quinta-feira, 25 de junho de 2009

A propósito de uma entrevista de Ferreira Leite falemos de elites

Vamos reincidir em reflexões antigas e recomentar aqui um texto já comentado. Explica-se isto por duas razões: a) os cronistas gostam de republicar as suas crónicas jornalísticas em livro pelo que devemos acomapnhá-los nesse processo; b) não leio literatura inglesa chegada agora mesmo na London Review of Books, não tendo novidades de erudição para oferecer ao caro leitor. Neste sentido, apresentamos um texto de rara beleza, publicado no Diário de Notícias, um dia destes, por João César das Neves onde a oração inconclusiva – “As desventuras da democracia” se explana em diáfanos desenvolvimentos historico-teoréticos. Este texto de César das Neves é antes do mais um trabalho de rigorosa reflexão sobre elites e a natural e saudável existência de classes:“Portugal e a Europa vivem mudanças ocultas mas radicais na sua política. Estas provêm da degradação das elites e, por reacção, do excesso democrático que reduz a democracia”.“excesso democrático que reduz a democracia”? Não compreendo totalmente o alcance deste raciocínio…Tentemos percorrer mais algumas linhas deste fértil mas enigmático pensamento.“A sociedade precisa de elites políticas, culturais, intelectuais e económicas. Destacando-se da população, elas influenciam decisivamente a evolução social. A democracia não se opõe, pelo contrário necessita dessa classe dirigente, desde que seja aberta, móvel, lúcida e respeite as regras. Nem sempre o povo entende o caminho proposto e é normal que desconfie dos líderes. Estes, sob pressão, sentem necessidade de se justificar, corrigir, gerar resultados. Esta interacção saudável entre classes faz a comunidade progredir, mesmo com zangas e lutas”.Um pouco mais claro Magister César das Neves, agora sim. As elites são a malta que tem poder, uma vez que cultura, intelecto, política, economia são dimensões idealistas de valências humanas que, neste caso, se querem destacadas e apuradas por um pequeno grupo - as elites (ou se o leitor quiser os poderosos, aqueles que nossa senhora referia no seu Magnificat: derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes, encheu de bens os famintos e aos ricos despediu de mãos vazias - mas isto era tudo em sentido metafórico, não é para levar a sério. Para levar a sério é aquela questão da rússia e da queda do comunismo por intervenção de nossa senhora). É então saudável que a população se divida entre dirigentes e dirigidos. Porquê? Perguntará o leitor mais incauto. Eu explico: porque o Magister baseia o seu pensamento numa reflexão de domingo à tarde, a saber: o homem é um animal cheio de pecaminosas sensualidades pelo que apenas aqueles que são tocados pela graça do senhor conseguem libertar-se desta materialidade (aquilo a que os teólogos chamam “o mundo”) para virarem o seu olhar, em eterna contemplação, para as coisas do alto. Neste momento as coisas do alto (que no passado estavam relacionadas com a meditação dos evangelhos, a recitação da liturgia das horas, a leitura desse imenso comentário que são as Patrologias Gregas e Latinas) incluem também as relações entre a econometria e os pastorinhos de Fátima. Claro que nem todos podem atingir sem vertigem estas altitudes. Resta ao povo “que não entende o caminho proposto” deixar-se dirigir, numa “interacção saudável” a caminho do progresso. Não se julgue que o Magister Neves não acredita no progresso.“Um dos maiores dramas sociais é, portanto, a decadência cíclica das elites. Quando tal acontece aparece a tentação de as eliminar. Há 200 anos os jacobinos e há 100 os comunistas disseram criar a democracia perfeita na "sociedade sem classes". Mas a anulação das diferenças é tonta, como impor igualdade de gostos ou alturas. As classe sociais são um fenómeno tão natural como o sono, a família ou a chuva. Este facto, evidente com um mínimo de atenção, é negado em certas épocas mais arrogantes que julgam poder mudar a natureza humana, acabando por sofrer os efeitos do atrevimento.”
Magister Neves, gosto especialmente desta parte em que nos é revelado qe as classes sociais são um “fenómeno natural como o sono, a família ou a chuva”. O estimado leitor pergunta-se sobre quem terá comunicado ao magister estas certezas sobre a imutabilidade da natureza humana. Talvez ele tenha habitado um gruta paleolítica, erguido um menir nessas festas agrícolas do neolítico, integrado uma dessas desgraçadas comunidades de remadores escravizados nas galeras romanas. Foi por esse mundo de experiência inter-classista que o Magister compreendeu biblicamente, em profunda união com o objecto do seu conhecimento, a panóplia de virtualidades de uma estratificação social bem vincada. Depois vieram os jacobinos e os comunistas e deram cabo desta perfeita harmonia. Os escravos revoltaram-se (malandros), os camponeses pegaram em foices (insurrectos), os operários fizeram greves (gatunos), os filósofos arrogaram-se o direito de circunscrever o clero no seu raio de acção (bestas diabólicas) e foi um forróbódó de excesso democrático, degradando-se essa saudável prática de haver tipos que mandam, tipos que rezam e tipos que trabalham.
