terça-feira, 15 de setembro de 2009

Asfixia estética: Henrique Raposo como contador de histórias.

As tardes de um cidade mediterrânica, como Lisboa, banhadas por uma luz, meio helénica, meio berbere, prestam-se às mais nefandas realizações do espírito, espirais desmaiadas de orientalismo, diatribes coléricas atravessadas por um latinismo tardo-decadentista. Em Lisboa cheira sempre a fim de império. Eça de Queiróz sabia disto, tanto mais que se pirou para Bristol para melhor poder amar a pátria. A neve que aqui falta, o frio que aqui não faz, não convidam o lisboeta ao estudo, muito menos ao génio. Para escrever é necessário ir em busca dos nevoeiros do norte. O calor adormece o espírito. O mesmo é dizer que convida à cerveja, ao tremoço e à crónica do Expresso. «Avô conta um história.» O avô - personagem de súbito introduzido neste texto por uma cambalhota fascista, cofiou o bigode numa velha cadeira de baloiço, pele de leão e pau-preto, trazida de Moçambique em 1976, após a independência - insultou os comunistas, jurou morte a Cunhal, Soares e Almeida Santos, era assim que iniciava todas as suas frases, e decidiu então elaborar, para o seu neto, uma parábola exemplar em que um protagonista - um jovem liberal, eivado de brilho intelectual e erudição, redobrando-se em textos eloquentes - vê as suas expectativas de liberdade desabarem no momento em que, pronto para comandar uma legião de descontentes com a asfixia democrática da pátria, um tirano, nascido na Serra da Estrela, usurpa o poder democrático semeando o desespero. O problema é que algo perturbava o espírito deste avô português de velha cepa. A história carecia de uma coerência interna, uma vez que naqueles dias de 2009, muitos anos antes desta tarde quente, em que avô e neto conversavam, um clube popular de Benfica iniciara uma imprevisível retoma exibicional, relegando para quinto plano, atrás da sardinha, do Tony Carreira, da Liliana Queiroz e do Gato Fedorento, as eleições legislativas que tinham como protagonista o tirano Sócrates. O neto estava interessado numa história. E esta era bela. Mas como articular o Futebol com a história da carochinha? Pensava o avô em possibilidades narrativas para despistar o elemento futebolístico: o herói, Henrique Raposo, um varão de honradas famílias, comandaria os liberais e derrotaria o chavista Sócrates ou, enamorado de uma romena que servia à mesa num bar da Madragoa, veria recusada a sua paixão (a romena fugira para a Suécia com um social-democrata, autarca de Mirandela, enriquecido por uma moscambilha de rotundas e malas com dinheiro), pelo que, Raposo, convertido ao islão marxista, emigraria para um mosteiro no deserto de Damasco. Nisto, o neto desinteressou-se totalmente da história, já que Fábio Coentrão acabava de fintar sete jogadores adversários, o fiscal de linha e dois apanha-bolas rematando depois, com estrondo, ao painel electónico do estádio. Ao que o avô, perturbado por aquela reviravolta nos interesses da criança, erguendo-se da cadeira, bradou com voz forte: «Vês Henrique? Este rapaz é de Vila do Conde, aquela terra onde os comunistas não ganham uma junta de fregueisa há cem anos!». «Agora não, avô. Afinal vou ler as obras completas de José Manuel Fernandes» respondeu o menino, retomando o seu interesse político, enquanto recolocava na boca a chupeta. O leitor interroga-se, neste momento, sobre esta estranha continuidade entre o Benfica de 2009 e o Benfica de 2049. É que o mundo tinha desaparecido num holocausto nuclear. A poeira radioactiva tinha exterminado tudo e todos, com excepção de Portugal e dos seus filhos queridos, bebés que, desde o nascimento, ostentavam um estranho interesse pela política da liberdade, preferindo ler Stuart Mill em vez da hora da mamada. Apenas as jogadas de Fábio Coentrão - conservado em gelo pelas novas tecnologias do tirano Sócrates - libertavam os petizes daquele estranho feitiço. O avô vivia numa profunda mágoa perante esta oscilação consciência inconsciência dos futuros varões da pátria. Quanto a Henrique Raposo, desapareceu nos confins do deserto Sírio, usando apenas um lenço palestiniano, segurando uma fotografia da sua amada emigrante e repetindo encolerizado: «Louçã é um Trotskista, Louçã é um Trotskista, Louçã é um Trotskista».

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