sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

César das Neves: o mestre que nos guia

O caro leitor irá desculpar a repetição. Parafraseando Ruy belo, por sua vez parafraseando o Livro dos Provérbios, “não convém que o cão volte ao seu próprio vómito”. Acontece que eu, autor destas linhas, cão negro, além de piolhento e deprimido, tenho por costume voltar ao próprio vómito, a fim de não esquecer a que sabem as entranhas da terra. Os cães costumam ser amigos do homem pelo que, além do vómito, não posso deixar de ladrar ao cowboy desta caravana sinistra e pejada de larápios, a quem, a caminho da Jerusalém celeste, não terá lembrado o facto de, por vezes, no meio do deserto que é Portugal, algum cão da periferia ter ultrapassado o 12º ano e lido pelo menos dois livros e meio de história. O caro leitor desculpará pela extensão do texto mas esta é uma longa viagem que merece a imensidão do espaço e a respiração dos astros. Tem o cheiro da expedição ao abismo e o ruído das perigosas feras na escuridão da noite. Nem o leitor encontraria animais tão raros em plena savana africana.


Recentemente surgiu no Diário de Notícias o texto “COMO A IGREJA CRIOU A EUROPA” da autoria do Magister César das Neves. Aviso desde já os mais sensíveis que, mais uma vez, a estrondosa argumentação, ao desmontar mitos de séculos, pode provocar uma visão do eterno, nalguns casos poderemos mesmo contemplar a face de Deus. Deste modo recomenda-se a leitura moderada de forma a evitar a perda de consciência.

O texto abre com as trombetas de uma novidade espantosa:

«’Como os debates da Constituição Europeia e Tratado de Lisboa mostram, a Europa vive uma grave crise de identidade. A origem profunda está num antigo mito que o volume A Vitória da Razão (Random House, 2006; Tribuna da História, 2007) do grande sociológico da religião Rodney Stark se esforça por destroçar. O subtítulo indica-o claramente: "Como o Cristianismo gerou a liberdade, os direitos do homem, o capitalismo e o milagre económico no Ocidente."»

Na verdade, não só gerou a liberdade, os direitos do homem, o capitalismo e o milagre económico, como a varinha mágica, a barbie, o martelo pneumático, a bíblia ilustrada e os pensamentos da irmã Lúcia que não devem ser descurados na emergência deste milagre cultural que é a Universidade Católica. Seguro desta verdade, única e inabalável, este catedrático avança por um poderoso encadeamento de factos indesmentíveis:

“Esta ideia não surpreende. Dado que a Europa criou os valores da sociedade moderna e é uma zona cristã, seria muito estranho não existir uma relação estreita entre esta origem e aqueles efeitos. Apesar disso é preciso afirmá-lo, porque segundo a tese comum, a Igreja manteve o continente na obscuridade e miséria durante séculos até que a emancipação, com o Humanismo e Iluminismo, permitiu a ciência, liberdade e prosperidade actuais. Esta visão, divulgada por discursos, livros de escola e tratados de História, é simplesmente falsa”

Em seguida conclui:

“Pelo contrário, a Igreja Católica, vencendo o paganismo obscurantista e civilizando os bárbaros, foi uma poderosa força dinâmica, estabelecendo os valores de tolerância, caridade e progresso que criaram a sociedade contemporânea. A Idade Média, conhecida como "Idade das Trevas", foi uma das épocas de maior de-senvolvimento e criatividade técnica, artística e institucional da História”

Não sei se o caro leitor reparou no salto "zona cristã para Igreja Católica". Eu, pelo menos, gostei muito. Apesar da leve indisposição, devo dizer que engoli com satisfação as galáxias de distância entre o percurso católico e os diferentes movimentos e credos iniciados com Lutero. O Magister Neves vai então expôr de forma pujante uma história que, pela sua eloquência, consistência, robustez e beleza, não tenho coragem de interromper. Até já, caro leitor. Vemo-nos daqui a uns séculos…

