quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Não entres tão depressa nesses 1 milhão e 300 mil euros.

Impõe-se no atual momento fazer uma reflexão profunda sobre a nossa situação como país produtor de vinhos licorosos, antiga potência colonial, promissora rede social, como comunidade de afetos, e até, penso eu, como conjunto de pessoas que não compreenderam ainda a importância de ler livros. Escandalizado pelo convite que inadvertidamente me foi enviado pela organização do evento, foi com grande espanto e até uma ligeira comichão nas pernas que eu, Sua Excelência, alf, fui convidado, juntamente com vários milhares de outras Excelências, anónimas e com algum carcanhol na carteira, para o incontornável lançamento do peso por Adriano Moreira, a decorrer numa Outonal livraria da nossa Outonal civilização, sendo o peso lançado, alegadamente, o seu último (salvo seja) trabalho, Memórias do Outono Ocidental. É evidente que estou habituado a ter pelas crianças, grávidas e, sobretudo, velhinhos (segundo o educativo autocolante vermelho que me habituei a respeitar e venerar nos transportes públicos da periferia) a maior consideração, tendo até, devo confessar, o reflexo impensado de me levantar da cadeira, mal abri a mensagem e me deparei com o inefável convite onde figurava a simpática fotografia do afável ancião. Julgo no entanto ser necessário revelar que começa a ser difícil enfrentar as contribuições constantes, regulares, impiedosas, para o mais antigo desporto praticado neste particular espaço psico-geográfico, a saber, as declarações de morte civilizacional e decadência da nossa agremiação de países, ou, por outras palavras, o enterro da Europa como comunidade de vida e paz.


Quando consideramos o caso da China (uma vez que já falei do Japão) sabemos que a vitalidade da sua civilização, com as suas sedas, pés entrapados, construções tão gigantescas quanto efémeras (com exceção da kafkiana muralha) elevado respeito pelos anciãos, e profundo desdém por tudo o que é novo, constitui uma relação com o tempo marcada, digamos, por uma larguíssima lentidão de processos, ao melhor estilo Bruno Caires (este blog é só para eruditos). Já a América cultiva por si própria um esquizofrénica idolatria pela velocidade, com larguíssimo respeito por cada novidade capaz de consagrar o que no fundo, a América nunca deixa de ser: um país em construção que recebe as catadupas de refugiados e emigrantes com a mesma contrariada satisfação com que eu recebo a deprimente estagnação de visitas neste blog: um sinal de confirmação da derrota que me entristece, enquanto, de caminho, consagra a própria razão de ser deste blog e se constitui no seu mais glorioso estandarte. Resumindo: enquanto a China procura ser nova, nunca fazendo nada de novo, a América quer ser velha, mudando a cada segundo, todas as pequeninas células do seu organismo.


Mas o que é a Europa (se deixarmos agora por um momento aquelas renascentistas pinturas com mulheres voluptuosas raptadas na garupa de um cavalo, e prontas a satisfazer o apetite mais selvagem de um qualquer analfabeto vital e cheio de saúde)? A Europa é, desde sempre, um tratado de decadência permanente, em progresso acelerado, e escolheu como coração do seu imaginário, o binómio Grécia-Roma que é, de si, por si, e em si, um completo programa para multiplicar decadência a cada três segundos. Duvido até que exista atividade mais saudável do que este culto da autodestruição permanente que tão exemplarmente a Europa tem levado a cabo desde há uns séculos a esta parte. As pessoas interessadas nestas temáticas poderiam começar precisamente por identificar contributos assinaláveis para o fulgurante progresso do mundo, forjados fora do quadro mental europeu. Do mesmo modo, a própria escala comparativa utilizado pelos decadentólogos, com a qual medem o grau de decadência das civilizações, julgo ter sido fabricada num desses lugares atafulhados de livros, café e tabaco da Europa do século XVIII, e esses locais, benza-os Deus, continuam a existir (sei disso, pois é a partir de um deles que vos escrevo neste momento) basta procurar. É verdade que a decadência, como a imprevisibilidade no futebol, pode ser isto mesmo: académicos velhinhos que na juventude serviram regimes políticos arcaicos, animados pelas velharias mais bolorentas do baú da história mundial, virem agora, enquanto agentes de uma proveta idade, e em plena democracia, publicar livros sobre a decadência da Europa democrática, uma Europa que de tão democrática, se precipita como o adolescente descontrolado na perseguição das mais estouvadas paixões, em constante desafio do perigo e da destruição, o que é a marca inegável dos fortes, saudáveis e jovens, os únicos que assim se arriscam, alegre e irresponsavelmente, com cambalhotas e cabriolas entre as próprias garras da extinção.


