quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Jorge Jesus: o último samurai.

The sucessful man adapts himself to the world. The loser persist in trying to adapt the world to himself. Therefore all progress depends on the loser.

Paráfrase do grande Simon Leys a um aforismo de Sir George Bernard Shaw, no espetacular The Hall of Uselessness: Collected Essays


Retribuindo a extensa atenção dispensada pelos meus leitores internacionais (lembro que a China lidera de longe o número de visitas desde blogue) quero começar por esclarecer que Jorge Jesus era o treinador de um clube desportivo de Lisboa no longínquo ano de 2013. Mas o seu caso serve aqui apenas como tipo sociológico, e pisco desde já o olho a  Maxi Weberiano Pereira, no nosso propósito de uma reflexão geral, irreversível e perigosa: saber até que ponto a violência pode ainda redimir-nos como povo, como nação, enfim, como conjunto de pessoas dotadas de braços e pernas. Atenção, não estou com isto a fazer uma apologia da violência - não comecem por me interpretar erradamente para não acabarmos em bizantinas explicações sobre os universais, a filosofia de Abelardo, o papel de Wittegenstein como socorrista na primeira guerra mundial -, ou não vivêssemos nós abraçados a um sistema político onde ser afirma deter o Estado (e não o Estádio) o monopólio da violência, isto segundo Maxi Weberiano Pereira. Vamos seguir antes noutra direção e chamo desde logo a atenção dos meus leitores para a palavra monopólio. Num tempo em que o efeito de «monopólio» é perseguido com talibânico zelo, não se terá oferecido Jorge Jesus - como cordeiro na pedra fria do altar do sacrifício - no sentido de entregar ao mercado a escolha sobre os titulares da utilização da violência? Por académica consideração vamos supor que sim, Jorge Jesus decidiu enfrentar o monopólio da violência, concorrendo com a Polícia, a republicana e a de segurança pública, os pretos da Cova da Moura, a marinha, os ciganos, o exército, e o Adelino Caldeira. Não terá Jorge Jesus introduzido os seus braços entre estes prestigiados players da trolha, apenas com o inocente e abnegado propósito de lançar o debate sobre o que é uma polícia democrática e qual é o papel do cidadão no contributo para a democratização da polícia?

 
Jorge Jesus executa o SakapuKiri, ou lá o que é, numa tentativa de resolver a situação sem recorrer à violência.

Claro que debater esta questão significa enfrentar as sagradas leis da previsibilidade, da segurança e dos consumos intermédios do Estado, nomeadamente em viagens turísticas nos estádios portugueses, para não falar dos coletes refletores com a expressão: Polícia. O saudoso Maradona, nos seus tempos de ser vivo, costumava exercitar-se em manifestações de adoração em relação à violência policial em nome do Estado Constitucional, amen. Eu também gosto muito da violência policial mas não de toda a violência policial, por exemplo, não gosto da chamada violência policial desproporcionada. Ora, estando nós num país mergulhado em corrupção, onde se desvalorizam todos os monopólios estatais, a começar pelo da educação, é sintomática a nossa contínua e inabalável respeitabilidade dos atos policiais. Não que eu pretenda subscrever o preconceito das pessoas que consideram Karl Marx o maior pensador de todos os tempos - sobretudo em arruaças com manifesto vandalismo urbano - mas não posso deixar de considerar interessante que ninguém queira pagar impostos para se pagar principescamente -e apertar violentamente os critérios de seleção - das forças policiais, mas esteja sempre toda a gente olimpicamente disposta a reivindicar direitos penais de proteção, repressão, explosão, recurso a masmorras, matracas, juristas vociferantes, manadas de elefantes para defender a polícia, sobretudo quando a polícia arreia em pessoas em inferioridade numérica e desarmadas. Não seria melhor pagar mais aos senhores polícias e proteger menos os senhores polícias? Segunda questão: é preciso as pessoas envolverem-se em «gravatas e cafricos» e golpes de karaté para devolver uma pessoa, aparentemente pacata, à bancada de onde proveio? O cidadão é obrigado a respeitar os códigos em todos os contextos? Não são as contradições entre legitimidades precisamente o banquete onde os juristas se deliciam com as suas saborosas piruetas argumentativas?

