segunda-feira, 20 de abril de 2015

Contra a barbárie, meus cabrões, só a erudição.

Num exercício de auto-crítica, comiseração e manifesta estupidez, eu, benfiquista e cidadão do mundo desenvolvido, venho hoje esfregar-vos nas gloriosas fuças o meu passado de aluno num curso de humanidades, a saber, aprendiz de especialista em mudanças, ou na sua forma traduzida, pupilo na escola da demagogia científica, ou por outras palavras, aprendiz de sacerdote na interpretação de textos ultrapassados pelo tempo, ou nem isso, somente candidato a parasita, e a soldo da crise ideológica pós-marxista, pós-tecnológica, pós-moderna, e pós-caralho, salvo seja, amen.

Convicto do meu rotundo falhanço no reino das pessoas felizes, e desde a primeira semana de aulas encornado por um destino demasiado agressivo e insidioso, ficava claro para mim, o não haver mais do que arrastar a cabeça, penosamente, pelos corredores da Universidade. Eis se não quando, enveredo pela ironia patológica, escrevendo uma recensão a um livro do espetacular e infértil, se politicamente considerado, académico, Pietro Costa, a saber, Civitas, Uma história da cidadania.

Não se falava ainda de cadáveres no mediterrâneo, e o tomo publicado pela Laterza (encomendado e pago com o cartão de crédito de um amigo, a saber, o pároco sportinguista que fez capa do Record, e entretanto varreram para Macau) acabava nas considerações de Montesquieu a propósito da lei, dos romanos, e das gajas boas raptadas por arruaceiros, e só isto bastaria para ter uma noção das veredas tortas com que o Senhor se entretém a confundir os seus filhos, para matar o tempo, uma carga de trabalhos para quem está por cima da história, da matéria e dos sofrimentos.

Mas ao aluno que eu era, com dois olhos, um nariz e uma boca, ou seja, uma cara, tantas vezes mal lavada e sonolenta, com uma sensação de barata fugitiva nos subterrâneos do mundo, não restavam dúvidas de qual seria o crucial problema, às mãos do qual, soçobraria o mundo desenvolvido. As pessoas com fome e sede de pão e de justiça, vão para onde há pão e justiça. Se forem milhões de pessoas, temos aqui um problema do caralho. Simples, não é?

Passados onze anos, enquanto retiram crianças afogadas das águas do mediterrâneo, o mar que inspirou o mais belo livro de história (a um francês, que o escreveria, enquanto preso, num campo de concentração alemão) aqui venho trazer um dos emblemas do meu falhanço como indivíduo, benfiquista e académico, por razões cognitivas, morais e sentimentais, e com muito orgulho o faço, caros leitores e amigos, com muito orgulho o faço.

Começava essa pitoresca peça de avaliação universitária com a invocação da «pressão populacional dos países subdesenvolvidos, em face das complexas relações entre Cidadania e Estado, ousando colocar drasticamente diante da prosperidade dos países europeus “the pressures of those hoping to immigrate and seek asylum”».

A seguir, atando as rédeas do cavalo à sela, erguia bem ao alto um par de bandarilhas: a primeira, entusiasmado com a agressiva reacção do touro universitário, cujos cornos estão enfeitados com as grinaldas das humanidades, aludia ao filme Apríle, de Nanni Moretti, e a sua crítica ao panorama político das eleições de Abril de 1994, onde se pretendia descrever, no seio de uma reflexão sobre as limitações do sujeito em face do sistema eleitoral, uma estreita relação entre a evolução da Cidadania e o equilíbrio de poderes. 

A segunda, consistia numa ainda mais pitoresca nota de rodapé:

[ii] Moretti insere na narrativa a dramática chegada de um navio repleto de cidadãos provenientes das costas albanesas, poucos  dias depois de numa praia de Puglia, terem morrido 89 albaneses quando a embarcação em que seguiam se afundou após um acidente com um navio da marinha italiana.

E depois de 15 páginas a elaborar sobre teoria da cidadania medieval, eis o retumbante epílogo:

Civitas, ao colocar o problema da Cidadania, transporta o leitor para a história mas não foge à pergunta: qual a relação entre a ordem jurídica e o lugar do homem no espaço político? É ainda uma outra vez o retorno à problemática situação do estranho achado de súbito numa cidade que não o reconhece. Pietro Costa não deixa de sugerir discretamente a fragilidade dos vínculos entre teorização da ordem jurídico-política e os acontecimentos reais. Como se fosse necessário voltar uma outra vez ao tribunal veneziano e comparecer perante o Doge. E ecoasse no espaço da sala repleta de magistrados a suave evocação da clemência, conduzida pela voz feminina de Pórcia, transmutada em brilhante jurista, recém chegada ao complicado processo[i]. E assistir depois ao nascimento, nesse mesmo coração outrora capaz de profundidade interpretativa e misericórdia, do implacável orgulho das leis que tutelam a cidade e incarnam nas contundentes e biliosas palavras contra Shylock[ii] - o velho mercador de Veneza, estrangeiro no seio da comunidade política[iii], infortunado habitante que num ápice se vê torturado pelos estranhos lugares de um labirinto jurídico que não pode desvendar.
Civitas, não resolvendo os limites contemporâneos da Cidadania, coloca porém no primeiro plano a questão da formação histórica da identidade da Europa, que é também a dilacerante questão da identificação dos seus limites[iv].

Era óbvio que, mais tarde ou mais cedo, iria acabar por me foder.





[i] “The quality of mercy is not starin’d/ It droppeth as the gentle rain from heaven/ Upon the palce beneath. It is twicw blest/ It blesseth him that gives and him that takes./ ‘Tis mightiest in the mightiest, it becomes/ The throned monarch better than is crown/ His sceptre shows the force of temporal power/ The atributte to awe and majesty,/ Wherein doth sit the dread and fear of kings;/ But mercy is above this sceptred sway,/ It is enthroned in the hearts of kings”, Shakespeare Complete Works, Peer ALEXANDER (ed), Collins Clear-Type Press, London and Glasgow, 1951, p. 246
[ii]  “The law hath yet another hold on you./ It is enacted in the laws of Venice,/ If it be prov’d against a alien/ That by direct or indirect attempts/ He seek the life of any citizen,/ The party ‘gainst the wich he doth contrive/ Shall seize one half his goods; the other half/Comes to the coffer of the state;/And the offender’s life lies in the mercy/ of the Duke only...”, Shakespeare Complete Works ...,p. 249
[iii]A interpretação de Costa permite-nos também enquadrar este trágico limite da lei na Inglaterra Isabelina, permitindo conhecer os interstícios do debate teórico, com a sua longa permanência de estratos da tradição [o tempero da justiça com a clemência]. No sentido de uma identificação das fontes históricas no teatro isabelino ver Dominique GOY-BLANQUET, “Elizabethan historigraphy and Shakespeare’s sources” in The Cambridge Companion to Shakeaspeare’s History Plays. Michael HATTAWAY (ed), Cambridge University Press, 2002.
[iv] Numa recente entrevista conduzida por Gianluca Sacco, Pietro Costa afirmava a identidade da Europa como realidade “che cambia drasticamente a seconda che essa agisce ( e si cocepisca) come una fortezza assediata oppure come um luogo di accoglienza e di conronto” Cf. Le Storia della cittadinanza e la Costituzione Europea, http: // rivista.ssef.it.

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