A ciência está a entrar na sua fase totalitária - o que é
uma pena, mas talvez seja uma fase inevitável de qualquer projeto cultural
agressivo - e o novo livro de António Damásio, A Estranha Ordem das Coisas, aí está para o provar. 60% do
livro (o que não consiste em descrições seguras da biologia evolutiva do
cérebro) é formado por banalidades, lugares comuns (e algumas imprecisões) a
propósito das culturas humanas. Não tenho por hábito diabolizar a ciência,
antes pelo contrário, prefiro diabolizar as Humanidades, mas desta vez julgo que
atingimos a fase imperialista do cientismo.
É como se o Boaventura Sousa Santos publicasse um livro
resumindo - de forma tosca, rápida e atrapalhada - os últimos 50 anos de
publicações nas neurociências, mas omitindo ou lendo apressada e erradamente o
contributo dos principais cientistas, e perante esse facto insólito, toda a
gente baixasse reverentemente a cabeça. Não pretendo policiar o direito dos
neurocientistas dizerem banalidades sobre a cultura. Eu próprio vivo da
publicação de algumas banalidades sobre todos os assuntos disponíveis, incluindo
a pesca do atum. Já me parece mais preocupante que ninguém até ao momento (que
eu saiba) - nem sequer os antropólogos - tenha reagido publicamente a um livro
cuja ambição não me parece minimamente adequada às capacidades reveladas pelo
autor ao longo do livro. Deixo apenas um exemplo.
Uma parte do que é apresentado como novidade - a precedência
(ou pelo menos a enorme relevância) dos sentimentos na criação das culturas
humanas (e só esta expressão já faz corar de vergonha uma pessoa educada) - é
um problema profundamente discutido, sem conclusões definitivas, na
Antropologia, sobretudo desde os artigos de Cliford Geertz, publicados nos anos
70 e 80, para não falar em Levi-Strauss que Damásio arruma numa nota de rodapé,
citando bizarramente um único trabalho L'Anthropologie face aux problèmes du
monde moderne. Já não refiro Michel Foucault – que o autor despacha sem
qualquer referência concreta e ainda dizendo que o seu título (A Estranha Ordem
das Coisas) nada deve à publicação em inglês de As Palavras e As Coisas,
traduzido como The Order of Things, sendo que Foucault pouco mais fez do que
escrever, durante trinta anos, sobre a armadilha das simplificações, na
interpretação biológica da natureza, bem como sobre a manipulação cultural dos
sentimentos, ou seja, sobre a dificuldade de os interpretar fora de uma ordem
(relativa) discursiva.
Damásio refere que a linguagem e a sociabilidade desfilam na
história cultural mas não os sentimentos. Talvez por ser difícil dizer mais do
que banalidades funcionais sobre os sentimentos, sem recorrer à linguagem. Eu,
que sou um ignorante, tenho a ligeira sensação de que a formação da mente
cultural é associada pela tradição da história natural (e pelas Humanidades) à
linguagem, precisamente por se identificar que o salto qualitativo e
significativo, não se compreende sem a linguagem e a complexidade descritiva
(dos estados interiores e da relação com o ambiente) implícita na quase infinita gama de possibilidades permitida pela linguagem (e não pela maquinaria biológica básica sentimental). Podemos explicar por sinais (e analisar como fez Darwin) as
expressões faciais, mas isso não permite avançar um milímetro na compreensão
da evolução das culturas humanas. Como o próprio Damásio reconhece várias vezes, varrendo a
contradição para baixo do tapete, as origens da maquinaria sentimental são
humildes e comuns a outros animais. Eureka! Daí os cientistas sociais e
biólogos terem escolhido a linguagem (e não uma coisa tão difícil de
interpretar como os «sentimentos») para momento chave na evolução cultural.