 
Depois da Descida da Cruz, de Caravaggio, não há melhor que isto na paleta visual dos últimos séculos. Tentativa de arrancar a cabeça, por parte dos seguranças e Polícia, a um cidadão português munido com a camisola de Ola John, outrora uma criança nascida na Libéria, e hoje arma secreta do maior clube português de futebol. À esquerda, Cardozo, o paraguaio, que representa borgianamente o labirinto do amor clubístico, coloca a mão direita sobre o sagrado ombro de um elemento da Polícia de Segurança Pública.
 

Estaremos todos de acordo: a polícia defende a nossa segurança como até um burro do tamanho do Jorge Gabriel consegue vislumbrar entre as pausas jornalísticas de cada uma das suas amplamente complexas frases, e aí estão os códigos civis e penais para eloquente demonstração dos especiais direitos de proteção de que goza a polícia. O leitor afine agora os seus dotes de perceção pois o meu argumento vai entrar de seguida escoltado por fanfarra, bombeiros de capacete reluzente, criancinhas trajadas de anjo, e bandeiras franjadas.


 
Jogadores do Benfica exercitam movimentos «Samurai», industriados pelo mestre Jorge Jesus San


A cultura da Europa ocidental e contemporânea ergue-se contra o fluir inexorável do tempo. Mas os orientais servem de boa vontade o fluxo da sucessão natural das coisas, ou não tivessem eles inventado os primeiros relógios mecânicos. A aparente placidez do indivíduo asiático combina-se com um extraordinário domínio das técnicas de ataque com o uso das próprias faculdades motoras. Já os ocidentais, desde a invenção da pólvora, e a coisa agravou-se com a descrição estatística das trajetórias de disparo, não têm feito outra coisa se não engordar, veja-se o lamentável caso norte-americano, a maior concentração do mundo de lutadores de sumo. Pelo contrário, o Oriental desenvolveu uma fina capacidade para integrar a sua formação mental numa política da autonomia moral e autodomínio corporal. Não é por acaso que as pressões económicas e civilizacionais têm penetrado na Ásia com um total desrespeito pelas versões oficiais dos manuais escolares. Um eloquente ensaísta inglês chega mesmo a afirmar que o Chinês (mas podíamos dizer o Japonês, para nós é igual) constrói com materiais perecíveis porque respeita a marcha inexorável do tempo e sabe que a única forma de combater a destruição das realizações humanas é aceitar o movimento, a mudança, a finitude dos materiais. Só há uma forma de eternidade: a palavra escrita, ou diríamos nós, na forma mais sofisticada, o código, a linguagem racional com regras de produção finitas. Na verdade, o oriental desenvolveu uma sistemática do comportamento em articulação com o caso, não utiliza o julgamento moral como sistema de segurança, e não coloca a vida como valor supremo da organização civilizacional. Maravilhosos, estes nossos irmãos orientais. No que me diz respeito já quase não como outra coisa se não Sushi, e não utilizo talheres.