Mesmo considerando por um momento, segundo o distinto ministro de um regime fascista, que a Europa mergulha na decadência, como atriz envelhecida no teatro geopolítico, ou como avó russa, conservadora mas arrebatada pelas emoções rejuvenescedoras da roleta no Casino de Baden-Baden, segundo a caracterização embriagada e genial de Dostoiévski, é essa mesma Europa quem arrisca a atribuição de uma fabulosa verba (1,3 milhões de euros) para estudos sobre transgénero e direitos sexuais, coordenados por uma jovem e promissora socióloga, Sofia Aboim (trau). Não merece este tema a nossa atenção? Claro que merece. A decadência da Europa, a que Adriano Moreira se refere, pode, pois, ser enfrentada com uma orgia pluridisciplinar entre o vetusto cientista político, sempre agarrado à suas romanidades renascentistas e textos latinos lidos em segunda mão, e as mais sofisticadas linhas de investigação sociológica, no sentido de conferir um pouco de dignidade clássica às perturbadoras perguntas implícitas no projeto de Sofia Aboim, agora agraciado com 1,3 milhões de euros. Se considerarmos antigas declarações à imprensa da notável e muito fundamentalmente perspicaz investigadora, constatamos que essas declarações, longe de produzirem resultados semelhantes às que Jorge Jesus efetua no final de jogos em que manifestamente as suas leituras não se adequam à evolução técnico-tática do jogo em apreço, estas doutas conclusões manifestam com científica pertinência, um raro amor à possibilidade de as coisas serem assim, mas também serem, se for esse o caso, de outra maneira qualquer. Consideremos, por favor, o seguinte excerto:

A socióloga defende que o desleixo (dos homens perante o trabalho doméstico) é mais comum em meios favorecidos, "já que os homens tendem a delegar trabalho às empregadas", ou, quando têm essa possibilidade, à mãe ou à sogra. "Nesses casos há uma circulação do trabalho pelas mulheres", diz. A demissão das tarefas pode também ocorrer em determinados segmentos, menos escolarizados". Quando se trata de assumir a paternidade, acabam por se envolver. "Mesmo contra a sua vontade, acabam por se envolver nas tarefas domésticas", refere. A mudança é um facto, mas, ainda assim " as mulheres continuam a fazer a maior parte".


Já no Público de hoje, o leitor é, desde logo, e inapelavelmente, ameaçado com as conclusões do estudo agora agraciado, cujo lançamento dos resultados visa alcançar a resposta a questões muito além do básico "A que casa de banho vão estas pessoas, à da dos homens ou à das mulheres?", como começou por acontecer na Alemanha, numa fase ainda de "reacção de estranheza" à introdução da ideia de um "terceiro sexo".


Não, não, nós não cometemos os erros da Alemanha, nós temos a Sofia Aboim. Felizmente que os sociólogos não se entregam a problemas básicos, e incorrem na luta pelo monopólio dos alçapões secretos onde circulam os sapientes e iluminados astrólogos e comentadores desportivos (agora mesmo, pude contemplar, cheio de terror e veneração, nas paredes de uma Faculdade de Lisboa, um cartaz onde Luís de Freitas Lobo, apresentado como analista desportivo, figura num painel liderado pelo Senhor Professor Doutor Manuel Sérgio, o catedrático de Filosofia, e mentor do sábio Gonçalo M. Tavares, o mestre do corpo (trau); não haverá aqui uma conspiração mundial só para me chatear?). Ora, investigar as vidas das pessoas transgénero, bem como o aparato institucional que as enquadra em cinco países europeus: Portugal, França, Reino Unido, Holanda e Suécia, parece-me (a mim, que só como chamuças, leio exegese shakespeariana e assisto a todos os jogos de futebol de que sou capaz enquanto tomo notas e leio) uma questão central na resolução dos problemas da Europa e só podemos congratular-nos com esta decisão tomada nos túneis húmidos e misteriosos do financiamento científico, sobretudo quando confrontados com a agudeza das linhas de investigação propostas, seja o estudo das políticas de género e dos direitos sexuais, escrutinados à luz da oposição ancestral entre igualdade e diferença, seja a  mobilização de uma perspectiva interseccional, considerando-se a imigração de indivíduos transgénero para a Europa, bem como o seu lugar marginalizado, muitas vezes levando ao trabalho sexual, numa ordem de género que impõe ainda padrões de normalidade assentes num sistema binário (masculino vs. feminino).