Além do mais, a linguagem é a porta (por excelência) para a análise dos sentimentos, como o próprio Damásio reconhece também, invocando a importância da literatura,
e definindo Shakespeare como o maior especialista na sua área. Não se percebe então, para lá da graçola nos jornais, a razão de não ter recorrido a Shakespeare para estruturar o seu livro. Seguramente, a coisa tinha corrido melhor, na forma e no conteúdo.
Sobre a novidade implícita no livro.
Deixo um excerto de Geertz (inteiramente ignorado no livro, talvez trocado por coisas mais actuais, mas serôdias - o primeiro erro do cientismo é considerar a novidade cronológica como valor em si) com respectiva citação, para os interessados pesquisarem depois, se quiserem, e confrontarem com algumas das banalidades escritas por Damásio (quando fala de
cultura e história cultural) e para os desconfiados a quem passa pela cabeça
neste momento a hipótese de eu ser um pobre pedante, sem noção dos meus limites
e indiscutível estupidez, por descrever nestes termos o trabalho do senhor
professor doutor António Damásio.
«And
therefore, the development, maintenance,
and dissolution of "moods," "attitudes," "sentiments," and so
on - which are "feelings" in the sense of states or conditions, not
sensations or motives - constitute no more a basically private activity in
human beings than does directive "thinking." The use of a road map
enables us to make our way from San Francisco to New York with
precision; the reading of Kafka's novels enables us to form a distinct and
well-defined attitude toward modern bureaucracy. We acquire the ability
to design flying planes in wind tunnels ; we develop the capacity to feel
true awe in church. A child
counts on his fingers before he counts "in his head"; he feels love
on his skin before he feels it "in his heart." Not only ideas, but
emotions too, are cultural artifacts in man. Given the lack of specificity of
intrinsic affect in man, the attainment of an optimal flow of stimulation to
his nervous system is a much more complicated operation than a prudent steering
between the extremes of "too much" and "too little."
Rather, it involves a very delicate qualitative regulation of what comes in
through the sensory apparatus ; a matter, here again, more of an active seeking
for required stimuli than a mere watchful waiting for them. Neurologically,
this regulation is achieved by efferent impulses from the central nervous
system which modify receptor activity.»
Geertz, The Growth of Culture and the
Evolution of Mind, The Interpretation of Cultures, Basic Books, 1973, pp.
81-82.
Esta "novidade" foi publicada em 1973.
Camaradas! Não se trata aqui de esgrima sobre notas de
rodapé. Trata-se de uma guerra pelo estatuto e mais uma prova de como as
Humanidades estão em irreparável perda, em parte por culpa própria, por ignorância, cobardia e situacionismo dos senhores professores doutores em Humanidades. Todo este ensaio de Geertz é
impressionante - e fundamental para o tema abordado por Damásio - e posso
garantir que dificilmente lerão algo tão rigoroso e profundo, no que respeita à
relação entre sentimentos, evolução, mente e cultura, no livro de António Damásio. O livro A Estranha Ordem das Coisas merecia uma estranha discussão à altura da terraplanagem nele contida, mas suspeito que o silêncio vai reinar como uma imperatriz asiática.
Isto é decisivo para o ponto principal desta minha
esfusiante indignação: Damásio parte de uma ideia - a de que os sentimentos são
um motor decisivo das culturas - apresentando-a como novidade, ou seja,
lançando para o caixote das irrelevâncias três séculos de estudos em Humanidades. O que
dizer do total silêncio a que vota Rousseau, um homem para quem, até às suas dolorosas lágrimas derramadas na estrada de Vincenne, a enorme preponderância dos sentimentos não tinha sido tida em conta na análise da cultura, das artes e das ciências?
