segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Enquanto não redigimos o post definitivo sobre a obra científica de Nabokov, deixamos aqui um comentário ao glorioso coletivo de malucos russos, gloriosamente postado pelo Binary solo, com algumas notas sobre a importância de continuar a ler este blogue.

«Unfortunaly Russians today have completely lost their ability to kill tyrants»
Vladimir Nabokov

 
1.
 
«Os que têm olhos, ouvidos, nariz, percebem por todos os lados, a atmosfera de um manicómio e de um hospital, em todas as partes do mundo civilizado, europeizado.» Com esta profética e gloriosa frase, Frederico Nietzsche opera uma deslocação da sua potência satírica contra o ideal ascético que por todo o lado, sob a capa da virtude e da religião, ou sob a capa do humorista (o mais ascético de todos os indivíduos) fundou uma autêntica cultura do enfermo e do maluco. Temos três alternativas: a) fazer como Fernando Couto e Luís Figo, hoje, na missa de exéquias de Eusébio, e integrar o corpo místico de Cristo (cuja ressurreição está prometida para o último dia) comungando das mãos do sacerdote e esperando pela vinda da verdadeira vida; aquele que viu (eu) é que dá testemunho deste surpreendente facto; Luís Figo e Fernando Couto comungam do pão do céu; b) Fechar os olhos e mergulhar no abismo do vício, como recomendava Mário de Cesariny, o que no caso da nossa aquacultura particular, cujo maior vício é a gargalhada, significa transformar tudo em matéria risível e considerar a inteligência incapaz de produzir qualquer significado não irónico sobre o mundo, o que é, paradoxal e ironicamente, a maior vingança da literatura contra as pessoas que não consideram a literatura, encerrando o nosso triste mundo dentro de uma só figura de estilo; c) utilizar o maior espaço disponível da memória e uma parte significativa da potência de raciocínio para resolver problemas de organização e resolução de problemas no ambiente, mediante a colocação de objetivos, devidamente refletivos e discutidos com os pares, isto é, entregar-se ao tipo de atividades (múltiplas, radicais, profundas, plurais, não apenas irónicas, mas também irónicas) propostas neste blogue.



2.

Como é do domínio público, a nossa civilização foi erigida sobre um nobre fundamento: o relógio. Por outras palavras,  mal nascemos e logo aparece alguém munido com instrumentos de registo e trata de assinalar as horas e os minutos do evento, e tudo começa a adquirir um sentido organizado, dócil, mórbido. Quer dizer que sendo o tempo o mais escorregadio dos conceitos, é também o mais despudoramente utilizado e não há mecanismo com ambições de autoridade ou raciocínio castradamente lógico que não recorra à importância do tempo ou, pelo menos, às leis psicológicas decorrentes de uma suposta escassez do tempo, mesmo que para tal seja preciso continuar a fingir que as unidades mecânicas em contínuo movimento são um bom instrumento de medida desse fluxo irreversível e misterioso, a vida. Ou muito me engano ou a importância adquirida pelo tempo, precisamente no mesmo momento em que a civilização ocidental defenestrava a metafísica pela janela mais larga do seu edifício filosófico, deve-se a uma necessidade patológica de fugir à mais simples, aristocrática e, por isso mesmo, também a mais perigosa das questões, a saber, quem sou eu. Não terá sido por acaso que o romance (por excelência o género literário típico da burguesia doente e das pessoas assustadas pelo tédio e interessadas dos negócios) foi salvo in extremis, no início do século XX, por uma reconfiguração das conspícuas relações entre a medição do tempo e a importância dos eventos humanos, saldando-se os dois casos mais famosos (Proust e Joyce) por modificações de escala (diminuição no caso de Proust, aumento no caso de Joyce) no sentido de tornar irrelevante a vontade e as decisões humanas, o que serve ao artista como justificação da sua impotência social e política, ou mesmo como fuga desesperada à tortura da sua personalidade demasiado sensível (ou seja, impressionada por demasiada informação) e por isso dolorosamente confusa, pois o artista, tal como, de resto, o filósofo, revela incapacidade fisiológica para digerir o excesso de sinais: para onde quer que dirija o seu olhar, não vê senão os erros da sua vida. Por isso, põe-se a rir como uma freirinha histérica, e tem feito de tudo para justificar a sua crescente irrelevância. Que faz o povo de deus, tão aparentemente laicizado e independente? Vai atrás do artista. Pior, vai atrás do artista, do sacerdote, do médico, e do filósofo (tudo variações pouco especializadas do mesto tipo, o indivíduo ascético).  Deste singelo modo, não há nada que mais agrade ao meu temperamento recursivo do que o combate a duas sólidas características da nossa bem amada civilização do ecrã: a abjeta eficácia da imagem; e a mais estéril e  inútil repetição de estímulos às duas expressões mais básicas do sistema nervoso, as lágrimas e o riso. Para levar esse combate a bom termo, nada como o culto da preocupação estética no âmbito da resolução de problemas (tudo o que é contrário à utilidade do rebanho, com especial referência à necessidade de ordenar os objetos estéticos, trau) e a prática de um estilo que não tem medo de assumir a tirania do emissor (tudo o que é favorável à solidão do raciocínio e à atmosfera perfumada de baixa densidade humana, onde apenas são admitidas pessoas já falecidas e selecionadas, por mecanismo natural-cronológico - nunca menos de 30 anos, por motivos higiénicos - e sob a forma codificada da linguagem alfabetizada e impressa em livro, de preferência com mais de duzentas páginas).


3.
 
