terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Confuso, céptico, angustiado



Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better
Samuel Beckett


Nada como dois portugueses cosmopolitas para logo desabrochar em mim uma enorme e provinciana vergonha de ser português. Na semana passada o doutor Mário Soares e a doutora Clara Ferreira Alves passearam por sítios vários empoleirados em conversas sem qualquer nexo, sem preparação, em jeito de opinião avulsa. Será que uma carreira política fulgurante (se é que o serviço político pode ser casado com o fulgor) justifica opinar sobre tudo sem qualquer ideia prévia do que se vai dizer?
O doutor Soares deambula por inúmeras matérias, surfando a onda do acaso com a prancha do seu pensamento, uma peça oleada, bem constituída, composta por madeiras de várias proveniências (a social democracia alemã, um cabelo de Marx, as obras completas de Miguel Torga resumidas para estudantes de direito, Camus na diagonal, Victor Hugo para crianças, Proudhon em 5 minutos, um manual de retórica dos anos vinte e uma gramática da liderança com promessa de resultados a curto prazo). Contudo, convém reconhecer que o doutor Soares é uma agradável presença. Uma espécie de Professor Cavaco Silva sem economia mas com educação e cultura. Por justiça deve também reconhecer-se que a doutora Ferreira Alves diz coisas inteligentes, embora às vezes se passem alguns segundos de intervalo.
O diálogo entre os dois monstros da cultura portuguesa é entremeado com alguns exercícios de gosto. O doutor Soares refere, entre várias outras sensibilidades, a sua antipatia por Beckett: um autor “confuso, céptico, angustiado”. Com efeito, caro leitor, com efeito, que para angústia, cepticismo e confusão já bastam os diálogos entre o doutor Soares e a doutora Clara Ferreira Alves.

O programa seguiu escorreito por portos do mediterrâneo, subúrbios de Paris e o cais das descobertas. A dado momento o assunto inevitável. A doutora Ferreira Alves refere a hodierna cultura do fait-divers. O doutor Soares aponta a criminosa televisão. Os dois encolhem os ombros, enquanto continuam o seu passeio. Não lembrou a nenhum dos dois que aquele programa, gravado para a criminosa televisão, onde aliás os dois pontificam com abundância, é, precisamente, um claro exemplo do fait-divers hodierno, neste caso para o segmento dos licenciados. Vejamos um exemplo:

- Quantos livros tem hoje? (perguntava a pluma caprichosa)
- Uns 50 ou 60 000 volumes… (responde grave, hierático e circunspecto o doutor Soares)
- Dá para várias bibliotecas (risos). (interpela novamente a pluma caprichosa em jeito de elogio abasbacado).

Perante este proficiente diálogo somente uma nota solta (a minha sentida homenagem ao doutor Vitorino):
É que a troca de palavras logo correspondeu a uma de várias cosmopolias conversas entre outros dois portugueses proficientes e cosmopolitas. O meu avô, nas longas tardes de verão na cova da beira, enquanto cuidava das laranjeiras e do batatal, perdido num vale poluído pela extracção do minério entre a estrela e o açor, costumava entabular longas conversas (não sobre urbanizações, como é bom de ver) com um amigo moleiro que amanhava uma horta ali perto. Sentados no xisto às vezes lançavam no ar quente da tarde algumas relevantes reflexões:

- Quantas cabras trazes hoje? (perguntava o meu avô afagando com o olhar os múltiplos animais da encosta no momento em que retirava da mala a bucha)
- Aí umas 100 ou 150 peças. (respondia o moleiro com orgulhosa gravidade)
- Dá para vários currais. (sorria em saudação o meu avô, enquanto se debatia com o queijo e os incómodos gumes do xisto)


Alguém devia explicar a estes insólitos produtores televisivos que um programa de televisão pode ser um espaço de tempo bem utilizado. Depois de António Vitorino de Almeida e Bárbara Guimarães passearem desnorteados por algumas capitais europeias, concorrendo entre si na caça à irrelevância vejo emergir na minha mente um projecto de sucesso garantido: Cecília do Carmo e Eusébio pisando os relvados europeus em busca dos mais valiosos momentos futebolísticos do século XX, comentando as vivências particulares, exprimindo os seus desejos e ambiguidades, os seus anseios e as suas expectativas. Caro leitor, deixo-lhe como consolação dos aflitos uma velha reflexão de Marx, também aplicável à história da programação televisiva – a história repete-se, primeiro como tragédia e depois como farsa.

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