quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Somos ó nobre uma geração perdida

Talvez na praia da consolação, talvez numa plastificada esplanada de uma avenida do Cacém, Ruy Belo escreveu estas palavras:

“Que o medo não te tolha a tua mão
Nenhuma ocasião vale o temor
Ergue a cabeça dignamente irmão
Falo-te em nome seja de quem for

No princípio de tudo o coração
Como o fogo alastrava em redor
Uma nuvem qualquer toldou então
Céus de canção promessa e amor

Mas tudo é apenas o que é
levanta-te do chão põe-te de pé
Lembro-te apenas o que te esqueceu

Não temas porque tudo recomeça
Nada se perde por mais que aconteça
Uma vez que já tudo se perdeu”

Como versos não dão de comer (dizia o douto Medina Carreira de veias inchadas no palanque do candiado presidencial Silva) tudo por aqui parece por vezes ir rodando em infinita alegria, como dejectos no lavatório à procura da saída.

A todos quantos sobre a terra cobrem com seu hálito os serões gelados de neve ou com as suas mãos os prados salpicados de pétalas, advém a inútil morte de filhos, pais, mães, avós ou irmãos – morte que sempre vem, inadvertida como a tempestade ou como um cruzeiro de súbito no tejo numa manhã de sol – após um leve feixe de anos, muitas vezes mal observados, precariamente tocados pelos nossos dedos, vistos com pressa, de um barco que atravessa o rio do exílio, ou no autocarro a caminho da aldeia da infância.

Talvez amanhã algum de nós se surpreenda perto de ser atropelado, sem tempo para dizer adeus tardes luminosas no estádio da luz, adeus noites de luar nalgum lugar além do tejo, adeus colecções de cromos dos mundiais, adeus carrinhos da polícia militar, adeus brinquedos enfeitados nas montras do natal, adeus deslumbramentos do cesário, adeus minhas tias retocando o cabelo para a missa, adeus ondulação do trigo sob a chuva, adeus pagelas dos sagrado coração de jesus a enfeitar a sala de jantar, adeus livros de poesia na estantes das bibliotecas públicas, adeus gaivotas descendo sobre o mar, adeus pai acenando à chegada do comboio, adeus figos maduros, chuva de verão, adeus apito do chefe da estação num comboio nocturno, adeus auto-estradas apinhadas de carros a caminho da caparica, adeus aviões no céu em linha recta, adeus lisboa vista do castelo, adeus terreiro da igreja enfeitado com bandeiras, adeus ó barco do barreiro, adeus capelas alvas empoleiradas pelas serras, adeus cabritos saltando no carreiro, adeus ó frio da madrugada quando os homens vão no comboio para o trabalho, talvez eu seja apenas mais uma carta no baralho.

Eu sei, sentimentalismo. Ia mesmo agora escrever um poema em estilo, cheio de metáforas difíceis e originais, rompendo com as formas visíveis da literatura, provocando um tsunami à moda do serapião de walter hugo mãe (belo pseudónimo, estão a ver como é difícil igualar esta precisão de estilo e de sucesso, este empreendorismo de editora e carreira nas letras) como diz o saramago.
Ia mesmo, mesmo, mesmo agora estilhaçar as convensões, num salto mortal poético, vibrar um rude golpe na tradição, inaugurando uma nova época de criação – de escrita criativa, com sucesso, com confiança, um Mourinho da palavra, um poetastro, um poetaço, um lírico explosivo, um jovem talento promissor com diversos livros anunciados em cartaz de corpo inteiro.

Mas sabe, ilustre leitor, passaram aves na minha janela. O Daniel Faria morreu alagado em sangue com a cabeça acidentalmente quebrada na sanita. O Sá de Miranda esteve agora aqui e sussurrou-me que também o Sena abalou prá Califórnia. Cheirava a literatura e ele pirou-se.
O ruy belo, bem, o ruy belo embarcou para bem longe antes que o fizessem professor. O Lobo Antunes perdeu o tino e luta aterrado contra o fim. Eu já não respondo por mim. Mas prometo que tenho projectos de futuro e planos para amanhã. Talvez circule outra vez, se a noite não vier malsã, entre belém e a trafaria de folha no joelho à espera do meu anjo, em luta permanente contra o vento, embalado na canção do cacilheiro, a ver se tenho tempo de chutar os livros borda fora e deixar o sol entrar. As coisas a oxidar, o teu copo, ó sócrates filósofo, por encher. Eu a querer chegar, a poesia empurrar-me para o mar.

Concluindo, apetece dizer que talvez tudo esteja já perdido.

Ou talvez eu me tenha perdido disto tudo.

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