quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Diário de uma louca.

 
Cate Blanchett in Blue Jasmine, Woody Allen, 2013. 
 
 
Quem passar os olhos pelos comentários da imprensa internacional ficará estarrecido com o julgamento votado ao mais recente filme de Woody Allen. Veja-se este lamentável caso. Não só falha inteiramente toda a temática da narrativa como ainda mergulha em exercícios de um ridículo atroz. As pessoas perdem-se em labirínticas interrogações em torno do nível de misoginia do realizador, e apenas por se descrever, neste admirável filme, e com particular rigor, a tragédia de uma mulher tragicamente bela, terrivelmente elegante e neuroticamente perturbada. Mas temos assim tanto medo das mulheres fortes, belas e terríveis? Mas padecemos assim tão intensamente de um ódio mortal contra todo o discurso artístico belo, tenso e rigoroso? Não passa pela cabeça de ninguém apelidar Gogol de anti-masculino por descrever com esmerado rigor a tragédia de um funcionário público, particularmente inteligente, e com atração sobre-humana por capotes de gola francesa, gravatas que alto lá com elas, e botas do mais caro que se podia comprar na Avenida Nevsky de meados do século XIX. Podemos desde logo confirmar como o discurso da paridade entre sexos consegue galgar todas as fronteiras do bom gosto, e emporcalhar-se nos mais fétidos charcos morais, mas não quero voltar a esse tema sórdido, quando estamos na presença de algo de muito mais substancial de um ponto de vista artístico da minha obra enquanto demolidor de mitos românticos.


Desde sempre a arte viveu da mais crua tragédia e, contudo, desde sempre revelou também preocupantes semelhanças mórbidas com o estilo da recomendação moral. Por muito que tenha sido enorme a potência subversiva de um Tolstoi, não podemos deixar de sentir um certo cheiro a sacristia ortodoxa, quando folheamos algumas das suas páginas mais conscientes.  A sua admirável sensibilidade sinfónica no que respeita à forma é por vezes interrompida pelo horripilante zurrar de uma corneta moralista. E o incómodo chega a ser ameaçador ao ponto de, por vezes, os seus romances, prismaticamente urdidos, se parecerem com um cavalo de Tróia, cujo ventre vem recheado com os pigmeus da ética vitoriano-ó-burguesa-ó-cristã. Está bem que tudo começa sempre por ser apenas um cheiro atribulado e confuso, com tanto de adocicado como de áspero, emanando das suas páginas mais convencionais. Mas ainda assim, sobre o corpo dilacerado de uma madura e adúltera mulher russa, desiludida e abandonada à neve em plena ferrovia, parece espreitar o exasperante dedo filisteu de um velho conde, demasiado piedoso para trair e demasiado cobarde para tomar uma decisão responsável. Por motivos de uma dor de cabeça elefantina, não vou sequer falar da trágica colonização socialista do século XX, às mãos da qual escritores cheios de talento como Steinbeck ou Orwell se viram travestidos com a mais pirosa manta de retalhos morais de que há memória na história ginecológica do Ocidente. No cinema também se vive o mesmo dilema e o filme de Allen comete a ousadia de incorrer no supremo pecado. Não o da arte pela arte (que isso não existe, arte tem sempre uma mensagem, pode é dar-se o caso de o mensageiro ser mais ou menos inteligente - e este é um recado especificamente dedicado à menina limão) mas o de introduzir uma ideia artístico-política, contrária ao programa da sua tribo de origem: os indefetíveis do cinema de estilo europeu.

 
Se Ana Karenina foi uma traidora apaixonada (ai, ai, ai) desiludida com os pântanos da traição (ai, ai, ai) a Jasmine de Woody Allen (ainda estou a tentar endireitar-me sob o peso das toneladas de charme descarregadas no ecrã) só se perde quando realmente falha o consolo material e a devida muleta sociológica, isto é, o estatuto. É uma pena que o público falhe a grandiosidade do momento, ignorando o que está em causa neste filme terrível. É que Jasmine faz o pleno dos pecados artísticos para os filisteus educados nas parvoíces do século XX: primo, Jasmine praticou, antes de mais, o supremo crime - que julgo rigorosamente pensado com cruel ironia pela novaiorquino -, de ter abandonado a Universidade sem concluir a sua educação, e logo, ó clemência, ó piedade, essa suprema ciência do mistério,  a Antropologia. Risos, risos, risos; secundo, Jasmine é uma mulher instalada, e confortável, num casamento burguês, mas por mecânica determinação, por uma vontade de não ser escrava da vontade, por um desejo de luxo e estatuto, e não apenas guiada pelo relâmpago do amor. Como o filme demonstra, o relâmpago do amor rasga muitas vezes o céu, quantas o tamanho do nosso desejo, o problema são os limites sociológicos do nosso poder de compra. Jasmine vive para evadir-se da miserável falta de gosto, da indigência estética, da indolência vocabular e mental onde foi produzida, pois foi adotada. Mas não se cansa de repetir, num bordão profundo e fulgurante: os genes não explicam tudo. Mas explica-o a determinação sociológica do meio, pois a mais penetrante e perturbadora ideia artística do filme é transmitida pela fragilidade com que a poderosa Jasmine reage aos grandes momentos da sua derrocada, seja a derrota ou o triunfo, isto é, com tremeluzentes lágrimas e luminosa atribulação. 
 