Portanto, se entendo bem, as pessoas transgénero são obrigadas pelas impiedosas leis da procura a trabalhar no segmento binário masculino/feminino (uma conclusão anterior ao estudo, que pretende estudar aquilo que pretende concluir, de forma a garantir a formação de políticas públicas mais adequadas às conclusões do que pretende estudar) sendo que, na falta de uma terceira opção para o comércio sexual, demasiado encerrado no espartilho do segmento binário feminino/masculino (pessoas transgénero, onde andam vocês enquanto consumidoras?) o Estado poderá, eventualmente, induzir a procura de serviços transgénero, quando o leitor mais incauto estava convencido de que o Estado devia preocupar-se em garantir a proteção e liberdade de todas as pessoas, sem perder tempo com muitas particularidades e exceções, pois daí decorre sempre o enfraquecimento dos direitos, tivessem as pessoas pilinha, pipi, ou pilinha e pipi, ou ainda cada uma destas coisas separadas em pontos diferentes do espaço e do tempo. No entanto, nós, pessoas que não percebemos nada de nada, devemos continuar  a aprender com quem sabe, e inclinar respeitosamente a cabeça. Assim seja.


Terceiro, pretende-se identificar as lacunas entre as políticas e os direitos e as categorias realmente mobilizados para a auto-identificação (se alguém me poder explicar isto, agradeço). A análise das vozes das pessoas transgénero a par do efeito das políticas sobre a materialidade das vidas e das formas de construção da individualidade, dentro e fora dos cânones europeus, é fundamental. (Se alguém me puder explicar também isto, e enquadrar esta linha de argumentação no âmbito de uma Universidade de excelência, como é a recém criada Universidade de Lisboa, ficarei eternamente agradecido). Em todo o caso, não nos precipitemos, levados por um sentimento de ingratidão e mágoa, por sermos desprezados, nesta sociedade que nos animou com as mais rejubilantes esperanças de vida no caminho do conhecimento, pois a clarificação surje no final: em suma, o objectivo não é o de levar a cabo uma monografia sobre diferentes grupos de pessoas transgénero, mas o de, através delas enquanto representativas de uma das fronteiras mais complexas no campo do género, alcançar uma compreensão profunda das mudanças operadas nesta área, observando as questões da cidadania e dos direitos. Portanto, e seguindo a boa retórica clássica, eis que o resumo deste desarmante projeto de investigação, e após três piruetas encarpadas à retaguarda, acaba exatamente como começou: o projeto pretende clarificar as mudanças operadas nesta área (qual? a área das pessoas transgénero?  a área onde as pessoas são representativas de uma das fronteiras mais complexas no campo do género, ou a área das mudanças ocorridas nessa área?) através de três linhas de investigação que ninguém percebeu, investigando exatamente aquilo que se começou por anunciar que se ia clarificar nas três linhas de investigação que ninguém percebeu.


Algumas linhas de investigação propostas por mim: não será este um não-problema, sendo uma grande parte do assunto resolvido ou com aprofundamento dos direitos laborais (que nada têm a ver com um terceiro género, pois o sexo não deveria contar aqui para nada)? Não será isto um problema de construção da identidade (e nisto, boa noite e boa sorte, pois aposto já aqui os meus dois testículos em como a Sofia Aboim não dirá nada de novo, ou não dirá nada que um transgénero não saiba um milhão de vezes melhor do que qualquer investigador)? Não será isto muito mais um problema de assistência médico-cirúrgica, sendo para isso bem mais adequado entregar os 1,3 milhões de euros aos hospitais portugueses, com o especial propósito de apoiar indivíduos com vontade de mudar de sexo? Não terá este projeto sido agraciado por que toda a gente tem um medo mortal de aparecer na fotografia da posteridade como desrespeitador dos direitos transgéneros, ou outros direitos das ditas minorias sexuais? Não estará Adriano Moreira a querer falar desta tragédia do financiamento e funcionamento universitário (e não da decadência da Europa) quando se refere a um século sem bússola?


Se o problema é a visibilidade do assunto, e a marcação da agenda, com muito menos dinheiro, poderia traduzir-se este magnífico estudo, um ponto de vista transgénero, e distribui-lo por todos os que sentirem necessidade de pensar sobre os seus direitos, ou a experiência radical da mudança de sexo. Pensando sobre isso, ou envolvendo-se na vida política, estarão a alargar as fronteiras das liberdades e proteções, pois o problema da dignidade profissional e mesmo os direitos, não estão diretamente relacionado com a questão do género e as intromissões do poder público, sobretudo se por iniciativa das Universidades, só servirão para agravar o problema. Mas políticas agressivas de mobilidade social ou incentivos à competição nos lugares de topo da sociedade, isso não é coisa que interesse aos sociólogos. A alternativa é enveredar pelo paternalismo pseudocientífico, colocando-se à disposição experiencial dos sempre caridosos exploradores da experiência alheia.