As nossas decisões sobre a importância de insistir na leitura de um texto longo decorrem, e posso avançar aqui com certo grau de segurança, do lento desenvolvimento social, e da sua penetração nas nossas disciplinas, desse belíssimo conceito científico: a seleção natural. Guardo para o próximo post o desenvolvimento deste assunto, para já, retenha o caro leitor a importância da diversidade dos organismos, sobretudo da sua morfologia mental, diversidade que não pode ser deixada apenas a cargo da variedade genética e cromossomática, sobretudo tendo em conta as limitações na taxa de variação de cada espécie. As nossas avós entregavam-se à repetição do terço sem a mais leve sensação de inutilidade mas não nos passa pela cabeça entrar na escuridão da igreja e dirigir o olhar doente para a luz do Senhor: bem sabemos como o homem comum procura essa outra fonte de conforto, o riso, eterno ressentido contra a circunspeção e a gravidade, já o dissemos, já o dissemos. Porém, estamos a ficar sem alternativas, caro público, a realidade parece uma excursão de peregrinos, com a sua clássica divisão entre os parolos religiosos e os pândegos inconscientes. Assim, meus amigos, fujamos destes cultores de uma ética de formigueiro, ou na melhor das hipóteses, de colmeia (sejam os cómicos ou os circunspectos) e pensemos um pouco mais diante da lâmina que nos encostam ao pescoço: a todos os queixosos, a todos os magoados com a vida, acaso somos nós os culpados do seu sofrimento? Acaso fomos nós os construtores das pesadas correntes com que se rodearam e sob as quais gemem todos os dias a falta de tempo? Fomos nós quem os convenceu da utilidade das generalizações, dos atalhos, das estradas seguras, da importância social do cálculo e das leis férreas da economia, a segurança, a previsão, a ferida, da qual se queixam todos os dias e que foram eles próprios a infligir à sua frágil carne? De igual modo, aos que não conseguem dar um passo senão movidos pelo caricato gosto da risada, pelo insólito e enjoativo culto de uma só figura de retórica, a ironia, sem pinga de talento para a metáfora, a perífrase ou a difícil e distintiva anáfora, perguntamos nós, se não se trata, nesse caso, de uma doença da linguagem, tão ridícula como a da Academia? Ou de uma espécie de esterilidade retórica, ditada por um fascismo do gosto (a comédia) e esventrada de todo o alimento racional por imposições de uma limitada concepção do tempo? Ou talvez se trate, deus nos livre, de uma tremenda falta de virilidade?


4.
 
O sentido de utilidade do tempo decorre da noção de finitude, e a noção de finitude acentua a preocupação com função das nossas ações numa economia individual das sensações, o que coloca no centro da tragédia diária a relação entre o que aprendemos (com os outros, com os livros, com o Eusébio) e a capacidade de sustentar as decisões da nossa vida, por isso nos agradam tanto as tolices, o humor, os vídeos de gatinhos, que atiram para muito longe todos os problemas decisivos, tremendos, distintos, rigorosos, humanos. Bem sei, bem sei, estamos muito perto da perigosa função do sacerdote (Gogol acreditava que a literatura estava fundada no sermão) mas, caríssimos leitores, e penso aqui sobretudo, e a eles me dirijo, nos génios da vida prática e da inutilidade de pensar ou escrever longamente sobre todas as coisas em geral: quem nos garante que ao rir de tudo e ao considerar todas as coisas como relativas e sujeitas à lei férrea da realidade (risos) que não estamos, com o culto do riso, a criar a mais tolinha das metafísicas e a fazer a mais ridícula figura de que há memória nos anais da história humana? Não quero dizer que o reino da mente não tem relação com a fisiologia, ou que os limites psicológicos do sistema nervoso não oferecem amplo fundamento para o culto da ironia, ou para uma teoria da decisão baseada numa economia de tempo. Mas ainda assim, teremos sempre que decidir entre ler um texto longo ou apontar os olhos de carneiro para um vídeos de gatinhos (venha de lá esse ilustrativo vídeo de gatinhos, caro binary) ainda que o intervalo de tempo disponível seja exatamente o mesmo. Todo o tolinho faz figura de inteligente, num contexto de absoluta irrelevância. Sobretudo, reflete uma orfandade de sentido, ao apontar para a desorganização irónica do real, e com isso, afirma-se como um desiludido com a queda do velho mundo. No nosso caso, não temos nenhum desilusão, nem especial vontade de rir, pois não vemos nenhum paraíso perdido, nem nenhuma relativização das coisas. O sentido sempre dependeu de nós, humanos. Podemos rir, é certo, e isso é já um sentido, mas para tal, convém que a ironia (que é sobretudo uma retórica do ressentido com a realidade) coexista com a reordenação da realidade, e nesse caso, a analogia, na sua forma mais eloquente, a metáfora, sempre foi a arma mais poderosa. O que difere, entre ironia e metáfora, é a nossa aceitação de um sentido para o esforço de criar algo de novo, o que pressupõe a capacidade de colocar a cabeça fora da máquina, abandonando a desilusão e o ressentimento. Assim, surgem dois caminhos diante dos nossos olhos: ou estamos a representar bem o problema e consideramos que ver gatinhos é muito mais interessante, e nesse caso, está tudo bem, ou não estamos a representar bem o problema e nesse caso, é favor continuar a ler este blogue nos próximos dias.

2 comentários:

silvia disse...


Entre o fascismo do gosto a relatividade da metafísica o problema do comportamento na teoria do Chomsky .
Volto mais tarde para ler tudo de novo.
O estilo não morre.

Anónimo disse...

O estilo não morre! :)