quarta-feira, 15 de julho de 2009

Nossa senhora de Fátima salvai-me e salvai o Henrique Raposo, pois ele incomoda muita gente e todos lhe querem mal

O caso mental de Henrique Raposo merece estudo. Não porque o conteúdo dos seus textos incomode mas pela perplexidade decorrente de que uma tão completa impreparação psicológica, cultural e escrita possa arrastar-se num suposto jornal de referência, semana após semana, sem que alguém com o mínimo de exigência argumentativa toque levemente no ombro do senhor Raposo e lhe diga: tem que ler mais e trabalhar com mais subtileza os seus textos, já que eles resultam num estranho cruzamento entre o estilo polémico, mas ignorante, de Carlos Castro e a acutilância vistosa, mas serôdia, de Constança Cunha e Sá. Os amigos de Raposo, ou o próprio Raposo disfarçado de amigo, poderão obstar: Raposo incomoda porque é um liberal, um livre pensador, num país com escassa cultura democrática e falta de personalidades desassombradas que questionem os ídolos de uma sociedade iludida por mitologias obsoletas, totalitárias e socializantes. Seria épico, mas não teria, com pena minha, confesso, a mais pequena semelhança com a realidade. Desgraçadamente, o que incomoda em Raposo, como neste último caso, é muito parecido com aquilo que incomoda o veraneante, quando, no momento em que procura ler em tranquilidade o jornal, uma mosca vem rodear a sua face. Com efeito, não é a vontade livre ou a erudição descomplexada da mosca que perturba o veraneante: é aquele zumbido nervoso e atrapalhado, sem a mínima elegância, fingindo cumprir um movimento de belo feito, ainda que ziguezagueante, enquanto, na verdade, o que a mosca procura é apenas saciar-se com a nossa humilde carne. Quando enxotamos uma mosca reconhecemos que ela incomoda, não deixando, no entanto, de a fazer voar para bem longe, a fim de nos furtarmos ao desconforto que a falta de higiene da mosca insinua. O problema com os textos de Raposo, como neste último caso, não é o conteúdo acutilante: é a forma desajeitada. Não é o relâmpago da verdade que nos atordoa, é o grotesco da sua gramática que nos fere. Raposo tem razão quando vitupera o higienismo histérico mas esgota rapidamente o mais pequeno crédito de paciência benévola quando redige frases como esta: «Este histerismo sanitário ainda vai produzir milhões de Michael Jacksons, isto é, milhões de pessoas que encaram a rua e os vizinhos como permanentes ameaças médicas, enquanto ficam em casa a divinizar os Ronaldos, os deuses da metrossexualidade bacteriologicamente pura.» Porque isto pressupõe que Raposo sabe, como bom liberal e libertino que é, o que é bom para nós. Sabe também que aquilo que não é bom para nós vai, além do mais, produzir milhões de pessoas iguais a nós, padecendo do que, já sendo mau para nós, irá ainda sê-lo pior para os milhões que vierem. Estes vão encarar os outros, tão iludidos como nós (menos Raposo) como permanentes ameaças médicas, ficando em casa, e não sendo cosmopolitas viajados pelas Américas e pelas Turquias (como Raposo), todos perdidos a contemplar o pobre Ronaldo, um homem que ninguém conhece, (ao contrário de Raposo, que é uma referência mundial na sua área de trabalho), dizia eu, Ronaldo, um deus da metro-sexualidade bacteriologicamente puro, e não um varão liberal, bacteriologicamente contaminado mas intelectualmente puro (como Raposo). Daí que não nos espante o conflito que Raposo congemina, logo de seguida, com a exgese bíblica e os sacerdotes da Santa Madre Igreja: é que ambos disputam esse grande espaço da educação do povo. E é com grande tristeza, digo-o agora sem pinga de ironia, que a vanguarda do pensamento político liberal, cavalgada por Raposo - sempre a relegar para o passado as ideias socializantes e marxianas (uma abraço ao Paulo Rangel, nesta sua nova vida) - se engalfinha, à moda do século XIX, numa bela discussão sobre o papel do culto cívico na domesticação dos cidadãos, com vista à unificação do mercado e adequada vida mental na contemplação dos heróis sociais, que bem prescrevam a emancipação dos povos ignorantes, a fim de que estes não se percam nas futilidades burguesas de Jacksons e Ronaldos, tendo todos bem guardadas, em estantes compradas no Ikea, as obras completas de Milton Friedman - sem a mais pequena contaminação bíblica ou marxizante - ou, para os menos bafejados pela livre competição do mercado de trabalho, as crónicas reúnidas de Henrique Raposo, que são mais baratas mas servem, com a mesma pureza de intenções, a conspurcação do corpo e a livre higiene de um espírito liberto, livre, libertino, liberal como só os defensores dos bons costumes intelectuais e comportamentais sabem sê-lo.

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