terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Que ninguém tenha dúvidas, pois obviamente, quando virem nas notícias que alguém recusou, saberão que sou eu.

Bom, resumindo. Só discordo que 9 páginas a falar da picha do pai seja patológico. Eu não li, mas deve ser um comovente: quem sou, de onde venho?... dali… fodaçe, nada sou!
Ex-Vincent Poursan, o imortal, e por isso dispensamos as referências.
 
 Recusa um prémio quando receberes um, isso é que é bonito.
Tolan, o aclamado, apaziguador e talentoso autor
 que estamos a tentar salvar do inferno do esquecimento futuro.
 
 
 
A minha vida tem sido uma sucessão indemonstrável de consistentes demonstrações acerca da veracidade profunda de todas as obras-primas em geral, ou seja, quando julgamos estar no caminho certo, tranquilamente impulsionados pelo esforço honesto, ou pelo menos consistente, ou pelo menos estrategicamente bem delineado, da nossa vontade indomável, ou pelo menos persistente, e espírito modesto, ou pelo menos humilhado, eis que uma tempestade, um toque do diabo, uma frase desajustada, uma volta do planeta, uma queda inusitada, uma mordidela de maçã, ou o passar de uma gaja inacreditavelmente bela, nos empurra para o confronto mortal com o nosso próprio rosto. E que paisagens horríveis nos são então reveladas enquanto caimos com estrondo e elegância nas malhas da realidade. Uma aranha gorda começa por descer  na nossa direção e os gritos surdos e impotentes (como os do pequeno Pip, perdido na imensidão do oceano após o medo o ter lançado borda fora do Pequod) acabam sugados pela infinitude de significados possíveis que podem revestir de ouro puro ou ganga barata esta nossa inexplicável tragédia.
 
 
Não tinha eu ainda completado o secundário e eis que num texto sobre a poesia do Eugénio de Andrade, solicitado pela minha incrivelmente pindérica e nada atraente (com excepção de um belo par de pernas longilíneas) professora de Língua Portuguesa, resolvo extrair a golpes de génio adolescente uma epígrafe do referido poeta - Despe-te! O teu destino és tu. Não há outro caminho - e abandonando completamente o elogio técnico de um competidor no canto resolvo delinear, no intervalo de uma pelada que me estava a correr mal, uma micro-biografia que aos 17 anos apenas podia versar sobre memórias esconsas de estações ferroviárias sob o olho branco da lua, corridas de barquinhos esculpidos em casca de pinheiro nas levadas de um complexo sistema de rega comunitário, madrugadas de Verão em serpenteantes veredas de montanha cercadas de tojo, o milho ondulante nas encostas de um cume esburacado pela indústria extrativa do minério, muita desorientação, muita raiva, muita vontade de encontrar o lugar onde o peso e a velocidade não exercem a sua tirania, ao que a senhora professora responde: «quando fazes citações é necessário identificar o autor - e com ar ameaçador, abrindo muito os olhos reptilíneos humedecidos pela humilhação insistiu - de onde retiraste isto, confessa?»
 
 
 

Permaneci em silêncio com as unhas cravadas nas palmas das mãos. Foi o meu único contacto com prémios. Acontece que não sendo eu um partidário da mitologia dos escolhidos, livros de cavalaria não os li se não pela versão filtrada do génio maneta, e sendo absolutamente descrente em relação aos méritos da inspiração, devo sustentar uma teoria que articule a necessidade de esforço, trabalho, mérito, que sempre existe em qualquer actividade artística humana (o Tolan já apresentou coisas ao indiano, uma coisa perante a qual devemos apresentar as nossas armas e baixar a cabeça) com o facto de sempre existir alguma coisa na nossa vida, na nossa performance, e nos significado de que tudo isto se vai revestindo pelos séculos dos séculos, que se deve a uma combinação de causas que foge cabalmente ao nosso controlo e interpretação (o que é a mesma coisa, note-se).
 
 
Por outras palavras, tenho vindo a sustentar que se aquilo que todos perseguimos durante a vida fosse apenas a tranquilidade que um salário pode comprar, há muito que teriamos substituído o Manuel Luís Goucha e a Fátima, além de Fátima e o aleatório futebol em geral, por explicações pormenorizadas das equações de Maxwell e Schrödinger (que pelos vistos o Nuno Camarneiro domina, o que do ponto de vista artístico, de nada lhe valeu) com vista à obtenção de mão-de-obra barata nos laboratórios de todo o mundo uni-vos. O problema é que não só a competição e os limites da racionalidade e da computação relativizam todas as projeções sobre a nossa posição e as dos nossos adversários (até um génio como von Neumann admitiu este problema e como todos os génios baixou humildemente a cabeça e arregaçou as mangas para o trabalho) como não fazemos a mínima ideia sobre o que fazer com o conforto, o poder monetário, a paz, os carros de luxo, especialmente os Mercedes que aumentam a tragédia do euro, as remunerações elevadas, a auto-satisfação connosco próprios, e outras formas de camuflar a nossa absoluta desorientação perante as coisas todas em geral.


 
 
O mais brilhante, profundo e erudito académico estudioso de Melville, Andrew Delbanco, escreveu em tempos um magnífico artigo no New York Times, The decline and fall of literature, onde entre outras coisas elaborava sobre a tragi-comédia em que se transformaram os departamentos de Inglês das Universidades americanas e inglesas, e explicava esta queda com o inacreditável e pueril esquecimento sobre a missão do professor: acreditar até ao último momento que todos os homens são convertíveis a uma visão mais crítica, mais justa, mais profunda e mais consistente da realidade. Os prémios seriam apenas um problema de valorização relativa, e por isso negligenciáveis por este autor sonhador que vos fala, se não fossem mega embustes, sem qualquer legitimidade social, artística, política, ou sequer lógica, que pretendem esmagar a livre escolha dos concorrentes à atenção do público.
 
 
Não há uma única notícia diária sobre a publicação de um livro de qualidade, de uma boa tradução de Melville, ou de uma boa encenação de Shakespeare mas os prémios literários são veiculados por todos os orgãos de comunicação que ainda mexem, mas não por muito tempo - o senhor seja louvado. Será preciso explicar quem paga este tempo de antena? Será preciso explicar uma vez mais os custos para a pluralidade, a criatividade, e a economia de mercado, deste sistema fascizante? É por isso comovente quando os mesmos que contribuem para o esmagamento de um discurso crítico vêm depois considerar que existe aqui um funcionamento de mercado. É preciso ser muito ignorante em economia - além de todas as coisas em geral - para confundir efeitos de monopólio informacional e até comercial com um modelo que seja minimamente aproximado ao consumidor imortal, actuando num horizonte infinito, dotado de meios de pagamento ilimitados e valorizando as equivalências de preço entre diversas preferências alternativas (e sobretudo a informação ilimitada, e sublinho ilimitada) de cariz liberal que todos aprendemos a estimar e apreciar mas que muito poucos estão dispostos a experimentar e muito menos a colocar em prática, não vá o almocinho grátis preparado pelos nossos papás licenciados ser forçado a pagar um prémio meritocrático que nos denuncie como um mega embuste de vida fácil, cunhas e vantagens iniciais incomparáveis, numa república que fez do enrabamento das classes baixas o seu modo de vida, e por isso, mal as classes baixas puseram a cabeça de fora, se diz agora mergulhada numa crise sem precedentes, pronta a dar uso à sua gadanha, ceifando todo aquele que levantar a voz.
 
 
 
 
Em matéria literária, cada um fará os livros que melhor entender para corresponder aos sonhos que conseguir acalentar de acordo com o alcance e profundidade da sua tragédia. Em todo o caso, nenhum de nós será vivo para assistir ao juízo do futuro, e nem mesmo o futuro terá a última palavra, pois essa sempre cabe ao esquecimento. Eu era ainda um adolescente quando extraí aquela epígrafe, mas quanta certeza e sagacidade existe no espírito saudável e ignorante das estratégias que mais tarde nos garantirão a sobrevivência mas nos empurrarão para uma sistemática depreciação da nossa própria dignidade e nobreza, por isso os gregos diziam que os deuses amavam os que morriam jovens. O problema é comigo mesmo, niguém tem culpa de nada, já o sabemos, e se por acaso ainda aí estão, caros leitores, é como mero resultado da história tecnológica ou como produto da generosa paciência - a mais nobre das virtudes -, pois de uma forma ou de outra, não sobreviverei a mim próprio. Mas se desde a adolescência fui formando algum sentido para a vida, foi o de conceder aos outros a melhor, mais consistente e rigorosa crónica desse embate, mesmo que para tal tivesse que recorrer à mentira, não sei se por orgulho, se por loucura, se por amor aos autores dos livros amados que desde então me tenho dedicado a  imitar.
 
 
O sempre presente Herman Melville morreu em 1891, deixando inédito o manuscrito, precioso e imortal, de Billy Bud, um livrinho de poucas páginas, abandonado sobre a secretaria de trabalho, e que a sua mulher mostrava carinhosa e orgulhosa aos convidados fortuitos, após a morte do marido e  autor. Na folha de rosto, Melville anotou com o seu lápis: «uma história sobre o que por vezes acontece neste nosso incompreensível mundo». Billy Bud é uma pequenina obra perante a qual o constantemente aclamado em vida Thomas Mann apenas chegou já muito perto da morte, exclamando magoado no final da leitura, «Oh, pudesse eu ter criado isto». Tentemos fugir deste momento. Neste nosso incompreensível mundo, onde como ensinava Lampedusa - de acordo com uma epígrade que apostei à minha primeira obra ainda não publicada, Uma Lenda Siciliana - ergui um escudo contra a ilusão, o único prémio que verdadeiramente me ameaça: «Acreditamos que nos dirijimos para o amor e vamos a caminho da morte».

2 comentários:

alma disse...

Excelente alf :)
enquanto a morte não me chamar estarei sempre por aqui :)

o cântico negro é boa companhia :)


Tolan disse...

Quanto maior é o contraste entre o que tu consideras válido e a realidade medíocre, digamos assim, mais relevante e necessário se torna o teu trabalho. Portanto, está tudo bem :)