segunda-feira, 3 de março de 2008

Descupem, mas vou falar de Teologia e vou ser longo

Não há nada mais divertido do que ouvir um teólogo! O caro leitor perdoará a comparação grosseira mas é como observar a clássica praxe militar do recruta que tenta apanhar com as nádegas um escorregadio sabão do ainda mais escorregadio chão da caserna. Assim é o teólogo, quando se espraia sobre as alturas divinas. Quando escolhe como tema o inferno, então podemos imaginar um recruta tentando segurar com as suas nádegas, não um mas dois escorregadios pedaços de sabão azul e branco.

O Professor de Teologia Fundamental (com F grande) da Universidade Católica de Braga, o ilustre João Duque, lança hoje no Público alguns pedaços de típica prosa escorregadia: «o inferno afirma-se na tradição católica como uma possibilidade que se deve manter em aberto». Nem mais. Aliás, todas as possibilidades são de manter em aberto. Universitários de todo o mundo, atentai bem nestas dicas que vos são dadas. Por exemplo, numa Oral de Direito Constitucional, pergunta o Professor Jorge Miranda:
Existem diferenças significativas entre o tecido constitucional dos E.U.A. e do Reindo Unido?
Responde o examinado:
É uma possibilidade que se deve manter em aberto.
Joãozinho, as alfaces vêm do supermercado?
É uma possibilidade que se deve manter em aberto.
José António Camacho, o Benfica vencerá a Liga dos Campeões na próxima época?
Bem, aqui talvez o leitor prefira que continuemos a ouvir mais pedaços de prosa escorregadia.

O ilustre Professor João Duque lança mais alguns desafios em torno da captação do sabão azul e branco. Responde, por exemplo, à ideia de Hans Urs Von Balthasar – para quem o inferno era um lugar vazio, pois a misericórdia de Deus seria mais forte que o pecado humano – com o tradicional pseudo-realismo que tanto exasperava Kant. Diz o ilustre João Duque que esta ideia de Von Balthasar é uma perspectiva simpática, mas levanta problemas: «em última instância, a vida humana seria um jogo aparente, porque Deus acabaria por nos salvar a todos». Ora, o Professor João Duque lança mão da clássica distinção entre a simpatia da teoria e os problemas da prática. É um recurso com barbas e mereceu da parte de Kant um texto irónico, intitulado « Isto Pode Ser Correcto Na Teoria, Mas Nada Vale Na Prática ». Nessa pequena reflexão o filósofo de Konisberg, lança claridade sobre o problema.
Kant começar por clarificar que liberdade e autonomia se pertencem mutuamente.
Isto recorda-me um episódio da vida pública de Jesus (bela expressão que tão pouco hoje se ouve nas homilias – vida pública de Jesus).
Naqueles dias, estando o mestre (rabi) de Nazaré a ensinar, os sumos-sacerdotes, os doutores da lei e os anciãos acercaram-se e perguntaram com que autoridade, aquele homem de 33 anos, dizia todas aquelas coisas. O filósofo de Nazaré respondeu com outra pergunta. Se o baptismo de João se fazia em nome dos homens ou do céu. Tremenda dificuldade para as questões de poder. Os teólogos, perdão, os sumos-sacerdotes logo perceberam o entalanço. Se respondessem «em nome do céu», significava reconhecer um carisma não controlado pela hierarquia, além de que ficariam expostos ao rídiculo porque não tinham acolhido as suas proféticas palavras. Se respondessem «em nome dos homens», seriam corridos à pedrada pelo povo, porque todos tinham amado aquele comedor de gafanhotos e reconhecido nele uma autoridade evidente. Que resposta foi dada pelo grupo de sábios?
Conforme o costume da falsa modéstia, os teólogos, perdão, os sacerdotes e doutores da lei responderam que não sabiam. O mestre replicou que, sendo assim, também lhes não diria com que autoridade ensinava aquelas coisas. O pacífico leitor já deve ter adivinhado que eu - como criatura que também se adestra na arte de apanhar sabão azul e branco – tenho também a minha resposta: o mestre da nazaré ensinava com a autoridade da autonomia de pensamento. Porque a autoridade lhe vinha precisamente da autoria da sua própria vida, da sua reflexão sobre a tradição judaica e do consequente domínio sobre as acções da sua existência. Acções norteadas pela sua reflexão e não pelo discurso dos teólogos - perdão, dos doutores da lei - ou pelo magistério do Papa - perdão, do sumo-sacerdote.

Pergunta o estimado leitor: mas que tem isso a ver com Kant, o inferno e o sabão azul e branco. Kant responderia que a moral depende de leis a que obedecemos nas nossas acções, não por serem impostas do exterior – reforçadas pelo medo de futuras consequências – mas porque o «sujeito moral» as estrutura no seu interior a partir da nossa capacidade de julgar. Claro que isto de dizer que é cada um de nós a única autoridade capaz de fundar uma moral é um escândalo. Quase tão grande como dizer: não fui eu, mas a tua fé que te salvou. Compreendemos também o problema da Inferno. Em vez de caldeirões e labaredas, estamos sempre a discutir o mesmo: afinal, quem é que manda?
Conforme não se cansou de dizer o filósofo de Konisberg, isto acontece porque não há mais dura tarefa para o homem do que «ficar de pé e contemplar o céu». Ao contrário do que sempre afirmam os teólogos, o miserabilismo da subserviência a «Cristo» é um afago psicológico tão «quentinho» como a subserviência ao «partido», à «televisão», ao «edonismo do consumo», ao «futebol» ou a outra qualquer substituição do pensamento. Já dizia o Livro do Eclesiastes: «acrescentar ciência é acrescentar sofrimento à existência». Tudo menos dificuldades existenciais. O problema é que não há forma nenhuma de nos furtarmos ao sofrimento. Saber esta evidência não resolve a vida de ninguém, porque o humano é justamente um problema por resolver. Contudo, traria talvez mais luz para cada um resolver por si os seus problemas.

Não se trata de individualismo. Trata-se de higiene pessoal. Compreende-se, por isso, o recente ataque de todo o Magister ao iluminismo. «Ficar de pé e contemplar o céu». Eram tramados, estes filósofos das luzes.

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