sábado, 23 de fevereiro de 2013

Carta aberta para uma reconciliação comigo próprio.

Queridos e estimados interessados nas coisas:
 
 
1.
Pensemos na imprensa com tinta e caracteres de ferro no século XVII. Em face do risco e dos custos, pelo menos na Península Ibérica, o caso que conheço com mais detalhe, quem publicava em quantidade? À parte os Manuais de  Confessores e os Espelhos de Penitentes, publicavam os juristas que defendiam as Casas Aristocráticas nos tribunais do reino, os Bispos que pretendiam fazer cumprir as Constituições Sinodais e a Corte, liderada pela Secretaria de Estado, que pretendia generalizar o conhecimento e obediência da lei régia. Seria assim no norte da Europa? Como é evidente não, por muitas e variadas razões que explicarei noutra oportunidade. Continua a ser assim em Portugal? Sim, de algum modo, embora os Bispos tenham sido substituídos por outra forma de poder religioso: o capital financeiro e o profissionalismo.

 
2.
A prática editorial dependeu sempre do avultado risco da impressão, em que há não só um investimento inicial considerável, composição, máquinas de impressão e corte, tintas, trabalho mecânico, como um risco elevado devido ao desfasamento temporal entre a edição das obras e o seu consumo. Esta divergência entre os tempos de produção e consumo, além dos elevados custos de produção, e diante da forte procura por textos escritos (o humano é sempre a coisa mais interessante que existe para consumir) gerou, capitalisticamente falando, a especialização profissional do editor, criando um incentivo automático para investir no conhecimento do comportamento daquele mercado concreto, o consumo de livros, como criando um interesse distinto do autor, o que garantia um laboratório de legibilidade do livro, isto para não falar das mais perturbadoras questões culturais (as últimas a desaparecer) em que o autor, não querendo sujar as mãos, oferecia a oficiais mecânicos e editores (impressores até ao século XIX) a parte suja do mundo do livro.
 

3.
Quando a parte suja da sociedade (escrivães, mecardores, negociantes, mecânicos, astrólogos, cirurgiões) tomou gloriosamente a pilotagem da nave do Estado, entre o século XVII e XVIII, os editores transformaram-se nos investidores de um comércio que com a expansão da alfabetização, foi ganhando cada vez mais protagonismo e que só iria começar a enfraquecer com o domínio maxweliano da electricidade. Shanon e Von Neuman deram as restantes machadas na informação em papel. Mas entretanto ficamos com essa estranha figura setecentista, o autor, que permitia lucros avultados e vendia impudicamente as suas vivências para citar o filósofo de Turim. O autor ainda não percebeu que já não precisa das editoras mas como o autor é conservador e não acredita no seu trabalho e apenas confia nos poderosos meios da propaganda, tal como existem nos meios de comunicação de massas, e não quer confiar a sua sorte às redes de proximidade, esperando depois, se for caso disso, que a sua qualidade faça o resto, até porque as pessoas são «estúpidas» (e atenção que eu compreendo estes receios) entrega-se na cruz da miséria editorial para receber o trono público da consagração culturalmente totalitária e fascista, e de modo algum democrática.
 

4.
A informação é condicionada por limites tecnológicos mas também por limites políticos e culturais. Em Portugal enfrentamos um duplo problema. A generalização do computador pessoal permite-nos experimentar outras formas de mercado, com maior e mais direcionada produção de autores e consumidores de textos. Mas não só estamos sempre na cauda tecnológica como enfrentamos no nosso caso particular o cinismo militante e a ignorânica olímpica de que temos aqui falado. Ou está sempre tudo bem como está, com excepção das «reformas» que não podem ser adiadas (risos), ou é preciso fazer a revolução, sendo mais frequente, pelo menos na sua expressão pública, a primeira hipótese de opinião.
 

5.
As editoras travam o comércio digital, apostando apenas nessa coisa ridícula do self-publishing (esmifrando os desgraçados) em vez de desenvolver software que permita direcionar os públicos e multiplicar o número de autores interessantes. Quantos comentadores deste blogue não escrevem coisas mais interessantes do que vejo publicado, por exemplo, nas crónicas de valter hugo mãe? Será crime criar um incentivo para que os comentadores sintam que vale a pena serem autores e serem recompensados por um trabalho que interessa às outras pessoas? Terá esse comércio escala para quantos autores? Posso garantir que se não existirem milhares de pseudo editores, mais milhares de funcionários da propaganda a mamar no texto, muito mais gente poderia viver da escrita. Em segundo lugar, teremos que lidar com a nossa católica apreciação do silêncio, o resguardo, dos que não querem a fama, nem a ribalta, servos sofredores, filósofos de vão de escada, incompreendidos do sistema. Podia dar-se o caso (é só uma sugestão, calma) de existir um retorno positivo para todos no facto de as pessoas publicarem as suas ideias, e as discutirem, e contribuirem para que mais pessoas publicassem as suas ideias, tentativas narrativas, conhecimentos de vida, experiências irrepetíveis.


