sexta-feira, 20 de junho de 2008

Ensaio sobre o jogo aéreo

Como é sabido, não aprecio futebol. Prefiro a dança, a ópera, ao Domingo - chuva miudinha, peles e brilhantina - no S. Carlos. Vê-se dali o quarto do Fernando Pessoa. Há o sino da minha aldeia que, como todos igualmente sabem, é branca e tem gatos estendidos ao sol. Também estes gatos não gostam de futebol. Preferem o sol. Por vezes, o Fernando vem à janela abanar a cabeça…Relembra as indicações do mestre Caeiro. Maus cruzamentos, falta de objectividade, a tal ausência mística do bigode. A verdade é que não aprecio futebol. Não obstante, é óbvio que todos sabemos que no jogo aéreo, como na vida, é preciso empurrar, partir os dentes, agarrar a camisola. Ou escrever poemas e regressar a casa derrotado.

Por vezes, o Fernando vem à janela abanar a cabeça e já se vê que o problema reside na heteronímia: Beckenbauer afirmou que é nos jogos a eliminar que as selecções mostram a verdadeira cara e se vê quem tem mentalidade ganhadora. Nós (Alemanha) temos».
Ora, é evidente, é por demais evidente, que é preciso ter mentalidade ganhadora. Daí a minha preferência pela Ópera. A título de exemplo veja-se Die Zauberflöte, a obra onde Mozart (esse outro viciado no elogio da derrota) se delicia com a revolução. A dado momento, digamos que entre um centro rasgado e uma bola parada, alguém pergunta se Tamino, sendo um distinto princípe, suportaria as duras, as exigentes provas imperetrivelmente necessárias para entrar no templo dos eleitos. Sarastro responde que ele é «mais que um príncipe, é uma pessoa». Ser uma "pessoa" é inverter os princípios do jogo. É dizer: virá a morte é certo (que é como uma espécie de derrota) mas eu não entro em lances definitivos. Fico por aqui com a minha contigência. Alguém diz: tudo ou nada? E a pessoa (o Pessoa) responde: depende. De modo que vem a morte (a derrota) e nós a pensar se vamos ou ficamos. E nisto acaba o jogo. Prémio? Não há. Mas houve uma "pessoa". Sem consolação.
Traduzido: aí está outro, este Sarastro, que não tinha mentalidade ganhadora. Porque a meio dessa coisa chamada "mentalidade ganhadora" ou “espírito competitivo” ou “excelência” ou o que quer que queiram vossas excelências apreciadoras de setubalenses ressabiados, aparecem umas nuvens estranhas, uns pensamentos distorcidos, umas guinadas psiquiátricas.

Eu sei! Vão acusar-me de estar a invocar a velha táctica da vitória moral. Mas não se trata de vitória moral. Trata-se de uma área de Ópera. Com chuva miudinha e o Fernando, de cabeça baixa, na janela.

Graça a Deus (mil graças ao Santo Deus) que não gosto de futebol.

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