terça-feira, 27 de abril de 2010

A economia do ressentimento católico: uma censura e duas recomendações

Marco Tardelli refere que na hora do golo, quando escorrega e mesmo assim lhe resta força melancólica suficiente para disparar a bola para o fundo das redes, sentiu aquilo que dizem suceder na hora da morte: revisão da vida e das expectativas de criança. Tardelli não hesitou e, mesmo em queda, foi ainda o jogador concentrado no seu objectivo. É por isto que o futebol é muito mais importante, pedagogicamente falando, do que a literatura. É verdade que entre os comentadores profissionais ainda existe uma certa confusão sobre o papel da inspiração no futebol, problema já solucionado pela literatura há um século e meio. No que me diz respeito, basta ler a coluna de João César das Neves no DN para que desça sobre mim a pomba do espírito, com seu dardejar de asas doces, e me leve a planar sobre as alturas seráficas da contemplação e da paz, país onde brotam as fontes da inspiração. Oráculo do Senhor. Eu já sabia que isto iria acontecer. Isto o quê? Procuremos colocar o problema. Com as críticas demolidoras do século XVIII e XIX ao obscurantismo mental dos indivíduos – críticas essas decorrentes da própria modernidade política e económica – mais tarde ou mais cedo, o homem teria que confrontar-se com a sua finitude e dar uma pirueta. Se essa pirueta evoluiria progressivamente ou à rectaguarda era a grande questão que permanecia (e permanece) em aberto. A transformação social é uma coisa complexa, não será necessário relembrar, pelo menos para aqueles que não acreditam no papel dos pastorinhos de Aljustrel (Concelho de Fátima) na história europeia do século XX. E quem conhece um pouco da história da Europa sabe como as transformações subterrâneas partem dos próprios fundamentos orgânicos das sociedades. Ou isto, ou a vara de Moisés, o sopro invisível dos caminhos insondáveis e o camandro. Prefiro isto. (De qualquer forma ainda gostava de saber como se harmoniza o Orçamento Geral do Estado como aquela passagem dos passarinhos). Aiante. O problema é que explicar o motor biológico que leva uma célula a dividir-se, a partir da sua própria informação genética, é muito mais fácil do que explicar porque razão uma asa cresce num dado sentido funcional, como resultado da competência mecânico-reprodutora de um ser-vivo. Se quisermos entender fenómenos sociais, o caldo está definitivamente entornado, pelo que já era tempo de reconhecer a nossa ignorância, não desesperando, mas começando a trabalhar com humildade e muito rigor. Tentemos alguns tópicos soltos. Coisas tão banais como o relógio mecânico foram responsáveis por uma demolição dos ritmos cristãos da existência. Na galeria das recordações saudosas pode referir-se o sino, e sua marcação do tempo, decalcada da liturgia das horas (alguns de nós ainda se lembram de ouvir pessoas mais velhas dizer «à hora das trindades» ou utilizar o conceito de «matinas», e lembramo-nos porque portugal, nem teve reforma protestante, nem se industrializou verdadeiramente até aos anos 50/60 do século XX). E que dizer sobre toda a literatura que explica como o mercado operário e as necessidades da indústria alteraram a organização da casa e a estrutura da família? Contudo, para o Professor César das Neves (e aqui me inclino respeitosamente como diante do sacrário onde repousa o sacratíssimo corpo de nosso senhor Jesus Cristo) a destruição da família é obra de um monstro chamado José Sócrates. E todos nós trememos nas nossas cadeiras, recolhemos no regaço protetor de um braço forte e saudável - como o asa do espírito - a carne inocente das crianças, nós, horrorizados com a hidra socialista que mergulha, na lama hedionda da perversão, a bondosa família natural, essa instituição que viveu durante 300 anos de forma espectacularmente harmoniosa com a economia de mercado, qual cordeiro mamando no úbere de sua mãe, até à chegada do monstruoso engenheiro da Covilhã, balouçando o seu balde de ordenha e sorrindo sinistramente para o pastor gay que ronda as imediações do curral divino.
De acordo com o Professor Catedrático da Universidade Católica (é favor não rir) «Desde 2007, a mortalidade ultrapassou a natalidade. Portugal é o país com menor fertilidade na Europa ocidental, das mais baixas do mundo. Esta catástrofe demográfica faz de nós um povo em vias de extinção e ameaça a nossa herança e cultura. O número de divórcios é mais de metade dos casamentos, enquanto a coabitação precária e os filhos fora do casamento explodem, gerando lares esfarrapados, insucesso escolar, depressões, miséria, crime.».

