sexta-feira, 19 de junho de 2009

elogio da escrita barroca - quase uma derrota

Sem que seja claro o seu sentido, a história vai arrastando sobre nós o seu peso morto. Podemos mesmo dizer que os mortos nos perseguem e, perseguindo-nos, talvez lhe devamos um pouco a vitalidade que nos impele para o futuro. Na verdade, sabemos que a industrialização, tragando-nos todos os dias como Cronos os seus próprios filhos, não logrou ainda roubar-nos o Verão. Acertamos o relógio, produzimos toneladas de lixo, vemos desembarcar mercadorias nos portos do Atlântico, partirem comboios internacionais, despenharem-se aviões com mecânica indiferença, ascenderem inevitavelmente os índices de desenvolvimento, na mesma proporção em que são deportados africanos como quem depõe uma caixa de ferramentas ao fundo da arrecadação; enquanto as oliveiras, melhor adaptadas à invenção do tempo, insistem numa contorção cinzenta, enrugada, coroada pelo verde seco das suas múltiplas folhas mas como que a lembrar, com humilde persistência, que por cá continuarão, depois de fracassarem todos os nosso esforços para travar o envelhecimento da pele. Todavia, continuamos a pressentir desde muito cedo a chegada das férias: o cheiro a palha inundando lentamente o fim da tarde, efeito do sol que se vai demorando, cada vez mais, na descida melancólica que empreende cada dia. No mar acumulam-se barcos, velas ao largo, e na praia vemos as luzes prateadas, os toldos listados, os chapéus de sol feitos moinhos de vento coloridos sobre pequenos risos longínquos.
Séneca poderia escrever-nos de uma qualquer praia mediterrânica, devastado pela sua derrota política ante a loucura de Nero, repetindo que devemos reclamar o direito de aproveitar o tempo; alertando-nos, uma última vez, contra o erro de imaginar que a morte está à nossa frente, quando grande parte dela já pertence ao passado. Talvez por isso o Verão nos pareça ao mesmo tempo o sonho de uma noite edílica e a invocação do tédio - a nossa assombração mais terrível. Seria agora o momento exacto para exaltar o tempo que nos foge e, por isso, incitar, didacticamente falando, à resolução de exercícios espirituais que nos permitissem resgatar, da imensa noite a que vamos escapando, os nossos preciosíssimos dias. Porém, meus caros colegas e alunos, como o velho professor desenhado por Graham Greene, e interpretado por Jeremy Irons, I’m history: por isso, «não há que fingir claridade, onde permanece a escuridão», li uma vez num velho filósofo, ocasionalmente, numa viagem de autocarro entre o Cacém e a Amadora. No entanto, deve reconhecer-se, convocando o auxílio do poeta mais desgraçado de Portugal, Ruy Belo – título disputadíssimo, mas roubado na reta da meta a Camões -, que chegarão para todos nós, e inevitavelmente, os primeiros frios de Outubro, pelo que, nessa altura, será tempo de interrogações: «os lilases crudelíssimos de junho/ inalteráveis como o céu das férias grandes/ talvez desdobradas sobre a adolescênciade/ que nos valerão perante a insinuante música do outono?». Reconheço que o tom talvez não seja o mais propício. É certo que nos espera o pó de caminhos cobertos de videiras, a ondulação tranquila das praias mais ao sul, a cal branca dos muros onde se recortam, na sombra, frondosas buganvílias, a sensação do sal cobrindo a nossa pele, o crepitar do fogo no halo nocturno dos choupais, passeios entre casarios labirínticos, figueiras dobradas sobre velhos muros, o cheiro frutado das roseiras descendo no granito das casas de montanha, tardes pesadas de um silêncio xistoso, a tonalidade infinita da terra plana diante dos olhos. Nalguma conversa, as ondas despenhando-se ao fundo, surgirá um apelo de verdade: lembramo-nos de Newton, desvalorizando as suas especulações sobre a gravidade, confessando não ser mais que um rapazinho, junto ao mar, recolhendo pedrinhas coloridas e brincando com as conchas. Eu sei, são palavras pouco oportunas, agora que as férias anunciam a alegria. Mas estava só, diante de um canavial que se agitava ao vento, enquanto me chegavam frases pouco articuladas, estevas que rompessem a aridez do chão, repetindo que «o Verão era afinal a única estação».

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