domingo, 31 de maio de 2009

E ao sétimo dia, cansados, os liberais decobriram a planificação da economia

Numa das inúmeras situações hilariantes de A Capital – não o jornal mítico dos anos 80 mas o romance inacabado de Eça – o protagonista esbarra invariavelmente contra a estupidez dos jornalistas. Nas redacções atafulhadas de carreiristas vindos da província, treinados nas recepções dos salões e habituados aos almoços políticos da Casa Havaneza, os jornais, ainda confundidas com o barulho e o cheiro das tipografias, descreviam o high-life, os brindes, as cominações, as estratégias, os perfis, sem que dos crâneos fumegantes dos directores saísse uma única ideia. Hoje, passados mais de cem anos, o que temos? Temos mais um belíssimo editorial do senhor director do Expresso que vem explicar-nos o coração problemático da actual crise, entre recordações dos nossos avós e a memória das lavadeiras honradas e trabalhadoras, esfregando a roupa nas pedras do rio, sonhando, quando a luz do sol trespassava as copas dos plátanos ou lhes vinha à mão algum pano de linho bordado a ouro, com a vida doce e confortável dos senhores morgados. Isto era no tempo em que cantava o rouxinol e a andorinha fazia o seu ninho nas casas honestas dos lavradores. Hoje, no meio da treva moral e da perdição hedonista do consumo, o senhor Director, após o derrube definitivo das ideias feitas dos políticos, dos religiosos e dos economistas, lança da sua cabeça, como trombeta no silêncio espesso de uma manhã de batalha, o estrondo destas novidades: «Os nossos avós amealhavam. Juntavam dinheiro para uma casa ou para as obras de uma casa. Uma festa, uma refeição fora, uma viagem faziam-se quando havia dinheiro, excepcionalmente. Nesse aspecto, era uma sociedade ainda adequada aos parâmetros da ruralidade: plantar para mais tarde colher.» Ó que saudades dos nossos avôs. Eles, com efeito, trabalhavam, remediados com o caldo que a labuta diária ia permitindo, migando duas couves e uma broa para uma panela enquanto se chegavam ao canto do lume, sustendo nas mãos o velho caderninho da contabilidade. Mas depois da 2ª Guerra Mundial, com o fumo dos morteiros e as serpentinas nas mãos dos vencendores, enquanto se agitavam nos céus do mundo e nas avenidas cosmopolitas de Londres e Nova Iorque, as bandeiras listadas, azul-vermelho, da Inglaterra e dos EUA, os nossos avós foram levados pela enxurrada da vida fácil. «A partir dos anos 50/60 do século passado, sensivelmente, tudo começou a modificar-se no mundo. O sistema 'viaje agora e pague depois' foi um dos sinais; como o fim do padrão ouro na moeda ou a palavra já no final dos refrães políticos. As mesmas ideias disseminaram-se - prazer, crédito, casa, automóvel, viagens, tudo era imediato.» E porquê? O senhor director do Expresso salta, comodamente, a explicação. Mas porque não dorme, e há um cheque a levantar no fim de cada mês, arrepende-se e faz a devida contrição: «Atenção: não digo que isto tenha sido errado ou condenável, apenas tento descrever uma realidade em poucas linhas.» Isto não é condenável, com efeito. Quem compraria o Expresso, e o seu cinema-brinde, se não se tivessem multiplicado, como malmequeres no prado, os leitores de dvd? Na verdade, o senhor Director perde-se aqui no nevoeiro da explicação científica: por um lado, sente-se ressabiado por um sistema económico, altamente complexo – o capitalismo -, que não compreende; por outro, estranha as dificuldades que o crescimento da riqueza, tão aplaudido há duas semanas, vai causando na mesma medida em que se democratiza o seu acesso. Suado, extenuado, abatido, mordendo nos dentes a esferográfica, o senhor Director chega finalmente ao seu destino: «Embora isto não absolva (é óbvio!) os crimes cometidos por alguns poucos, todos nós - esquerda e direita, pensadores, economistas, gestores, opinadores ou políticos - contribuímos um pouco para a situação. Não o reconhecer é não compreender a crise.» O leitor recosta-se na sua cadeira e sossega, resgatado do inferno mental que já aquecia, em lume brando, todos os que ilicitamene enriqueceram sentados, em cadeirão de veludo, sobre os contratos de endividamento. Sossega porque foram encontrados os culpados da crise. Haverá julgamento e justiça, com trovões bíblicos e sentenças ameaçadoras. De quem é a culpa? Depois de recolher nas suas mãos a coruja de Minerva, sagrado com o ouro resplandecente da sabedoria, o senhor director lança com estrondo esta verdade: a culpa é toda nossa.

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