Não é possível continuar a ignorar este quadro, digno de um prospecto das testemunhas de Jeová, mas apimentado com o impulso racionalista da economia clássica. O professor César das Neves - dr. Jekill and Mr. Hyde do profetismo económico-espiritual – ainda não compreendeu (e seria bom que um dos seus confessores lhe explicasse, rapidamente: se não existir nenhum disponível, eu próprio posso dar uma aula a título completamente gratuito) que a destruição da família, que ele contempla horrorizado, virando-se para o seio protetor de Maria, estrela da manhã, é apenas o corolário da «modernidade». Sim, da modernidade. A mesma que trouxe a divisão do trabalho (ai, a mulher), a mercantilização das relações sociais (ai, os mosteiros e a estrutura da terra), a concorrência como factor de progresso (ai, a lealdade do casamento), o consumo como motor do desenvolvimento (ai, a apologia do sacríficio e a condenação da lascívia), a monetarização da economia (ai, a tradicional lentidão dos laços sociais). Professor César das Neves, será preciso falar da importância da pornografia na sustentabilidade dos mercados em empresas como a Vodafone ou a Google? Também me parece que não. Com toda a sinceridade, apenas à luz da escuridão pré-histórica e cavernosa de uma fé boçal se entende que um economista possa desconhecer a estreita relação entre demografia e padrões de consumo. José Socrátes, como é evidente, não é um monstro. É, quanto muito, um organizador da paródia.

Na verdade, eu já sabia que isto iria acontecer. Isto, o desespero dos mais descontentes com a sua própria competência - intelectual e mentalmente falando – que perante a crise da modernidade se viram para a primeira banha da cobra estendida ao virar da esquina. Em Portugal, a primeia banha da cobra da esquina é, inevitavelmente, a Igreja Católica e a sua secular capacidade de criar sentidos para o mal que não compreende. O problema é que a sua estrutura profissional de sacerdotes (cada vez mais anacrónica) vai colidindo com o mundo em movimento (até aqui, o professor Neves ainda chega, uma vez que leu uns livros de economia). O problema é quando se torna necessário entender. Aí, quase sempre, os mugidos metafísicos tornam-se ensurdecedores, neste túnel de uma velha dor, para parafrasear um publicitário conhecido, e levam na enchurrada do medo qualquer tentativa de compreender o comportamento racional dos «players», indivíduos que, estranhamente, se revelam tão rcionalmente racionais no mercado dos produtos financeiros e das remunerações por objectivos e se tornam, com abominável surpresa, filhos irracionais do demónio, na hora de tomarem decisões no mercado da prática abortiva ou na hora de se posicionarem perante a oferta, manifestamente escassa - mas, graças a Deus, crescente -, no domínio das parceiras sexuais. Quanto a consequências reprodutoras, a diminuição demográfica pode ser entendida numa prática - bastante aconselhada por todas as instituições de rating -de privatização dos impactos amorosos e de contenção de custos. Gastar dinheiro em fraldas, numa conjuntura em que os risco de incumprimento subiram a níveis históricos? Limpar o cu a meninos, numa conjuntura de necessidade de novos conceitos de negócio? Receber no colarinho engomado o bolsado branco do recém-nascido numa conjuntura de indispensabilidade de afirmação da imagem positiva no âmbito da concorrência internacional?
p.s. e não me venham com os engomados da Lapa com suas mil crianças, que esses pagam bem as empregadas da Amadora que lhes preparam as refeições da semana, lhes engomam os fatos e voltam em autocarros suburbanos, de cu tremido, enquanto os filhos delas apalpam as filhas deles e lhes surripiam trocos, alegremente divertidos, uns e outras, em centros comerciais da periferia patrocinados pela cristianizada e familiar Sonae.
Quanto ás recomendações:
1) Esvaziar a casa de qualquer artefacto que lembre, vagamente, a relação estreita entre sexualidade e objectos em forma de cruz onde está dependurado um indivíduo semi-nu com pingos de sangue.
2) Doar a Timor toda as encíclicas, biografias da Irmã Lúcia e livros de Aura Miguel e iniciar a leitura e estudo das obras completas de Kant: se é para ser cristão ao menos saibam sê-lo com higiene mental.

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