniesta e Xavi que a coutada do macho ibérico se encontra em acelerado declínio e até já me tentaram vender máquinas para desenhar espirais na barba e patilhas em bico numa grande superfície comercial da Península Ibérica.

Toda  esta espiral problemática em torno de algo tão insignificante como a metafísica do piropo - e não me refiro ao caso concreto, bem o sabemos, desde Kant, o caso concreto não existe - é francamente sintomática da solidez do pensamento político ao nível das mulheres de esquerda - não estou a pessoalizar, pois muitos homens estúpidos se revelam também, e igualmente, inteiramente de esquerda - mas agora estou francamente apostado em polemizar com as mulheres e quem sabe se isto não meterá uma piscina de lama e camisetas (como dizem os brasileiros) muito fininhas. O fato de quererem dirigir o aparato policial do Estado contra o homem produtor de piropos é um símbolo do machismo da sociedade portuguesa, mas pelas razões erradas (eis uma bonita charada para os meus inteligentes comentadores decifrarem). Adianto apenas que em primeiro lugar, qualquer estudo estatístico demonstraria rapidamente uma singela verdade: cão que ladra não morde. Em segundo lugar, e no que diz respeito a todos os estudos de impacto ambiental sobre o direito das mulheres andarem na rua sem medo, é muito interessante constatar que, por vezes, o medo urbano também serve o pensamento político libertário. 
 
Qualquer reclamação deve vir acompanhada de fotografia de corpo inteiro e uma sugestão de preferências sobre os tempos livres.