Contudo, no Ocidente, a moralidade parece ser uma função de adaptação ao ambiente: conforme o sucesso material de um dado comportamento exterior, o ocidental tende a resfolegar na inconsistência de raciocínio como o porco na lama. Sacrifica tudo ao estômago e à pilinha. Pelo contrário, o oriental raciocina sempre em função de um código de sobrevivência conceptual (a honra, o autodomínio, o sacrifício do desejo, o comportamento imperturbável diante do perigo, a conservação da ordem, a imperturbabilidade, olé, dos papéis sociais). O ocidental esbraceja desesperado para eliminar o tempo, em função do consolo do seu desejo. Não por acaso, veja-se o festival de incoerência a propósito do piropo: embora estejamos no âmbito moral aponta-se a criminalização como instrumento de resolução do problema, não havendo grande interesse em argumentar com fundamentação moral, recorrendo ao exemplo, à educação, à saudável convivência e à sofisticação das formas de linguagem. Já no caso da épica embrulhada do suburbano treinador de um clube desportivo com membros da força policial, apesar dos factos estarem amplamente criminalizados e o seu julgamento seguir a devida tramitação nos tribunais, prolifera toda uma multiplicação de juízos morais sobre o caso, com tentativas de sistematizar o importante papel pedagógico do treinador, a responsabilidade mediática das pessoas televisionadas, o papel de companheiro, de pai, de zelador pelo nosso futuro e segurança, pretensamente atribuído ao crístico Jorge Jesus.
 

 
 A magnificamente bela, deslumbrante e desesperadamente charmosa Koyuki em The Last Samurai, Edward Zwick, 2003.
 

Tenhamos calma. Jorge Jesus limitou-se a colocar ao serviço do cidadão a sua força de braços, martelando a força policial de forma a libertar um adepto da utilização desproporcionada da força. Jorge Jesus limitou-se suspender o cálculo estratégico de longo prazo para resolver um problema moral imediato com o recurso dos seus dois braços. Estará a nossa segurança em perigo por causa de umas estaladas? Estaremos assim tão lerdos que tenhamos que, às portas da era do androide, utilizar a jurisprudência como mecanismo de repressão geral para segurança nos estádios? Viveremos ainda mais um século entre a religião dos magistrados? Teremos ainda que inclinar as nossas cabeças ante os mecanismos de controlo automático exógeno (os Tribunais e a Polícia) só porque deixámos de conseguir introduzir automatismos cerebrais de controlo motor na cabeça das nossas crianças? Não saberemos nós distinguir uma situação de perigo de um arraial? Não devíamos estar antes a discutir o que faziam os jovens bombeiros de 20 e poucos anos na frente do fogo, e procurar enviar para a cadeia os responsáveis? Não devíamos estar antes a procurar apertar o pescoço aos comandantes de operações responsáveis por estas estúpidas e inacreditáveis mortes, a começar pelo Ministro da Administração Interna? Temos assim tanto medo do futuro? Somos assim tão incapazes de computação paralela de forma a identificar a melhor solução para cada problema colocado? Sim, parece que tristemente, assim somos. Mas vivam o Continente e o Tony Carreira, duas instituições que nunca terão problemas com a polícia.

4 comentários:

condenado disse...

Muito bem. Dos do velho e degradante continente, são os suíços que mais se assemelham com os nipónicos; tome-se como aperitivo a sua orgulhosa relutância em relação à ue, posição apenas ao alcance de construtores de relógios. Mas que outro coisa, caro alf, une, para lá da construção de relógios, o Japão À Suíça? O vermelho e o branco de que as suas bandeiras se tingem. Então e os javardos do turcos? Esse porco encurralado na porta do curral. Aguardo calmamente os seus esclarecimentos, samurai alf.

Anónimo disse...

«A primeira vez que editei um livro de poemas, tinha 24 anos, dormi com o livro na cama. Pu-lo ao meu lado um pouco entalado na almofada e passava a noite toda a acordar, a olhar para ele. Fiz isso outra vez quando saiu o meu primeiro romance e agora voltou a acontecer. Alude a uma satisfação com o texto mas é um objecto impecável. Estou apaixonado por este livro. E se é verdade que os livros são gente vou exigir que a lei, já que se podem casar pessoas do mesmo sexo, que se possam casar pessoas com livros independentemente de os livros terem sexo.»

http://www.malomil.blogspot.pt/2013/09/sleeping-with-enemy.html


o jorge jesus é mais sensato do que aparenta.

Tolan disse...

Alfi! You are back!

Cuca, a Pirata disse...

Monopólio da violência? Andaste a ler o Zizek, Alf?
E isso da intervenção meiguinha da polícia não é tão simples como parece.