terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Fariseus e Doutores da Lei: o regresso

O caro leitor terá reparado que a polémica em torno do não discurso do Papa causou alguma turbulência nas sempre impassíveis águas do nosso quotidiano. A agitação universitária foi lestamente aplacada pela indignação. No Domingo os jornais multiplicavam a boa nova. No Vaticano, milhares de pessoas apoiavam Bento XVI. O Correio da Manhã dava o mote sob um título sugestivo, «Contra “censura” na Universidade». Não restavam dúvidas que dezenas de milhar de estudantes, políticos e cidadãos anónimos se tinham concentrado junto do Papa numa demonstração de solidariedade. Parece que o Papa, radiante e eufórico, naquele mesmo rosto alienado que lhe vimos à janela de S. Pedro, no dia da eleição, encorajou os “queridos universitários a respeitar sempre as opiniões dos outros e a procurar a verdade e a rectidão”. Aceitamos o desafio. Nesse sentido, respeitamos todas as opiniões (tanto a dos maçaricos-de-bico-direito como a do senhor Professor Marcelo). Quanto à verdade, à rectidão, e à consistência intelectual, resolvemos percorrer as páginas desse hino à liberdade de opinião, e de expressão, que é o Catecismo da Igreja Católica.


Na abertura desse magno texto, a Constituição Apostólica Fidei Depositum, assinada por João Paulo II, recorda que em 1986 foi confiada a supervisão de um novo catecismo a uma Comissão “presidida pelo senhor Cardeal Joseph Ratzinger”. Essa comissão tinha como missão “vigiar o desenvolvimento dos trabalhos”. Cá está mais um belo verbo (vigiar) que dignifica a tradição do pensameno livre preconizada pelo cardeal Ratzinger
A Comissão, ao vigiar o desenvolvimento dos trabalhos e a redacção, devia ter em conta conta as “explicitações da doutrina que, no decurso dos tempos, o Espírito Santo sugeriu à Igreja”. Ora aí está mais um consistente princípio intelectual, passível de verificação e discussão alargada. A “sugestão do Espírito Santo” tem aberto horizontes na explicação do homem, na libertação dos corpos, na melhoria das condições de vida das populações, no caminho da democracia, no desenvolvimento económico, no enraízamento da ética, no controlo da bola de Berlim, no aumento das diversões na feira popular, etc…

De qualquer forma, ao percorrermos as páginas do catecismo encontramos verdadeiras pérolas da consistência intelectual, da reflexão metódica, do pensamento estruturado, passíveis de crítica científica e de um verdadeiro manjar para a discussão universitária.

A título de exemplo vejamos o Parágrafo 390 em que se explana todo o profundo significado antropológico da Queda. Esse relato mítico, quase da mesma ordem do calcanhar de Madjer, interpreta com grande sapienza Gn, 3. Nessas sagradas linhas surge “uma linguagem feita de imagens, mas que “afirma um acontecimento primordial", um facto que "ocorreu no início da história do homem”.

“A Revelação dá-nos a certeza de fé de que toda a história humana está marcada pelo pecado original cometido livremente por nossos primeiros pais”. O acerto com que é fundamentada esta conclusão, a erudição das provas, a sabedoria das intuições, a solidez do argumentário é de fazer corar um Athusser, ou mesmo um Hegel.

Continuando a fértil leitura surge por exemplo que na opção de desobediência dos “nossos primeiros pais há uma voz sedutora que se opõe a Deus e que, por inveja, os faz cair na morte”. Só as galerias de conhecimento que se abrem, perante a nossa ignorância do processo de hominização, nesta metáfora dos “nossos primeiros pais”, justificaria por si só um triplo doutoramento honoris causa (Harvard-Oxford-Sorbonne) a Bento XVI, como representante do “livre pensamento e consistência intelecutal” do magistério.

Há mais. Se quisermos discorrer sobre a matéria angélica é todo um exposição clara e ambiciosa. A "queda" consistiu também na “opção livre dos espíritos criados, que rejeitaram radical e irrevogavelmente Deus e o seu Reino”. Temos um reflexo desta rebelião nas palavras do Tentador ditas aos nossos primeiros pais: "E vós sereis como deuses" (Gn 3,5). O Diabo é "o pecador desde o princípio" (1Jo 3,8), "pai da mentira" (Jo 8,44).

Mas não se pense que isto é um defeito de fabrico. Claro que não, em nome da sustentação do insustentável, perdão, em nome da consistência intelectual, foi “o caráter irrevogável da sua opção, e não uma deficiência da infinita misericórdia divina”, que fez com que o pecado dos anjos não possa ser perdoado.

Todavia, não há razão para preocupações: “o poder de Satanás não é infinito. Ele não passa de uma criatura, poderosa pelo facto de ser puro espírito (…) Embora Satanás actue no mundo por ódio contra Deus e o seu Reino em Jesus Cristo (…) esta acção é permitida pela Divina Providência, que com vigor e doçura dirige a história do homem e do mundo. A permissão divina da atividade diabólica é um grande mistério, mas "nós sabemos que Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o amam" (Rm 8,28).

Depois desta leitura proficiente, resta-me pedir desculpa por ter duvidado da consistência intelectual de Bento XVI e congratular-me pela rápida reposição da verdade. Farei penitência na cinza e rasgarei as vestes. Aproveito para censurar fortemente, reprovando a sua atitude desrespeitadora das opiniões, os professores e estudantes da Universidade de Roma. Iníquos, na forma como insultaram a dignidade pontifícia e a multidão de Católicos, esses universitários teimam em não perceber que a agitação que provocam, a sua luta contra a tradição, o seu desrespeito pelas veneráveis autoridades da fé, numa palavra, o seu reino, não pertence a este mundo.

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