“O pior de tudo é que, ao insistir na tolice de recusar diferenças, se deixa de actuar onde é conveniente e necessário. O esforço de cada época deve ser, não eliminar desigualdades mas injustiças, não erradicar classes mas evitar a sua degradação e promover a mobilidade. Cada grupo deve cumprir o seu dever no bem comum. Os problemas surgem quando, por cobiça ou preguiça, se alteram os papéis sociais. Como disse Confúcio: Deixem o dirigente ser um dirigente, o súbdito um súbdito, o pai um pai, o filho um filho." (Analectos XII, 11). O Magister esqueceu-se da última recomendação, talvez a mais importante de todas: deixem o parvo ser um parvo. Pois concerteza. Faça o favor de prosseguir.“O estádio actual da integração europeia manifesta bem o problema. Desde sempre a CEE constituiu um projecto das elites. Os grandes avanços comunitários de partilha de soberania são rasgos de génio de um punhado de líderes que mal conseguiram o apoio alheio e distraído das massas. Os sucessivos tratados europeus foram aprovados de forma expedita, com o povo concordando tacitamente e sem entender bem o que se passava. Houve erros e abusos, mas grandes benefícios. O sucesso das elites trouxe a desorientação. A arrogância levou-as à fúria do alargamento que mudou para sempre a Comunidade. Pior, embebedadas de euforia, acharam que o povo ia aprovar a malfadada Constituição Europeia. O resultado foi, não mais representatividade, mas a maior crise institucional da Europa que, se vier a ser resolvida, deixará cicatrizes duradouras. Entretanto, Portugal caía num mal-entendido equivalente. Adoptando eleições directas para escolher os seus líderes, os grandes partidos mudaram para sempre a natureza da política portuguesa. O resultado, como nos EUA, não é mais democracia ou eficácia, mas mais populismo. Isso trará ao poder dirigentes como Clinton e Bush, Menezes e Santana, com relações ambíguas com os aparelhos e as ideologias.”
Aqui o Magister circula por territórios interessantes. É pena que não leve as suas conclusões até às últimas consequências. Os problemas da natureza, como o Magister Neves tão bem sabe, são sempre os problemas das origens. Falta perguntar porque associa o Magister a degradação das elites às eleições de Clinton e Bush, de Menezes e Santana. Aí surpreendemos a questão no seu ponto mais interessante. Porque por esta ordem de argumentos toda a democracia seria um perversão da sociedade corporativa baseada no poder das elites, as únicas preparadas para conduzir o povo. Aí estariamos no território do sistema de Salazar e Caetano. Se não, porquê deixar de fora outras eleições igualmente desastrosas para a democracia portuguesa como a do senhor professor Aníbal Cavaco Silva e do seu secretário de estado João César das Neves? O Magister invoca a questão das primárias. Pode ser que isso signifique dar o poder de voto a quem não possui suficiente esclarecimento para decidir. Mas essa é precisamente a coragem da democracia: colocar a decisão sobre o poder, com todos os perigos que isso implica, nas mãos de todos os que são afectados pelo poder, isto é…todos!!! Recomendo o livro O Pensamento Conservador de Albert Hirschman, onde podemos ler que a estrutura dos argumentos do Magister Neves, que aparecem por vezes aos mais distraídos como novidades excepcionais (Cf. a título de exemplo o livro prefaciado por António Carrapatoso Revolucionários - em suma um conjunto de soluções estafadíssimas ao longo de trezentos anos), é exactamente a mesma daqueles que tentaram a todo o custo impedir que o direito de voto fosse concedido aos operários e camponeses (o direito de voto começou por ser baseado num dado valor de rendimentos) às mulheres e até aos negros.“A degradação das elites na Europa e Portugal levou ao sufrágio populista, dos referendos e directas. Mas, sem se equilibrar em classes sociais naturais e saudáveis, a democracia cai na oligarquia ou na demagogia. Como veremos por cá nas próximas décadas”. (o destaque é meu)Há de facto um problema do Magister com a natureza. Ó Magister, experimente ler um pouco menos a irmã Lúcia e mais filosofia jacobina. Merleau-Ponty ensina que a natureza corresponde a uma longa história semântica. Filologicamente está associada às raízes grega (vegetal) e latina (verbos relacionados com o acto de nascer, viver). Segundo o filósofo existe natureza “por toda a parte onde há uma vida que tem um sentido mas onde, porém, não existe pensamento; daí o parentesco com o vegetal: é natureza o que tem um sentido sem que esse sentido tenha sido estabelecido pelo pensamento”.Kant procurou resolver o problema entre o impensado dado a priori e a estrutura do pensado (que é no fundo o da política como conservação ou como mudança que, como adivinhará o estimado leitor, tem sérias consequências para a questão das classes como orgânica natural dos grupos humanos).Se por um lado em Kant, na leitura de Merleau-Ponty, a natureza é algo sobre o qual nada podemos dizer, salvo através dos nossos sentidos, por outro, a natureza é sempre conhecida como constructum, o que significa o retorno a Espinosa – que tanto tem fascinado António Damásio, pela antevisão que o filósofo luso-holandês foi capaz de fazer da análise da consciência como diálogo perfeito entre a dimensão pessoal e construída do filme da mente (em articulação com as emoções sociais) e a mecânica fisiológica do organismo.O velho pensador de Könisberg bem sublinhou que o homem “é antiphysis (freheit – liberdade) e arruína a natureza opondo-se a ela. Arruína-a ao fazê-la emergir numa ordem que não é a sua, ao fazê-la passar para uma outra ordem”. Ou como escreveu Bachelard aquilo a que se chama «natural» não passa, com frequência, de má teoria”.

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