O que Allen parece querer pintar com o sagrado rosto de uma deslumbrante Jasmine, é talvez a sua mais conseguida versão do falhanço do sonho americano, no fundo um epílogo fantástico de toda a sua obra. Nem rodeada de ouro, nem bafejada pela sorte e nem coberta por uma grega beleza, a consciência ferida, sensível e inteligente, marcada pelo sofrimento de uma infância de carências, logrará fugir à tragédia que a persegue desde o berço. Mesmo não se concordando, é de um determinismo científico que destrói qualquer tentativa de punição. É belo como um raciocínio de Newton. Mas alguém compreendeu o contraponto (que é uma espécie de prova alternativa constante) representado pela irmã pobre de Jasmine? As duas foram adotadas e educadas pelos mesmos pais, e embora uma fosse geneticamente beneficiada, segundo a mitologia familiar, acabam as duas na mais miserável carência, profissional, se bem que uma, a mais burra e limitada, se limite a reconhecer a sua situação e mergulhe assim na «felicidade». Atente o espectador na cena final e veja o ridículo allegro em torno de uma fatia de pizza, enquanto a beleza personificada se afunda no abismo. Com o suplementar interesse de que a mais bela, inteligente e determinada,  sofre também a mais cruel, horrível e profunda desilusão. O filme começa com a comovente Jasmine a falar sozinha, caminhando junto ao abismo, mas sem abandonar a preocupação com o aprumo da sua imbatível elegância, a viagem em primeira classe, a limpeza, claridade e abertura dos espaços por onde quer mover-se. Como não verter uma lágrima de paixão e invocar o espirituoso funcionário de Gogol, humilhado pelo chefe de secção, e as suas incontornáveis perguntas, perguntas que mais valia gravar a ouro e fornecer com o bilhete de identidade aos cidadãos da república: «Se me derem uma casaca da Casa Rutch (uma casa da moeda na época) e se atar uma gravata ao pescoço como a tua, não me chegarás aos calcanhares. Não tenho recursos - é esse o problema».
 
 
Dante era, segundo a qualificação de um filósofo alemão, «a hiena que versifica nas sepulturas». Parece que Dante ouviu dos próprios lábios de Virgílio que nunca este entraria no céu, e Dante, em vez de entrar em pânico, ou passar para o outro lado do passeio, abanando a cabeça, e fingindo não o conhecer, terá dito ao poeta condenado, «meu mestre e senhor». Tal confissão não diminuía o afeto. Pois sucede o mesmo com Jasmine. É por sabermos que está de uma vez por todas, perdida para sempre, que a amamos infinitamente. Antes o abismo que esta porcaria em que vivemos.


blue_jasmine

17 comentários:

Cuca, a Pirata disse...

O falso moralismo está sempre à esquina à espera de uma oportunidade para nos cair em cima. Jasmine é uma personagem que luta desesperadamente pela dignidade restante. As críticas internacionais ao filme são boas para nos mostrar que isso da inveja pequena está longe de ser um exclusivo portuguesinho. A verdade é que as pessoas andam tão doidas que até se conseguem sentir vingadas por cada rico caído em desgraça. Como dizia Jasmine, as pessoas não têm culpa de ser ricas. A crítica que linkaste é miserável e alguém deveria lembrar essa senhora - a propósito das despropositadas insinuações de misoginia - da importância que a segurança económica do casamento, historicamente, teve para as mulheres.

alma disse...

Ainda não vi o filme e não li o link aqui deixado :)
mas do que li e da apresentação que vi, fico cheia de expectativas.

Anna karenina ou Madame Bovary ?!
terei de ver o filme 1º mas suspeito:)))
Que esta é deve ser mais a versão M.Bovary :)))

alma disse...

