sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Pequeno monólogo de um antigo oficial de guerra descoberto entre papéis velhos

O uivo das árvores e o sopro infernal da neve são a única companhia do oficial de guerra a quem calhou uma decisão que não pode confessar, não só em face da disciplina militar como do orgulho, honra e obediência que devem ser o último peso a abandonar no meio da tempestade moral sofrida por um homem que alimenta, com o seu sangue, a esperança em ser reconhecido como digno do uniforme que enverga. Como é evidente, ainda nem enunciei o problema e já me encontro perdido num mar de contradições, ou como diria o meu Ajudante-de-campo, «estou com  dificuldades em encontrar o caminho no meio da minha própria dessarrumação». É nesta altura que num ápice o meu cérebro varre uma região estranha e insidiosa, de onde emerge uma estratégia para me manter em tensão e apontar um rumo com o máximo de certeza e convicção, mas ao fazer a escolha, a força com que julgo decidir, é o mesmo movimento em que constantemente me afundo, tal como o naufrágo que para respirar um pouco mais à tona do oceano, consome a última porção de energia.
 
 
Hesito entre seguir o confronto com o próprio raciocínio ou proteger-me num movimento raro, capaz de cavar um fosso de distinção entre mim e os outros ou pelo menos convocar a atenção dos outros com a mesma leveza com que o oficial deve cavalgar o seu cavalo branco diante das tropas alinhadas no campo de batalha. Mas não beneficiará o oficial modelo de um regime político que reforça a cada momento a sua autoridade, enquanto eu tenho que negociar com cada soldado as condições de um exército que parece não servir ninguém? Não podemos negar que a lenta e meticulosa constituição de uma força armada é um projeto ambicioso e o relatório sobre os números dos homens alistados, trazido há pouco pelo meu fiel secretário, demonstram que se não alcancei o triunfo nessa matéria, estou ao menos a fugir da humilhação com razoável sucesso. Mas a natureza dos exércitos é não só fazer a guerra como permitir à aristocracia sustentar a sua posição, e nem eu estou seguro de querer travar uma guerra em nome de uma casta a que não pertenço por natureza, nem os soldados parecem dispostos a seguir um homem que perdeu a convicção no que representa.
 
 
 Se não consigo arregimentar tropas suficientes para travar o combate, talvez isso se deva à profunda desconfiança perante uma guerra cujo sentido desconheço. No entanto, não será esta dúvida o motor secreto de todas as guerras? Cada hora confirma que de uma forma ou de outra, a decisão reveste-se no plano prático de uma total irrelevância, pois o inimigo controla todas as posições estratégicas e enviou todos os avisos para uma rendição honrosa. Além disso, tenho estado durante as últimas horas cercado pela face magoada e severa dos meus ajudantes-de-campo, velhos cavalos que antes do abate derramam o olhar sobre o seu proprietário, indecisos entre uma morte digna da vontade gélida dos anjos ou um espernear desonroso mas coincidente com a sua valiosa raça. Já por duas vezes peguei na minha pistola de prata; mas de que me valeria um disparo seco, cortando o corpo da floresta de uma ponta à outra, e chegando às fileiras do inimigo com o ruído rejubilante da primeira salva que anuncia ao exército inimigo uma vitória sem esforço?

5 comentários:

F. disse...

De alguma forma (ainda que não se trate do mesmo...directamente) este texto faz-me lembrar dino buzzaticom o seu deserto tártaros. Obra de que descreveu na perfeição o processo em que quando somos crianças, todos nos sorriem e vêm à janela, temos um destino pela frente e quando o homem se torna dono de si, ninguém se dá ao trabalho de lhe sorrir ou acenar e caminha só para o infinito (não o escreveu nestas palavras mas assim interpretei).

Always a pleasure reading Alf.

alma disse...

Ao ler só me lembrei :

"Levar a carta a Garcia "

Um feliz natal para todos :)))

Alf, sem dúvida que seria o soldado que seria capaz de encontrar o Garcia :)))

alma disse...

heheheh
adenda:
Alf,
sem dúvida que seria o soldado capaz de encontrar o Garcia :)))

para quem não conhece a história consulte o google :)))

alma disse...

aqui vai o significado da frase :)


«Cumprir, eficazmente, uma missão, por mais difícil ou impossível que possa parecer.»

Tolan disse...

Alf, Alf, ohhh junta-te a nós no http://www.goodreads.com/, até podes ser Alf lá também e assim podes ver os livros que eu ando a ler ou já li e podes fazer recomendações e dar estrelinhas, é tipo Farmville mas de livros e uma pessoa olha para a tua horta livreira e fica impressionada, ena ena, o alf tem tantos livros, olha para a aquilo... até podes nem ter os livros, basta tê-los lido e já conta, porque imagino que tu tens de ir às bibliotecas municipais.