quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Uma vez que já tudo se perdeu

Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de troçar de nós a tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia sem freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda nocturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem? Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, em que local estiveste, quem convocaste, que deliberações foram as tuas? Oh tempos, oh costumes! O Senado tem conhecimento destes factos, o cônsul tem-nos diante dos olhos; todavia, este homem continua vivo! Vivo?! Mais ainda, até no Senado ele aparece, toma parte no conselho de Estado, aponta-nos e marca-nos, com o olhar, um a um, para a chacina. E nós, homens valorosos, cuidamos cumprir o nosso dever para com o Estado, se evitamos os dardos da sua loucura. À morte, Catilina, é que tu deverias, há muito, ter sido arrastado por ordem do cônsul; contra ti é que se deveria lançar a ruína que tu, desde há muito tempo, tramas contra todos nós.
Primeiro discurso de Cícero contra Catilina.
O discurso foi proferido em 8 de Novembro de 63 a.C.
Todos os dias são dias a perder. Este elogio da derrota talvez siga inspirado pela derrota que todos sabemos anunciada. Derrota de quem? Será o Estado de direito democrático o grande perdedor? Serei eu? Serás tu, caro leitor?

“Gente que acerta, gente que erra”, na expressão do poeta de Queluz. Com efeito, existe uma derrota inevitável. A de todos os que teimam em procurar razões onde apenas forças, movimentos, inércias e vontades, repousos. O homem no lagar do mundo. O homem…

De modo que o estado de direito democrático são os soluços do peixe miúdo. Ou a forma liceal com que o Professor Aníbal lê os discursos. A forma caduca com que anuncia o que não faz. O que não fez. Ele já venceu. Nós, caro leitor, quem sabe num futuro próximo.

Quem sabe a paciência acabe. Quem sabe o bastonário acabe demitido, saindo por baixo, sem voz e com umas palmadinhas nas costas. Ou processado. Quem sabe sejam as palavras do poeta de Queluz a triunfar um dia. Ele que escreveu no Outono, esse inspirado livro denominado Homem de Palavras.

Talvez o bastonário seja um homem de palavras. Um homem inspirado. Talvez seja apenas o “estilo agressivo”. Ele que arrasta pela lama, com as luvas da “irresponsabilidade cívica”, a frágil honra da dignidade política – essa varonia da pátria ilustre. Parece que os advogados servem apenas para defender (com moderação e cálculo responsável) os interesses dos accionistas bancários. Ou fazer estudos sobre a aplicação jurídica do cágado francês. Não para proteger a República. Aliás, a República resume-se hoje às “boas práticas”. Quais práticas? Ah, já sei, as práticas do banquete oitocentista. Senhor Comendador faça o favor. Concerteza senhor Secretário de Estado. É para já Senhor Presidente da Tribunal Constitucional. Ohh, caríssimo Procurador. Como está ilustríssimo Senhor Ministro.

“Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência?”, perguntou um dia Cícero no meio da revolta, dos punhais do turbilhão em sangue.

O estado de direito democrático, a respeitabilidade, o bom nome, as boas práticas, a credibilidade do sistema. Quando vier o sangue e a fúria (como sempre vem) eu já aqui não estarei. Talvez esteja na bancada a torcer por um de vós. Um dos que no calor do jogo ainda acredita no lance.

Ou como diria o poeta de Queluz à boca da noite:
“Nada se perde por mais que aconteça, uma vez que já tudo se perdeu”.

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