6.
Mas não, esqueçam, o dinheiro e o profissionalismo são essenciais no mundo editorial, sobretudo porque contribuem para afunilar o número dos que falam e alargar o número dos que ouvem. Utilizar a computação para harmonizar quem fala e quem ouve, por nos ter sido permitido baixar, e muito, os custos de produção e distribuição da informação, isso é um pecado que o mundo da edição em papel e os portugueses em geral não cometerão, pessoas adestradas no culto do anonimato, da desistência, da contemporização, do fado, ah, esta magnífica explosão do fado, que pelo menos no meu caso já não é possível suportar sem esmurrar mesas e pontapear cadeiras.
 

7.
Felizmente, e para responder à pergunta sobre  articulação da pornografia com a felicidade, o sistema nervoso e o conjunto de instintos biológicos oferecem uma base que não deve acorrentar-nos mas que tem consistência suficiente para nela fundarmos o que queremos ser. Basta utilizar o que aprendemos sobre as fases do projeto. Estabelecer objetivos e utilizar as ferramentas, na vida como no casamento. Agora não me venham, pela vossa saúde, com teorias da auto-organização do mundo com base em resumos treslidos de obras sobre economia moral escritas no século XVIII.

10 comentários:

Capt. Paddock disse...

Na minha arrogante opinião, falta o ponto 8. Aquele em que devias explicar uma merda da qual não se fala mas que me causa grande estranheza. A saber: o disparatado número de impressões de alguns livros. Mais concretamente, sabermos porque é que os "grupos editoriais" fazem tiragens de cem mil exemplares de livros, sendo que o livro anterior desse autor apenas vendeu mil. É só ir ao tal armazém do grupo Leya, por exemplo, onde jazem milhares dessas sobras, que são retiradas das livrarias ao fim de dois anos e a própria editora dá como esgotada, tendo 90 mil em armazém a apodrecer.

Anónimo disse...

porque no fundo no fundo, a malta não gosta de ler livros, gosta de os ver a arder. ah, caralho, quem nunca sonhou entrar por uma biblioteca dentro e queimar aquela merda toda, pessoas que estão a arrumar e ler os livros incluídas, que atire o primeiro volume da riqueza das nações (edição da gulbenkian de capa dura, para doer mais).

também já tinha ouvido falar nesses armazéns e se não for para isto, para queimar aquela merda toda, não sei para que será.

Capt. Paddock disse...

A malta sonha, o Bradbury escreveu e o Truffaut filmou: Farenheit 451.

Ex-Vincent Poursan disse...

Por razões várias (a que não serão alheias a nacionalidade, idade, condição, a crise, o ataque de vómitos provocado pela leitura dos excertos do conto do Peixoto, as aulas de canto para uma correcta interpretação da “Grândola” e o excesso de testerona), não pude ainda debruçar-me com a devida atenção sobre as causas, conflito e consequências do “belliciste menáge á trois” (com provocação, barragem de artilharia pesada e combate de rua) paddock/tolan/alf (a ordem é tipo arbitrária). O que farei (após prévia aquisição do livro do ítalo com desconto de 20%, logo que me emprestem um casaco decente para ir ao chiado e me resolvam o problema eléctrico no sacana do audi, pesquisa gogleana da obra da Vasconcelos e a demissão do governo) ou não, tornarei público (neste espaço ou noutro) ou não, dependendo das razões várias acima aduzidas. Inclino-me para que sim, dado que não será trabalho de casa, e também para que não, dadas as razões acima expostas.

Combalido, teso (tanto no sentido figurado como próprio), ligeiramente rouco e ainda com o estômago a ressacar, vi o meu estado de ânimo agravado com a leitura de “a malta não gosta de ler livros, gosta de os ver a arder. ah, caralho, quem nunca sonhou entrar por uma biblioteca dentro e queimar aquela merda toda”.
Este síndrome (conhecido pelo de césar/omar/hitler/estaline) manifesta-se, tipo sarna nas meninges, no geral em tempos de profunda crise de valores e no particular por debilidade mental aguda após coma alcoólico (espero ser o caso do anónimo).

entretanto liguei para o saúde 24, e recomendaram-me abstinência nas reticências e pontos de exclamação com uso profilático de parêntesis.
Estou a seguir escrupulosamente a recomendação mas ainda sinto um certo desconforto na terceira costela do lado lombar e refluxo esofágico… mais ou menos… porrafodaçecaralho, lá descaí prás reticências.

