terça-feira, 25 de março de 2008

9º C em grande

O director do Público, José Manuel Fernandes, escreveu um glorioso editorial no dia 24 de Março de 2008. Já sabiamos que o senhor director era um especialista em políticas educativas. Ficamos a saber que é também um arguto crítico de cinema e perspicaz intérprete de enredos cinematográficos. O editorial, intitulado «O clube dos professores mortos e o dos disparates vivos», versa sobre o «filme de sucesso» Dead Poets Society, arrancando uma analogia com a política educativa pós-25 de Abril.
O referido editorial começa por esclarecer-nos sobre algumas trapaças implícitas no argumento do filme. Quando todos pensávamos que a razão do suícido de Neil se relacionava com a educação autoritária do pai – proibindo-o de encaminhar a sua vida para as artes, neste caso a representação, e sufocando-o com a pressão do sucesso e da disciplina de uma carreira de excelência em medicina – eis que o senhor director vem explicar que o deseperado acto ficou a dever-se aos «métodos do professor Keating» que «acabaram por criar uma tensão de que resultou o suicídio de um dos seus alunos». Depois, o mesmo editorial arranca dos nossos olhos as trevas da ignorância – acumuladas por longos anos de frequência da escola pública – chamando a atenção para os quatro princípios do colégio welton («tradição», «disciplina», «honra» e «excelência»). Estes «valores» imortais garatiam o sucesso uma vez que, segundo as palavras dos senhor director, permitiam a entrada «da maioria dos alunos nas grandes universidades americanas». Na verdade, até este editorial, todos tinhamos adquirido – com a nossa ingénua, emocional e esquerdista análise do filme – a incorrecta impressão de que a entrada nessas «grandes universidades» se devia em grande parte ao trabalho dos alunos, na sua grande maioria já detentores de disciplina de estudo, bebida no seio de famílias de classe média e alta. Nada mais errado. Como bem explica o senhor director, tal devia-se aos quatro pilares valorativos em que assentava a dimensão comportamental da escola. Quanto à competência dos professores em matéria de saber: uma vírgula, no imenso texto da disciplina.
Como bem explica o senhor director, o nosso olhar severo deve então voltar-se para este «professor bom», e participante «das folias dos adolescentes» (creio que a expressão que José Manuel Fernandes buscava era «professor cool», uma vez que folias cheira um pouco a estado novo). Dizia eu, como bem explica o senhor director, parece que todas as escolas portuguesas adoptaram o modelo do professor Keating. Acrescenta o ilustre jornalista que «imaginou-se que se podia ensinar todas as disciplinas como ele ensinava poesia». Mais (e atente-se bem na profundidade deste pensamento político-educativo) imaginou-se «que se podia tratar todos os alunos como ele tratava aqueles alunos de boas famílias». Ó ingenuidade das políticas educativas em Portugal. Ó infâmes funcionários ministeriais contaminados pelo vírus da escola jacobina. Então não sabíeis que os alunos das “más famílias” se tratam com chicote e expulsão? Que quem não quer disciplinar-se coma honra e a tradição (malandros) que vá para as obras continuar a tradição, honra, excelência e disciplina de vossos pais a acartar baldes de massa?
O paciente director do Público continua a sua lição: «a mensagem do Clube dos poetas mortos era simpática, atractiva e idealista, mas fez muito mal à escola portuguesa. O que se passou no Carolina Michaëlis é disso um bom exemplo».


Com efeito, todos compreendemos esta estreita ligação entre o professor Keating, o Ministério da Educação e o que se passou no Carolina Michaëlis. O director prossegue o nosso esclarecimento. Há que desmontar duas «polarizações artificiais» (belo conceito só ao alcance de um frequentador do Liceu Pedro Nunes). Ficamos a saber que a autoridade no «colégio de Welton» «não era um valor em si mesmo» (ora senhor director, assim não. Já no Domingo, o Provedor tinha chamado a atenção para a revisão de português do Público e agora, outro erro. Isto de frequentar escolas públicas, mesmo quando se trata do Liceu Pedro Nunes, acaba por trair mesmo os mais geniais como o senhor director). Prosseguindo. Ficamos a saber que a autoridade do «colégio de Welton» não era um valor em si mesma. (Quando o Professor Keating explicou o capítulo das concordâncias, não estávamos atentos pois não?). Não se pode ter tudo, salvou-se um visionário na educação, perdeu-se a correcção no português.

Bem, ao senhor director - pela agudeza das conclusões - tudo se perdoa. Dizia o magnífico líder da “comunicação escrita” que a autoridade (no colégio Welton) decorria do «equilíbrio entre a existência de normas conhecidas e a percepção de que cumpri-las ajudava a obter melhores resultados». Nem mais! Aqui está o segredo do sucesso. Nós, que estivemos convencidos durante tantos anos de que o problema resultava, precisamente, da dificuldade em estabelecer uma relação entre a disciplina (o custo) e a obtenção de resultados (o benefício) - sobretudo porque estes resultados têm um valor de atracção muito diverso consoante a proveniência socio-cultural dos alunos -, ficamos agora a saber que a receita é simples e barata: «honra» e «excelência»! Que é como quem diz, disfarçadamente: o problema é do multiculturalismo e da relatividade; toca a voltar aos métodos do «estado novo»: castigo aos rebeldes; recompensa aos fiéis.