Não resisto a brindar o leitor com uma entusiasmante novidade:
«Pretende-se que a linguagem dos primeiros homens corresponda à língua dos geómetras, mas o que nós vemos é que ela tem antes que ver com a língua dos poetas. E assim deve ter sido. Não se começa por raciocinar mas por sentir. Diz-se que os homens inventaram a fala para exprimir as suas necessidades, mas esta opinião parece-me insustentável. (...) Qual seria então a sua origem? As necessidades morais, as paixões. (...) Não foram nem a fome nem a sede mas sim o amor, o ódio, a piedade ou a cólera que pela primeira vez soltaram a fala dos homens. (...) Os frutos não nos fogem das mãos, podemo-los comer calados; é também em silêncio que se persegue a presa que se pretende abater - mas para conseguir comover um coração ainda inocente ou afastar um agressor injusto é a natureza que nos dita os seus acentos, exclamações ou lamentos.»
Esta simples conclusão acerca da importância dos sentimentos na história cultural - apresentada por Damásio como novidade - foi escrita por Jean-Jacques Rousseau, no Ensaio sobre a Origem das Línguas, provavelmente, entre 1753 e 1756 e publicada apenas postumamente em 1781. (edição portuguesa, 1981, Estampa, pp. 47-48)
Isto acontece, apesar de António Damásio referir logo no prefácio como as Humanidades são importantes. Sim, importantes, sobretudo como público comprador dos seus livros e consumidor da sua ciência, e para utilizar como emblema na lapela do casaco, citando Shakespeare, pois a forma olímpica como Damásio contorna a biblioteca das Humanidades, o que empobrece o seu trabalho, é verdadeira e espetacularmente, digamos, acrobática.
Não resisto a brindar o leitor com uma entusiasmante novidade:
«Pretende-se que a linguagem dos primeiros homens corresponda à língua dos geómetras, mas o que nós vemos é que ela tem antes que ver com a língua dos poetas. E assim deve ter sido. Não se começa por raciocinar mas por sentir. Diz-se que os homens inventaram a fala para exprimir as suas necessidades, mas esta opinião parece-me insustentável. (...) Qual seria então a sua origem? As necessidades morais, as paixões. (...) Não foram nem a fome nem a sede mas sim o amor, o ódio, a piedade ou a cólera que pela primeira vez soltaram a fala dos homens. (...) Os frutos não nos fogem das mãos, podemo-los comer calados; é também em silêncio que se persegue a presa que se pretende abater - mas para conseguir comover um coração ainda inocente ou afastar um agressor injusto é a natureza que nos dita os seus acentos, exclamações ou lamentos.»
Esta simples conclusão acerca da importância dos sentimentos na história cultural - apresentada por Damásio como novidade - foi escrita por Jean-Jacques Rousseau, no Ensaio sobre a Origem das Línguas, provavelmente, entre 1753 e 1756 e publicada apenas postumamente em 1781. (edição portuguesa, 1981, Estampa, pp. 47-48)
Isto acontece, apesar de António Damásio referir logo no prefácio como as Humanidades são importantes. Sim, importantes, sobretudo como público comprador dos seus livros e consumidor da sua ciência, e para utilizar como emblema na lapela do casaco, citando Shakespeare, pois a forma olímpica como Damásio contorna a biblioteca das Humanidades, o que empobrece o seu trabalho, é verdadeira e espetacularmente, digamos, acrobática.
Com a exceção de Hume, Marx, Durkheim, Freud e o inclassificável
William James, Damásio praticamente não considera relevante abordar as ideias
de autores provenientes da tradição histórica, filosófica e antropológica.
Chega a falar da forma como se tem negligenciado o intestino como fenómeno de
equilíbrio homeostático, quando para além dos gregos (não exijo o conhecimento
de toda a tradição peripatética) por exemplo, Nietzsche escreveu e muito sobre
o tema. E o que dizer da lateralização de Adam Smith e das suas impressionantes tentativas de
circunscrever uma teoria dos sentimentos morais? A leitura de Smith teria impedido Damásio de escrever os confrangedores parágrafos a propósito de lucro celular, lucro social e ganância.
