sábado, 2 de março de 2013

A rua é para quem não gosta de ler, o vento perturba a viragem das folhas, a chuva estraga o papel mais frágil, que é sempre o mais agradável, e o sol queima os olhos que já não se prestam a batalhas com a claridade.

Estou sentado no meu cadeirão de veludo e observo. Só Portugal podia ter gerado um especialista na auto-anulação, só a nossa comunidade, especializada em celebrações do silêncio (deve ser a palavra mais impressa em livros de poesia nacional) podia investir todo o seu capital de adulação em torno do mesmo indivíduo a quem negou os incentivos para falar, só um povo amante dos constrangimentos labirínticos, adestrado em cóleras de sacristia e quarto periférico, podia ter criado um problema retórico como o de Fernando Pessoa, o mestre da gaveta, o sacerdote dos adiamentos, o cantor das multiplicidades estéticas, o tecedor de rendilhados alternativos ao poema, por não se saber o que se quer do poema (se forma ou conteúdo, o que é já uma forma de se mostrar doente em relação à vida) o auto-observador que fica à porta da coragem de morrer em silêncio pois trocando o risco da glória pelo culto da prudência, deixou material que chega para quatro gerações de seguros contra todos os riscos, o multiplicador de orações sobre o vão valor do que se diz, ainda que cada migalha de todo esse material seja um monumento à eloquência de colocar o problema do discurso e por isso um engrandecimento do discurso, o que chega a ser ridículo.
 
 
Não é difícil envergar a toga dos cínicos. Entrei na Universidade como quem entra num comboio tecnologicamente ultrapassado, desses que regurgita um fumozinho amarelo, serpenteando entre florestas luxuriantes a caminho das neves meridionais. Entrei no labirinto da razão como o camponês que chega ao palácio para pagar os seus impostos e por isso fui sempre dos que se riem muito baixinho diante dos grandes projetos de justiça geométrica e bondosa, embora talvez vos não pareça. Sentava-me com um livro na mão, espumava a minha parte de raiva interior, sonhava com os meus planos de vingança pessoal, e mergulhava no espaço virtual onde se unem leitor e escritor para congeminar ou a tragédia de um ou a glória de outro, ou a derrota de ambos, quando o leitor é apenas um prolongamento da doença que gerou o escritor. Desde então pouca coisa mudou. Por estes dias há um burburinho que sinceramente me agrada. Tudo menos o fétido cheiro da estagnação. Mas sofro pelos iludidos e os fracos que mais uma vez serão engolidos pelas várias baleias cuja cauda gigantesca e pesada vai determinando movimentos estranhos na ondulação.
 
 
Se não acabar bem, esta cena ainda vai acabar mal. Uma frase que ficaria bem a qualquer empregado de escritório indiferente ao sentido do progresso.

2 comentários:

Anónimo disse...

a rua é para quem não consegue fazer a revolução em casa, sentado no sofá, enquanto assiste ao real madrid-barcelona.

a revolução não se faz no silêncio e na estagnação, mas faz-se em silêncio e com calma, no aconchego do lar. daquilo a que chamamos lar, enquanto fazemos algo que nos dá prazer.

começa na nossa cabeça, com um plano. sem plano não há revolução, há apenas anarquia. a anarquia é o aposto de revolução. a revolução tem de ser sempre organizada, planificada ao mínimo detalhe. na rua não dá para fazer planos. temos de seguir o plano da rua o que é deveras chato. em lisboa, por exemplo, temos de seguir o plano do marquês de pombal. já pensaram nisto? a manifestação de hoje, mais uma vez, começa na inefável rotunda. há muita gente a fazer barulho, muita gente que se esquece dos detalhes. e assim, não se fazem revoluções. a rua é capaz de mudar tudo, e hoje, poderá até conseguir mudar de primeiro ministro, no futuro de regime político. mas não fará a revolução.

depois tentamos colocar o plano em prática, sempre utilizando o nosso corpo e a nossa "alma" como objectos de estudo, como cobaias.

se formos bem sucedidos, a revolução está feita. é isto. chega. faz-se no espaço de um real madrid-barcelona. basta ter uma ideia qualquer e desenvolver o plano. e quando terminar o jogo podemos começar a ler e, quem sabe, a escrever para tentar convencer os outros de que a nossa revolução vale mais do que as outras.

se não conseguirmos, então, podemos ir para a rua, partilhar o insucesso dos/com os outros. afinal o jogo termina às 17 horas, e se morarmos em lisboa podemos ir atirar pedras da calçada aos polícias, podemos ir para a frente do palácio de são bento gritar contra os polícias, podemos ir para do edifício onde se encontra o técnico do fmi atirar tomates aos polícias, podemos abraçar os polícias, e podemos levar com o cassetete de um polícia para ficarmos com uma boa lembrança da manifestação.

nada como uma cicatriz para treinar a memória. uma pessoa olha para a cicatriz, por mais pequena que seja, e lembra-se de tudo.

vamos lá então fazer a revolução.

Capt. Paddock disse...

A rua é para quem a trabalha.