“As razões desse engano são muito curiosas. Como explica Stark, todas as ditaduras exploram o povo para criar obras grandiosas à magnificência dos tiranos. Foi assim Roma e os reinos orientais. Destroçado o despotismo com a queda do império, a Cristandade gerou um surto de criatividade prática, pois as populações não temiam a pilhagem dos ditadores. Assim as realizações da Idade Média resultaram em melhorias da vida das aldeias, não em monumentos que os renascentistas poderiam admirar. Por isso esses intelectuais posteriores, nos seus gabinetes, desprezaram uma época sem mausoléus, enquanto louvavam as tiranias de que só conheciam a arquitectura e a erudição. Os avanços conseguidos na chamada Idade das Trevas são impressionantes, todos dirigidos a melhorar a vida concreta (op. cit. c. II): ferraduras, arado, óculos, aquacultura, afolhamento trienal, chaminé, relógio, carrinho de mão, etc. A notação musical, arquitectura gótica, tintas a óleo, soneto, universidade, além das bases da ciência, a separação Igreja-Estado e a liberdade dos escravos (c. III) são também criações medievais. Em todos estes avanços, e muitos outros, têm papel decisivo mosteiros, conventos e escolas da catedral, bem como a confiança da teologia cristã no progresso, contrária à de outras culturas. Mais influente, nos séculos XI e XII em Itália nasceu o capitalismo (c. IV), sistema que suporta o desenvolvimento, e que tantos ainda julgam ter origem oitocentista e protestante. A prosperidade mercantil e bancária então conseguida gerou verdadeiras multinacionais que promoviam a manufactura e comércio na Europa saída do feudalismo. Depois a peste negra, a guerra e os déspotas iluminados, retornando à pilhagem clássica, destruíram esse florescimento e levaram os filósofos tardios a pensar ter descoberto o que os antepassados praticavam.

Nessa reconstrução perderam-se alguns elementos centrais da versão católica inicial. Por exemplo, no século XII, "cada vez que faziam ou reviam um orçamento era criado, com algum capital da empresa, um fundo para os pobres. Estes fundos aparecem registados em nome 'do nosso bom Senhor Deus' (...) quando uma empresa era liquidada, os pobres eram sempre incluídos entre os credores" (p.167).


Então? Sente-se bem? Vamos então ao relatório e contas. Devo confessar que neste momento hesito. Não sei se o que mais espanta é a má fé (concerteza uma invenção dos filósofos iluministas) se a ignorância (concerteza uma invenção dos ditadores romanos). Claro que não posso refutar esta bela canção. Os mistérios da arte devem ser respeitados. Mesmo a arte dos malabaristas, hoje em franca expansão com todas as artes circenses (outra bela invenção da idade média), deve ter um lugar no nosso coração. Fico apenas preocupado com os incautos alunos que, desprevenidamente, vão a caminho das aulas do Magister para ver levantar vôo a coruja de minerva e acabam a ouvir este faduncho inglesado. Nesta soturna noite em que nos encontramos, abandonadas as luzes excelsas da Igreja medieval, as noites são longas e o medo espreita outra vez nas carantonhas dos ditadores romanos. O belo e seráfico monge copia a sagrada escritura na placidez do bosque. À sombra dos carvalhos, o bom lavrador empurra o seu arado ao canto do ribero e o nobre (justo, bondoso e fraterno) protege os filhos de Maria, enquanto saltitam pelas veredas, a caminho do regaço doce, do casto gineceu da escola catedralícia. Todos dão as mãos em torno do criador e oram santificados pelos dons do espírito, elevados na comunhão do corpo místico de cristo. Uns governam, outros trabalham, os mais santos rezam. Não há sujidade ou impureza. Tudo é bom à sua volta. A guerra desvaneceu-se como uma nuvem cinzenta dispersa pelo sol da primavera, os tiranos greco-romanos (esses pérfidos homossexuais) foram degolados pela espada do viril bárbaro (agora civilizado pela mão do santo pregador da boa nova) e mergulharam na poeira do esquecimento, com os seus mausoléus e a arquitectura da sua oca erudição. A ciência e a fé, conduzidas ao redil da alegria pelo bom pastor, servem as aldeias bucólicas onde tudo é para todos, segundo os dons de cada qual. A alegria jorra pelos montes e a abundância das colheitas, animada pelas desobertas dos irmaõs monges, sacia a fome de todas as crianças, fazendo esquecer as lágrimas do tirano intelectualizado em Roma. Reina a Igreja de Cristo, mão protectora e doce, estrela que nos guia, sede da sabedoria.
Ó Magister, é noite e eu tenho medo, conta outra vez como foi.

1 comentário:

Anonymous disse...

Lindo!