Izzy :)
por mais rudes ou imaginativos os ditos ouvidos na rua:)aceito-os sempre como um galanteio :)

o 1º impacto que tive tinha 11 anos :)ao ver um exibicionista na esquina de uma rua qd ia para o colegio tinha 11 anos (não me chocou )lembro-me que no meio da surpresa a figura parecia saida de um livro do Dickens :)



alma disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
alma disse...

Sou muito precipitada,um dos meus maiores defeitos :)
porém, neste caso não altera em nada a minha opinião :)
Blue jasmine(Flaubert teria gostado).

conheço alguns casos de jasmines (em versões mais modestas é claro)

Cuca, a Pirata disse...

Flaubert?????
Ou a Alma não leu o Bovary :), ou não viu o filme :) ou não percebeu nenhum dos dois :(

(quanto a sentir-se galanteada com os rudes ditos ouvidos na rua, olhe... nem sei que lhe diga...)

alma disse...

Ehehehehheheeheh (em resposta à Cuca)
Recomendo lhe a releitura da Madame Bovary.

Por aqui :)
Não só li a Bovary como vi o filme com o maior deleite :)tanto a obra do Flaubert como a obra do Woody tratam ambos com mestria um mesmo tema :o narciscismo e as suas consequências em mulheres que se levam demasiado a sério e tornam-se vitimas das suas próprias ações (mulheres que leram pouco na vida é o que é )

Não vi dignidade na pobre Blue :) :)))só um bom guarda roupa (adoro os fetiches e os clichés que o Woody utiliza para conseguir tocar no público)
Não me comoveu o drama dela (qual drama?! o de viver na mentira! denunciando o marido, usando a vingança como arma eheheheheh

Quanto a piropos:

Só as mulheres que se levam demasiado a serio (cuidado) chocam-se com breijeirices.nO meu singelo parecer só a hipocrisia escandaliza-se com palermices.

alma disse...

Uma das coisas mais interessantes da vida é que sobre um mesmo assunto as interpretaçoes são feitas a partir da nossa experiencia :)na sua maioria é sobre erros e quedas que aprendemos.A leitura o cinema para quem sabe ler e ver poupa muita chatice

Anónimo disse...

este post, se só tivesse as fotos, era um sério candidato a melhor post da história da blogosfera.

assim, com letras e tudo, é apenas razoável.

Condenado disse...

Deixei de ligar ao allen desde que o dito cujo disse que o ingmar bergman era o maior artista dos nossos tempos, bergman esse que dizia que o tarkosky era o maior dos nossos tempos, que por sua vez dizia que o maior era o maluco do bresson, bresson esse que gostava muito do chaplin, e cujas notas do cinematografo, que li, foram traduzidas pelo pedro badocha não sei das quantas.

Condenado disse...

fodasse entao e quando eu escrevi aqui que deixei de ligar ao bêbado do bloom após o gajo defender que freud era o maior artista do século xx. também foi do cara***. para disseminar ainda mais esta merda, digo que o alf é o maior artista dos nossos tempos.

Cuca, a Pirata disse...

Alma, concordo consigo numa coisa. O seu parecer é singelo.

alma disse...

Cuca,

Obrigada :))))

silvia disse...

Oh condenado ;)))

A tua condenação é gostarmos de ti incondicionalmente .

Cuca,

Reler a Bovary é um bom exercício

Anónimo disse...

o alf alguma vez escreveu ficção?

eu gostava de ler ficção escrita pelo alf!!!!!!

condenado disse...

Muito bem. Aqui ficam os meus lacrimejantes, lacinantes agradecimentos à silvia e ao alf. De facto, não, não pude, de facto, deixar de sentir um certo cheiro a dedicatória fúnebre aqui à minha pessoa, a saber, uma versão maléfica do very british Ernesto 0. Gibbons (recordo até de certa vez lhe chamar gibão, de forma a proteger a minha identidade invisível[ideia altamente artística que ofereço ao alf para ele explorar]), enquanto atualizava sucessivamente os parágrafos deste cena de alto gabarito académico.

Se alguém já suspeitasse que aqui o condenado era uma versão maléfica do gibão, faça o favor de comentar, que prometo disseminar ainda mais esta me***.

Condenado disse...

E tudo isto para reforçar as teses da silvia e do alf, de que, de facto, estou completamente perdido, o gibão está, de facto, enterrado desde há muito, mau sinal, mau sinal. e esta trampa já parece o jekyll e o hyde, o que apenas reforça ainda mais a ideia da alma, de que "A leitura o cinema para quem sabe ler e ver poupa muita chatice", mau sinal, mau sinal.