Para os mais desatentos, o que Damásio acaba por fazer, mesmo involuntariamente, prolongando um imortal debate, é defender a precedência de uma natureza
universal (neste caso sentimental) sobre a cultura, com tudo o que isso
significa de homérica ignorância sobre a força do hábito, e das segundas naturezas, e sobre as
armadilhas dos projetos educativos e éticos, baseados em coisas tão imprestáveis como o conceito de virtudes clássicas. Como já dizia Tucídides,
«sagradas são as armas quando só nelas reside a esperança». Talvez Damásio queira explicar a sua teoria educativa aos terroristas, quer os árabes, quer os cristãos, ou talvez os considere como ignorantes, a precisarem de ser educados, ou doentes mentais, a precisarem de internamento, ou talvez reconheça que o contexto das culturas humanas evolui sobre as manipulações da linguagem, a retórica e a escultura dos «sentimentos» e que a compreensão das coisas implica sempre uma certa violência sobre as coisas.
Como não sou um guru académico, não vou cair na tentação de
me pronunciar sobre o tema, e fujo cobardemente para a minha irrelevância, mas
não deixo de vislumbrar - e este é o sentido deste longo, desagradável e
aborrecido post - um certo facilitismo da parte de António Damásio. O que me custa, num autor pelo qual sinto (lá está) um certo respeito.
Deixo uma prova final com a retumbante conclusão a que
Damásio chega depois de milhões de anos de análise do caldo de bactérias até
às sinfonias metafóricas do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, com que
nos brinda para nos elucidar – como se fosse preciso, valha-nos Deus - sobre a
complexidade da relação entre sentimentos e consciência:
«A educação, no sentido mais vasto do termo, é o caminho
óbvio a seguir. Um projeto educativo a longo prazo que tenha como objetivo
criar ambientes saudáveis e socialmente produtivos terá de destacar
comportamentos éticos e cívicos e de encorajar as virtudes morais clássicas -
honestidade, bondade, empatia e compaixão, gratidão, modéstia.» A Estranha
Ordem das Coisas (p. 307).
Saúde e Produção. Ética e Cidadania. Valha-nos Deus, pela
segunda vez! Se isto é o que um especialista sobre a Vida, os Sentimentos, as
Culturas Humanas (um tema supermodesto, note-se) tem para nos dizer, estamos
perdidos. Consta que no Médio Oriente tentaram este projeto educativo, há cerca
de 2000 anos, e não tem corrido muito bem. Em parte devido à nossa propensão
(Ocidental) para a saúde e a capacidade produtiva.
Walking to school in Syria via
No fundo, António Damásio prescreve como modelo para a educação da humanidade o professor doutor António Damásio.
Bem sei, o professor doutor António Damásio trabalha respeitosamente dentro
das disciplinas mas quer dinamitar os limites das disciplinas. Contudo, não se pode ter sol na eira e chuva no nabal, como bem diz o povo,
que não vai à escola, mas tem sentimentos.
4 comentários:
o povo e os sentimentos vai dar no mesmo que o Damásio zero sentimentos.
o Damásio é povo, quer queira (ele/Alf), ou não.
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os aforismos são bestiais, e não pertencem exactamente às Humanidades', e não será à toa que cada vez mais as 'Ciências' lhes pegam, seja lá com luvas ou sem elas, não me interessa isso.
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bom, trata-se de um post do caralho, não li o livro do Damásio, tens seguramente mais conhecimentos na área das 'Cas' do que eu e nem sequer queria, aquies, discutir aqui/alhures, a questão.
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Porra, que é feito da dúvida?
Pela ilustrações dá para perceber a profundidade da sua análise. Perfeitamente asqueroso.
Quanta falácia! Creio que você deveria estudar um pouco de neurociências e filosofia antes de desenvolver esta sua análise tão pobre. Você realmente não compreendeu o livro, nem um pouco. E lhe falta vivência, lhe falta prática, experiência, vida. Triste, muito triste a sua situação.
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