O senhor director ilustra ainda o panorama geral do ensino. A «honra» e a «excelência» não são apreciadas nas nossas escolas. «O que nelas está a suceder não é, ao contrário do que se quer fazer crer, uma consequência da massificação do ensino: é uma consequência de termos um sistema público altamente centralizado, que desresponsabiliza (quando não humilha) os seus agentes e que, ao negar aos pais o real direito à liberdade de ensino, também os afasta da participação nas comunidades escolares». E nós, passivamente achando que isto era um problema muito mais complexo e vasto, ficamos a saber - num relance e com uma brilhante mas sapiente explicação - que tudo se deve à escassa liberdade de aprender e ensinar e ao centralismo jacobino, napoleónico, hitleriano, soviético, cubano, da escola pública.


Acresce a isto que, pelo mesmo jornal Público, somos informados acerca dos oito mil professores que, em Inglaterra, passaram a ter que lidar com problema muito graves de disciplina (o aumento da proporção de professores a ter incidentes - de tipo telemóvel no lusitano Carolina Michaëlis mas desta feita, no berço do liberalismo, com armas de fogo - subiu de 0,5% em 2001 para 1,9% em 2008). Claro que, segundo o exímio raciocínio do ilustre director, isto também se deve à falta de liberdade de aprender e ensinar (uma vez que, em Inglaterra, a Educação é completamente centralizada por um portugó-jacobino Ministério de Educação). Por sua vez, os incidentes com drogas nas escolas inglesas (pátria da liberdade e da democracia liberal) duplicaram no espaço de sete anos (1% para 2,2%, segundo o jornal Público). Razões? Falta de liberdade de aprender e ensinar, pois o poderoso Ministério da Educação da República Portuguesa (ó repugnante denominação, «ó inclemência, ó piedade», dizia o pai tirano) está a lançar raízes sobre o execelente e disciplinado sistema de ensino britânico, reproduzindo selvaticamente nas charnecas inglesas os protótipos do “professor Keating” e manietando - com “simpáticos” manuais de pedagia escritos em “eduquês” de Portugal - as saudáveis práticas de honra e excelência da velha Albion. Da mesma forma, os alunos que nos EUA entram nas escolas e universidades, armados com metrelhadoras, granadas, lança-chamas, e desatam a fazer perguntas pela «excelência», pela «honra» e pela «tradição» dos colegas e professores, estão também oprimidos por esta jacobina e “simpática” pedagogia do bom selvagem, implorando - justamente - por um genuína liberdade de aprender e ensinar.

Numa palavra, de que espera a República para se transformar numa ode à «honra, excelência, disciplina e tradição» nomeando José Manuel Fernandes o “Czar” da Educação?


PS. Alguém podia explicar ao senhor director que o filme pretende justamente desmontar o tipo de raciocínio inócuo que José Manuel Fernandes explana no seu editorial. A «honra», «disciplina», «tradição» e «excelência» são, para o Professor Keating, valores acépticos (cabendo neles todo o tipo de infecção). Quando cita o poema de Whitman, invocandoAbraham Lincoln com a expressão «Oh, Captain, my captain», convoca uma «honra», uma «excelência», uma «discilina» e uma «tradição» que não são, necessariamente, as mesmas do colégio. Keating centra o ensino da poesia em Whitman sublinhando a imagem dos EUA como poema (onde a força advém de uma diversidade não tribalizada) não abdicando de comunicar a sua concepção de tradição (baseada nos valores da república americana - liberdade, igualdade e fraternidade - e na sua consequente teoria democrática).

Existe, é certo, um problema inerente à escola pública. Mas não o que todos apregoam, nestes últimos dias. O problema da escola pública é colocar a atenção no saber e não na formação da “pessoa”. É preocupar-se com a República (com o todo) e não com a parte, é sublinhar a integração e não a tribo. Todos sabemos como são precisas bandeiras: o Benfica, Nossa Senhora, Che Guevara, qualquer coisa que nos salve do pensamento. O Professor Keating propunha o contrário. Propunha que cada um pensasse e construísse a sua tradição, a sua honra, a sua excelência, a sua própria disciplina no diálogo com a tradição democrática e republicana, não no diálogo com a tradição religiosa e conservadora. Por muito que custe a entender, este é, em grande medida, o conflito que hoje retorna à espuma dos dias. A educação pública implica lutar contra fortíssimos sectores sociais? Claro, toda a política, mesmo em educação, é um permanente conflito, por isso estrebucham agora os derrotados em 1974, depois de décadas de silêncio perante o longo período de vigência da «honra, tradição, excelência e disciplina do estado novo». A educação para a liberdade comporta riscos de indisciplina? Claro. Por isso o professor Keantig foi expulso.

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