Anónimo disse...

nunca pensei que um simples comentário, em que abro o meu coração e revelo uma das minhas fantasias (nunca será concretizada, calma, podem continuar a frequentar bibliotecas à vontade, é um pouco com fazer um menage à três ou à quatro o mesmo à sete, com a equipa de andebol feminino da suécia [como fez o bolt, gajo que nunca se dopou na vida]) provocasse tanta comoção física e emocional ao comentador dos comentadores, ex-vicente porsão, de seu nome, honrado e louvado seja ele e os seus seguidores.

acredito que o comentário ainda seja dirigido ao conto do peixoto, e por isso não o levo tanto a peito, mas por via das dúvidas, dedico ao ex-vicente porsão a seguinte excerto:

"... enquanto os livros, com um bater de asas, morriam no umbral da casa e no jardim. Enquanto os livros se estorciam entre nuvens de fagulhas e partiam, calcinados, com o vento"

sublinho as ultimas palavras:

"...e partiam, calcinados, com o vento".

repito, que atire o primeiro volume da riqueza da nações (edição da gulbenkian, muito importante este detalhe). o segundo também podem atirar, mas eu gosto mais do primeiro. é uma questão emocional. há uns anos atrás, no âmbito de uma daquelas disciplinas dos extraordinariamente inúteis cursos de ciências sociais fiz um trabalho sobre o capítulo IV desse primeiro volume "da origem e utilidade da moeda". não me lembro da nota que tive no trabalho, provavelmente foi fraca, mas lembro-me de ter percebido tudo o que o escocês dum raio me tentou explicar. e isso raramente aconteceu na minha vida. em geral, não percebo um cu do que se passa à minha volta.

vou jantar.

que o fc porto perca hoje, por muitos. é a única coisa que desejo.

Izzy disse...

Ainda nao me explicaram porque o Kindle Direct Publishing nao funciona para voces. Estou a partir do principio que nao teem nenhuma editora interessada e os manuscritos estao a ganhar po na gaveta.

Ernesto O. Gibbons disse...

Deixo aqui um agradecimento honesto ao alf, a condecorar a sua resposta pronta.

outro anónimo disse...

Caro anónimo (cujo nome desconheço mas é certamente honrado e louvado, em grande gritaria e de cima pra baixo, por todos os santos e pecadores do tiepolo), essa treta de trocar “de” por “da” e gralhas por corvos, só não aconteceu na pré-história porque, estando cansados com a invenção da roda, os mecos pré-históricos deixaram a da escrita prós mecos históricos. A coisa piorou pós gutenberg. Consta até, nos mentideros do costume alimentados pelo pinto da costa, que o primeiro livro impresso tinha por título “vívlia”.

Retranscrevo seguidamente a citação, mais completa e corrigida da nada inocente gralha, que teve a amabilidade de incluir no seu oportuno e esclarecido comentário:
“Teria gostado acima de tudo, segundo a velha tradição, de mergulhar no traseiro uma alcachofra presa na ponta de um pau, enquanto os livros, com um bater de asas, morriam no umbral da casa e no jardim. Enquanto os livros se estorciam entre nuvens de fagulhas e partiam, calcinados, com o vento”

Entretanto já tive a oportunidade de acrescentar à página 107 de certo e determinado calhamaço, à mão mas em maiúsculas e a marcador preto:
“usar como arma de defesa em caso de agitação social e de ataque a incendiários de bibliotecas”

Que a vida lhe seja longa e negue os fósforos.

Tolan disse...

izzy, tenho editoras interessadas e só tenho uma coisa acabada, no meu caso é uma questão de continuar, não há crise :)

Anónimo disse...

o facto de o Tolan ter editoras interessadas em publicar o seu "livro" diz tudo acerca do mundo editorial em Portugal. Who the fuck is Tolan? Já agora caro Capt. Panhock qual é esse autor de que fala? Adoro bloggers que para além de serem "autores" injustiçados pois o "mundo editorial" ainda não os publicou (o que realmente é um crime uma vez que são génios) são também grandes entendidos no que à edição diz respeito - sendo que nada percebem do que escrevem...