terça-feira, 15 de julho de 2008

aqui fiquei em tudo quilo que passei



«Aqui eu fui feliz aqui fui terra
aqui fui tudo quanto em mim se encerra
aqui me senti bem aqui o vento veio
aqui gostei de gente e tive mãe
em cada árvore e até em cada folha
aqui enchi o peito e mesmo até desfeito
eu fui aquele que da vida vil se orgulha
Aqui fiquei em tudo aquilo em que passei
um avião um riso uns olhos uma luz

eu fui aqui aquilo tudo até a que me opus»

Ruy Belo, Toda a Terra


«Passou um simples tempo do verbo e tudo mudou». Que dizer a respeito do espectáculo de Sábado? Seria um concerto? Seria uma encenação da poesia? Terá sido uma incoerência incluir hip-hop (bruscamente, disseram alguns)?
É verdade. Foi brusco. Nós também duvidámos. (Duvidamos sempre, sobretudo de nós mesmos). «Este meu ódio visceral contra mim mesmo, este meu profundo amor pela arte». Sem dúvida, trata-se de um problema estético. Na fractura onde o amor e o ódio pela arte se confundem. A dúvida impeliu-nos para a violência da cidade. Não foi a autenticidade, foi a experiência contingente da vida em cada um. E para nós acabou por fazer sentido. Foi também uma forma de questionar o artista como animal jardinizado a fim de servir o olhar civilizado. O palhaço amestrado que aprende a singularidade do seu truque e faz depois dinheiro reproduzindo a raridade do seu gesto. Mas arte, pelo menos desde a modernidade, talvez trilhe agora outro caminhos, tão velhos como o próprio homem.


Outros elementos terão sido bruscos. O negro das mulheres que ainda vêm no inverno chegar-se junto ao fogo, com o terço entre as mãos e o rosto envolto pela treva da noite ou do xaile, ou da capucha, ou do leço enlutado pela morte (às vezes de cabelo despenteado: a título de exemplo, o vento no cimo da montanha, ou as mãos percorrendo as rugas humedecidas pela ausência de um filho afogado). Como Antígona, como as velhas que choram na praia os barcos que se afundam.

Outras passagens terão sido incoerentes. Uma outra vez, o problema da complacência com os ritmos da moda. É verdade. Todos os miúdos ouvem o beat. Mas eu não conheço todos os miúdos. Conheço alguns. Que ouvem o beat. Que esperam um vida mais difícil que a dos nossos pais. Que sabem muito mais do mundo do que os nossos pais sabiam. Que são muito menos comparsas do poder corrompido e de uma burocrática e burguesa forma de comprar a vida. Talvez seja essa a sua imperdoável falta.

Mas nós somos o elogio da derrota. Nada é para nós mais íntimo que estar desajeitado sobre a cena. Parecer mal, errar o passe, falhar o acorde. Não de forma total e autêntica. Antes fingidamente. E em tão completo fingimento quanto o poema mente.

O que é a verdade? Eu acho que talvez seja o avião que passa pelo doente saindo da convalescência à porta do hospital. Há regras sobre a estética, é certo. Mas há também a a guerra que cada flor trava para romper a terra. As regras são permeadas de mortes e confrontos. Eu sei, estamos fora de moda. Que insulto, trazer a política para o poema. Que insulto, trazer a verdade para dentro da mentira. Ou a unidade estética e a harmonia burguesa da técnica institucionalizada ou o artista com a sua torre de marfim incompreendido na violência do seu disparate.

Seria um concerto? Seria uma incoerente mistura de estilos remediados? Seria?
Não sei. Só o poema responde.

Sem comentários: