segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Rádio televisão dos Pombos


Entretanto, porque hoje é segunda e não me apetece morrer em contra mão atrapalhando o trânsito, faço a apologia de um certo silêncio típico das manhãs de segunda-feira. Vamos até ao campo ouvir os passarinhos.

A RTP, essa fantástica empresa pública tão hábil a descobrir talentos em casa de colaboradores de longa data, essa instituição anti-húmus, fecundada por uma espécie de colmeia da elite intelectual portuguesa, passava ontem um programa em que o ex-médico-de-família agora designer, e uma ex-sangue-do-meu -sangue (que na verdade daria um bom título para um filme sobre a história da RTP “Sangue do Meu Sangue ou a eterna decadência de escolher pelo sangue”) exerciam uma espécie de luta ideológica entre os que cavam batatas (expressão que não faz sentido, dado que às batatas deve-se fazer tudo menos cavá-las, sob pena de apodrecerem pouco tempo depois) e os que morrem de stress lutando à batatada em Lisboa por uma vida melhor.
 
Mais uma vez, o campo foi retratado como um local idílico, com pessoas naïfs e puras, quase angelicais (apesar dos anjos se estarem a cagar para nós, os mortais) sempre prontas a ajudar o próximo, sobretudo se ele for desconhecido. Não me querendo alongar neste tema, nem querendo arriscar uma classificação das camadas de personalidades que se escondem por detrás das aparências de quem olha apenas para ideias cristalizadas, arrisco dizer que o argumentista da série ou estava bêbado, ou é geográfica e historicamente ignorante (“antropologicamente”, se calhar fica melhor aqui), ou é uma espécie de sanguessuga da RTP, bem longe da magnificência das papas de sarrabulho, não obstante a sua dimensão consanguínea ter tido aqui, certamente, um importante papel. 

O dito argumentista ou vê o campo de uma qualquer janela da sua casa em Lisboa, digital, quem sabe, ou tenta percebê-lo quando passa na autoestrada ou, acredito mais nisto, apenas tenta retratar a sua empregada doméstica. Sangue-do-meu-sangue será, senhor. Sanguessuga, subentende-se na série, é a vida de Lisboa, com o seu cosmopolitismo acelerador do tempo. A cidade está para o diabo como o campo está para os deuses. Ahhhhh (sim, pode ser lido como um grito) romantismo aquecido em micro-ondas da estupidez!!!! (isto faz-me perceber, já agora, aquela letra que diz “dançamos no teu micro-ondas”. Faz-me perceber ainda mais que a letra é uma merda, entenda-se!!!). Até pensei escrever mais sobre isto, confesso. Sobre a ideia de ignorância primária como origem da formação da conceção de campo idílico, da pacífica natureza. Mas o programa não merece mais merda de palavra nenhuma. Vou ouvir La Traviata para descontrair. Faça-se silêncio.

Da formiga dopada à cigarra invertida.

Hoje acordei com espírito de Raúl Brandão: esta merda deveria toda virar húmus, decompor-se, ou até, usando um termo recentemente “seguro”, regenerar-se. Mas depois do banho lá aquietei. Calma, só te irritaste outra vez com a porcaria do(s) jornalista (s) a dizer que 20 graus centigrados e algumas nuvens é “mau tempo”, depois de ouvires dizer durante os últimos 4 meses que 40 graus corresponde à ideia jornalística de “bom tempo”. Isto faz-me lembrar um tio meu, a quem foi dito por alguém cheio de boas intenções, quando fez 83 anos: “bonita idade”. Parado a olhar e quase paralisado por uma qualquer doença, das que os médicos se recusam a diagnosticar depois de certa idade, lá ganhou ele forças e respondeu «bonita idade, o caralho!! Cheguem aos 83 anos e depois vejam!!!!». Assim estou eu hoje: “mau tempo o caralho!!!”. Mau tempo são os 40 graus que trazem as insónias noturnas, os 40 graus que impossibilitam o prazer das caminhadas, que turvam o olhar e, enfim, até porque está na moda, que talvez sejam bons mas é para as cigarras. Mas para mim não, eu que sou uma merda de uma formiga inquieta e ansiosa que precisa de se mexer para não “encigarrar” de vez, ou até “encirrosar”, porque isto só lá vai com álcool.  Mas isto na formação da ideia do que é bom em meteorologia é igual ao resto. Vivó consenso, bem temperado, porra!!!

Mas vamos lá deixar a pornografia, por enquanto. Ah, desculpem, é que www.meteo.pt sempre me pareceu o site com o nome mais pornográfico de sempre. Mas enfim, sou eu que sou provavelmente tarado por estas coisas de nomes das coisas. Para descontrair, vamos pedalar.
 
Andar de bicicleta é para mim uma espécie de casa dos segredos invertida. Invertida não devido a qualquer preferência sexual – se fosse por isso, também não haveria problema – mas porque quando ando de bicicleta, fico com a ilusão do tempo e do espaço moldado à velocidade do pedalar. Penso que todos percebem do que falo, mas admito que talvez seja só uma sensação própria.
E este tempo degenerado, nas manhãs da rádio, entre o húmus que se forma nestes dias de Outono – Raúl Brandão continua a ser mais actual e bem mais esquecido do que qualquer escritor que pragmatize os expositores da FNAC – vamos lá fazer um estúpido exercício de analogia entre o andar de bicicleta e o desejo constante de dirigir a economia.
 
E vamos fazer isto à inglesa, tentando dar um tom de que irei falar de qualquer coisa séria, perguntando primeiro. Não é verdade que através do crédito, o endividamento público e privado foi excessivo nos últimos anos? Não é verdade que mesmo na cabeça do mais Keynesiano pensador, o que foi feito em Portugal desde a entrada na agora União Europeia nada tem a ver com investimento? Não é verdade que todos ou quase todos nos perguntávamos “onde é que caralho o nosso vizinho vai buscar tanto dinheiro?” Não é verdade que todos, os que tentam pensar, os que andamos de bicicleta, sabíamos que a coisa ia mais cedo ou mais tarde rebentar? A lista de perguntas é quase infinita, e nem vale a pena continuar.~
 
Vale sim, a pena, a verdade. A verdade, a verdade, é que nem se sabe o que é essa merda da verdade. Nem eu. Por isso só pergunto. Mas faço mais. Sugiro uma imagem. Lembram-se quando estavam a apreender a andar de bicicleta? Toda a gente letrada na coisa vos dizia "é só sentar o cú no selim e pedalar. Não é para pensar sobre isso, senão vais cair”. E lá seguíamos o conselho, pondo o veículo em movimento. E já estava. O vento, a luz, o tempo, o espaço, tudo moldado. Tudo, menos os travões. Sabíamos que não podíamos apertar o travão da frente. Mas também sabíamos que o espaço mental desenhado como seguro estava a terminar. Era necessário travar. Sabíamos aí que a queda estava próxima, nesta primeira vez. Se parássemos cairíamos; se travássemos cairíamos; mais valia seguir, não travar senão no fim. E caíamos.
 
Parece-me, mesmo que a ideia seja idiota, que o momento económico actual é muito parecido com a perda de inocência ciclística. Montamos uma certa bicicleta desenhada para andar a grande velocidade, uma bicicleta grande, difícil de parar. Sabemos que temos de continuar a pedalar senão vamos cair, mas sabemos que temos de travar para não cair no fim do espaço mental desenhado para tal; a questão que se coloca não é saber como continuamos a pedalar infinitamente sem cair; a pergunta que se coloca é se conseguimos cair e voltar a pedalar pouco tempo depois.
 
Convosco não sei, mas face à previsão de mau tempo, eu prefiro pedalar, moldar o espaço e escolher se o meu tempo é realmente assim tão mau. Tenham um bom dia.

sábado, 22 de setembro de 2012

Na primeira e a lutar para não descer, já basta o Sporting

O Filipe Vicente pode eventualmente ter acertado no retrato dos manifestantes de ontem, mas vamos entrar pelos estereótipos adentro: então porque não estender o exercício aos que estavam cercados no palácio de Belém?

Tenho pena que nenhum dos membros do Conselho de Estado tivesse tido os tomates de se dirigir à multidão e escutá-la. Sim, o mais provável era a meio caminho levar com um cocktail molotov nos cornos, mas lá está, estamos de novo a cair no estereótipo. Nem a vasta maioria do povo na manif pretende ir às fuças aos políticos, nem todos os conselheiros são homens, e logo, à partida, não possuem tomates.

Seria um belissímo exercício de cidadania, comparável à moça que abraçou o polícia no sábado passado, se os conselheiros de estado se dignassem a dialogar com o povo presente na manif. Não sairiam dalí nenhumas decisões, nem o país ia mudar, nem o Sporting passaria a jogar melhor. Mas permitiria ultrapassar os estereótipos, o que para primeiro passo, não estaria mal.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Agora é que ela está a bater

Eu tinha um texto longo, e lindo, sobretudo lindo, todo preparado sobre a crise, a TSU, e a estranha correlação positiva entre os resultados do Sporting e do Real.

Mas hoje fiquei a saber de mais um amigo que levou com a crise em cima. Não estou a falar de ter perdido o emprego, embora tenha sido isso que aconteceu. Sem emprego, e com alternativas que nem sequer pagam a sandocha do almoço, instalou-se o desespero. E uma raiva crescente contra tudo e todos, incluíndo ele próprio.

Infelizmente, não é o primeiro no meu círculo de amigos. Há já algum tempo que venho a assistir a este drama, pessoas que de um momento para o outro se vêem sem nada. Trabalho, esperança, vida. Passado pouco tempo, entra o desespero e relações pessoais que acreditávamos estarem sólidas esboroam-se, tal qual arribas algarvias.

Mais do que a falta de emprego, estou preocupado com a falta de dignidade que vou sentindo e vendo. Na altura em que a rede de relações pessoais é mais necessária, aquilo em que nós, tugas, supostamente somos bons, só vejo cada um pelo seu prato de lentilhas.

É altura dos cínicos, como eu, confortavelmente instalados na sua concha, como eu, irem à luta pelos outros. Como e onde, não sei. Ainda.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

A internet, esse universo paralelo ou como estragar um momento


Ó Adriana ,tu querias que eu te enfiasse o meu "bastão",mas agora estou de serviço...

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Querem falar de rumo, falem com o Sá Pinto

"Até as reticências tem mais pontos que o Sporting", encontrado há pouco na caixa de comentários de um site qualquer.

Eu não quero a minha vida de volta!!!!

Confesso que não fui à manifestação “Que se lixe a troika. Queremos a nossa vida de volta”. Fiquei em casa, fui às compras, bebi umas minis num café da minha rua, mandei uns sms a comentar o pouco da manifestação que vi na tv e fui correr ao Estádio Universitário.
Na verdade, eu não quero a minha vida de volta. E não percebo como muitos dos manifestantes entrevistados possam querer a sua vida de volta. Mas exercito uma espécie de prós-e-contras, sem berros e jornalistas que subiram na horizontal na cama de qualquer diretor da região norte de um serviço público apimbalhado que agora, perdido o sufixo no nome, grita a sua razão com a (in)tenção de que o seu barulho funda em consenso a opinião de outros. De facto, democratizar em Portugal não é mais do que um esforço contínuo de falar a uma só voz, um pulsar permanente para cristianizar o espaço público. Mas voltarei noutro post a esta ideia. Centremos a atenção no que é importante: no uníssono da manifestação, quem quer a sua vida de volta? O que perdeu o professor que gesticula? Uma ideia de ensino democratizante, na qual a escola servia de buril a desigualdades plasmáticas, contribuindo os professores decisivamente para que se extinga a reprodução de hierarquias bolorentas mas vivas, como qualquer queijo mal cheiroso? Era assim o ensino há um ano?
Não, eu não quero a minha vida de volta. Mas a empregada pública que fala, quer. Mas o que será que quer? Será a capacidade para reproduzir nos seus filhos a razão consanguínea do seu sucesso profissional? Quer as suas férias nas Caraíbas? Penso que não é razão para tanto desconforto. A troika certamente não interfere nos concursos públicos e na sua tradicional função: colocar em bons empregos alguém já conhecido do diretor que entrou na fachada de contratado até que um concurso fosse ficticiamente realizado. Calma, as cunhas não vão acabar.
Mas nesta altura a manifestação congestionou. Não deixa de ser curioso que a própria manifestação tenha produzido a melhor metáfora de si mesma. Um grupo de pessoas que não quer ir por um lado, mas que ficou sem saber onde ir, nem sequer conseguiu chegar ao local pretendido. E que mesmo chegando, nada tinha para dizer ou fazer, para além de um desfile de insultos ao bode expiatório habitual – a sério? Mas ainda ninguém percebeu que por muito estimulante que seja derrubar governos, não é fácil ter a vida de volta, absorvendo o espírito da manifestação? -  Talvez porque, metáfora das metáforas, a Praça de Espanha não seja verdadeiramente uma praça; talvez porque nos últimos 200 anos, pelo menos, a (des)urbanização do país não tenha pensado nesse antigo símbolo de espaço público. Talvez porque nem haja espaço público em Portugal, e na nova praça, o Facebook, o consenso surja em forma de “shares” e “likes” e muito pouco pensamento próprio. Isso compromete, e nós gostamos mais disto como se de uma casa de segredos se tratasse!!!  O melhor, da próxima vez, é marcar a manifestação para um local que todos reconheçamos como espaço público, um qualquer espaço comercial. Para o El Corte Inglês. Porque não?

Mas não é de espaço público que se trata, trata-se de ter a vida de volta. Que se foda isto!! Pensei. E fui às compras, mas na mercearia. É que isto de ajuntamentos e de consensos faz-me fugir de multidões. Lembram-me sempre Fátima, a praia de Armação de Pera, os corredores do Colombo ou a audiência da Casa dos Segredos. Tudo é consenso, mas pouco é espaço público. Do dia, ficaram as minis.

Sic transit gloria mundi

A semana europeia da mobilidade começou hoje. Num esforço para educar a população a utilizar os transportes públicos, a câmara faz-me andar mais 10 minutos para apanhar o autocarro.
 

domingo, 16 de setembro de 2012

Rumo?

A manifestação deste Sábado permitiu à malta mostrar, novamente, o seu desagrado com o governo, a troika e o mundo em geral, excepto o Sá Pinto que, por enquanto, está a salvo.

A manifestação não foi capaz de transformar o desassossego em algo útil e bom, apenas fermentou mais o mal-estar que se vai sentindo. Como todas as manifestações, diga-se; ou a malta já esqueceu a manif dos "deolindas" aqui há um par de anos?

Das entrevistas que vi, o povo sente que o rumo está errado, mas confessa-se baralhado perante a pergunta sobre qual será o rumo correcto. E nada mais angustiante do que sabermos estar a ser levados para onde não conseguimos vislumbrar. Isto via-se, e sentia-se, nas caras de quem andou na manif deste Sábado.  Mais cedo ou mais tarde, a brincadeira acaba nos moldes do anterior regime.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Marilyn ou Joyce: a literatura como máquina de reprodução na era dos computadores - um comentário a Tolan

 
Em qualquer caso, quando somos mais cultos temos de nos esforçar para encontrar o divertido e a quantidade de coisas aborrecidas aumenta exponencialmente, o que também é uma maldição.



Tolan, Quarta-feira, 12 de Setembro de 2012


Porque me estou a cagar para a literatura, preocupando-me apenas com os livros. 
José Mário Bronco, 12 de Setembro de 2012 23:43

 
Finalmente, temos aqui um problema, sobretudo se pensarmos que tenho quinze minutos para sair de casa, e devo responder a isto, uma vez que as questões de literatura devem ser tratadas com urgência, daí a importância das listas, e mesmo sendo eu beneficiário de muito mais tempo do que tu, para ler e pensar, embora tu ganhes mais e provavelmente tenhas apalpado maior número de mamas – o que é inteiramente justo, diga-se – sempre há imprevistos e dificuldades com que não esperávamos, mesmo para um mente ágil e um corpo bem treinado como o meu.
 Começaria por fazer uma pequena homenagem à geração de bêbados e falhados norte-americanos que invocas, invertendo o argumento das mamas, e recorrendo ao sensacionalismo que foi o emblema de toda uma geração com os mecanismos sensoriais avariados: foi precisamente por não terem apalpados as mamas suficientes – ou por não terem julgado suficientes aquelas que apalparam – que escritores como Kerouac acabaram a viver com a mãe. Antes de nos afundarmos no pântano freudiano, convém dar uma pequena volta pela história da naturalização do desejo.
Julgo que a origem da literatura culta e profundamente educada não deve colocar-se em oposição à procura de mamas, pelo menos de forma radical; penso mesmo que a literatura nasce quando nos fartamos de apalpar umas e passamos – ou julgamos que passamos – a querer apalpar outras, e é então necessário colorir a mudança com uma boa narrativa emocional, para bater em retirada com o mínimo de segurança; ou quando temos que justificar a longa permanência perto de mamas amadas e queridas, ou quando não tivemos o privilégio de estar perto de mamas, ou pelo menos de algo parecido, e é necessário uma prodigiosa pirueta de autoilusão para nos despedirmos do mundo em paz. No meu caso, posso dizer em confissão que enquanto fui virgem pouco li, e foi quando desabou sobre mim o misterioso mundo do amor que a literatura surgiu em toda a sua plenitude terapêutica.
Entendamo-nos: a qualificação da cultura como maldição é quase tão antiga como a história e, longe de ser uma maldição, é apenas o resultado de um escritor poderoso, eruditíssimo e incrivelmente sedutor, chamado Jean-Jacques Rosseau. Preferiria que me caíssem todos os dentes da boca antes de pronunciar uma palavra que fosse contra esse meu mais querido mestre, mas a ideia da pulsão adolescente, como critério de avaliação da cultura, é um caminho perigoso que deu oportunidade a um sem número de imbecis, como Nuno Crato e Maria Filomena Mónica, para treslerem o problema da libertação da vida. A pulsão instintiva, como qualquer amador cientista sabe, é dos temas mais difíceis da psicologia do desenvolvimento, e apenas o poder retórico de Rosseau, um homem dilacerado pela incompreensão, foi capaz de transformar um estado adaptativo particular do desenvolvimento num sentido global para toda as etapas da vida, o que tem mantido o Ocidente debaixo de uma chuva de problemas.
 
As pulsões servem propósitos de cultura, e a cultura condiciona infinitamente o leque de pulsões e o seu significado. Até em William Wordsworth, muito bem lido por Elia Kazan, está já a incrível solução de que a vitória sobre a morte reside na recusa do envelhecimento. Mas essa psicologia do desenvolvimento, tão maldita como qualquer outra, nada diz sobre o grandioso artifício literário. É certo que tanto Kerouac como Salinger, como sobretudo Capote, sabiam que a questão se joga neste sagrado confronto, onde começa o terror e se acaba toda a esperança, para utilizar uma expressão de Dante: «não foi para morrer que nós nascemos», disse também o único crítico literário que Portugal produziu depois de Manuel de Faria e Sousa, no século XVII, e é nesta luta contra a morte que devemos procurar o critério de análise literária que pode enfim clarificar o sentido do que temos andado aqui a fazer, ganhando, e não perdendo tempo.
O triunfo da adolescência, e a vergonha de uma cultura literária densa, que nos caracteriza como civilização, tem qualquer coisa de profundamente imaturo: tal como o adolescente que sua em pesadelo com a hipótese dos pais e avós aparecerem na festa de liceu, vestidos com fazendas e xadrez, carregando a merenda, o vinho, o queijo e o pão, também nós suamos perante os antepassados que parecem enviados de um  mundo rural, lento e atrasado; mas cuidado, porque uma velhinha arisca pode ter mais a ensinar-nos do que uma adolescente apolínea de dentes brancos e pernas ágeis – Sidharta que o diga -  e os americanos, totalmente forjados na revolução setecentista do consumo do chá, do tabaco e do açucar - caiem que nem patinhos nas emoções mais fáceis, e julgando-se portadores do elixir da juventude, coitados, já vão a caminho da mumificação, julgando-se coroados para sempre pelas doces mãos das raparigas com grinaldas de flores: se queremos ser surpreendidos, abramos a porta ao inesperado, e recebamos os familiares da província – o passado – com um sorriso franco. Não nos envergonhemos dos que nos precederam só porque queremos começar de novo, só porque queremos esquecer depressa, talvez para recuperar a emoção de não saber o que vem a seguir: porque nós já sabemos o que vem a seguir, já que isso nos foi dito pelo menos um milhão de vezes, e das mais variadas formas: nascemos, debatemo-nos e morremos, e é só. Há uma tradição que vê a literatura como a arte de ensinar a morrer; eu vejo-a como a arte de recusar a morte; e atenção, porque vamos agora pisar terrenos perigosos. É favor colocar o capacete.
 A tecnologia, e à cabeça de toda a tecnologia a linguagem, constitui a extraordinária invenção que encontrámos para dominar o espaço e o tempo (os dois grandes guardiães dos portões da morte) e tal como um avião, ou um sistema informático, o mérito de um livro está na sua capacidade de vencer espaço e tempo: não precisamos de mais do que a Matemática do 9º ano para seguir caminho. 
Percebo a tua comparação entre os russos oitocentistas e os norte-americanos novecentistas mas essa analogia foi ferida por um desconhecimento parcial da história literária de cada uma das obras produzidas nesses contextos. A metáfora das guitarras elétricas foi bem esgalhada – é isso a literatura – mas relembro que não há grande artista sem domínio do solfejo, o que pode é existir um artista que não tenha frequentado a escola, o que é uma outra coisa e bem diferente. Gogol (veja-se como no Retrato põe no olhar de uma personagem a crítica da arte da criança autodidacta, impotente e decrépita, apreciada por «máquinas primitivas e não por homens») conhecia profundamente a história e a cultura da Europa, e Tchekov era um médico com uma erudição notável e Tolstoi pouco mais fez na vida do que ler filosofia; ao contrário dos norte-americanos que largaram os estudos confiando nas virtudes adolescentes da criatividade. Bem pelo contrário, os russos estavam mergulhados de corpo inteiro em Shakespeare, em Racine, nas literaturas clássicas, em problemas culturais profundos. Basta medirmos o cuidado com que as metáforas são trabalhadas nos russos e compararmos com aquela tentativa infeliz e primária de reproduzir o dialeto, os defeitos da linguagem que carateriza o folclore literário norte-americano depois de Melville.
 
Todos os grandes autores perceberam que as metáforas são um mecanismo para injetar nos textos o seu próprio cérebro, dotando o discurso de dispositivos contra o envelhecimento; a marca de roupa, de cigarros ou de carros, os nomes de políticos e artistas que ninguém conhecerá, as sensações conjunturais, os nomes de ruas onde o leitor nunca colocará o pé, tudo isso não passa de peso que nos puxa para o esquecimento, ao contrário do que julgam os escritores que se deixam capturar na insidiosa armadilha do sucesso passageiro – que é o mais belo e aterrador canto de sereia que produz o mundo na seu rodopiar infernal. O acontecimento, num futuro relativamente próximo, é talvez irrelevante, e ficará só o equilíbrio tenso dos opostos das mais belas metáforas. Mesmo Shakespeare, a quem agradavam os desfechos inesperados, respigou as suas histórias – relativamente simples na estrutura – nos livros mais populares do seu tempo. Aquele público de prostitutas e comerciantes sabia o desfecho de cor, mas ficava hipnotizado com a suspensão do tempo e do espaço que a linguagem produz.
 
A religião usurpou durante muito tempo o monopólio da imortalidade, transformando esse endurecimento perante a morte, que era o estoicismo, numa lamúria de seminaristas adolescentes problemáticos. S. Agostinho, que resfolegou entre mamas, e ancas e pernas, sabia que a única forma de convencer os humanos a embarcar na imortalidade, recusando os prazeres do corpo, era transformando o estoicismo numa religião de padres alienados por uma promessa esconsa de liberdade hologramática. Recusando os padres, os beat-niks mergulharam de olhos fechados no vício e, portanto, no precipício. Só há uma maneira de voltar atrás, sem recuperar a água suja da religião: a grande literatura, e depois dela a linguagem tecnológica, têm sido a única forma consistente de derrotar o medo e a religião, permitindo que construamos com as nossas próprias mãos a imortalidade. Quando Ovídio parecia condenado a desaparecer, 1500 anos depois, explode subitamente na pena de Shakespeare e revive, numa rede infinita de conexões. Estamos na pré-história de um novo e glorioso mundo, onde a tecnologia já esteve mais de longe da possibilidade de reproduzir o cérebro humano.
Deus sabe o que eu tenho sofrido – e feito sofrer – às mãos das mulheres, e a última coisa que gostaria de fazer era deixar ligada a minha pobre existência a uma desvalorização do desejo. Mas a reprodução sexual que tem marcado muito do que tem sido a vida da nossa mente, não é o único, nem talvez o mais eficiente mecanismo reprodutor que existe na natureza, como qualquer biólogo amador sabe. O sexo – e a procura de mamas – é uma atividade encantadora e prodigiosa, mas ler não o é menos, e tenho dúvidas sobre qual caracterize melhor a humanidade. Os Historiadores adoram politizar mas não vêm um palmo à frente do nariz: se a pílula e o preservativo libertaram a mulher, libertaram ainda mais o homem que viu reduzidos os filhos – como potenciais inimigos na partilha da atenção e da propriedade, como bem viu o em tantas outras coisas visionário, Leonardo da Vinci. Ao desligar o sexo da reprodução, a humanidade transformou o intercurso sexual, para utilizar o teu anglicismo, num instrumento de cultura que agora terá que lutar na arena com outros instrumentos de cultura, o que trará certamente algum desgaste do sexo como mecanismo instintivo no nosso equipamento reprodutor. Mas mantenham a calma, estas coisas demoram pelo menos muitos milhares de anos. Além do mais, não há problema, pois já temos uma arma: as grandes linguagens e a sua virtuosa utilização, e por isso vamos continuar a reproduzirmo-nos e a ter prazer de muitas outras formas.
Gostaria de terminar com uma invocação da maldição (julgo ter demonstrado que não é uma maldição) voraz do erudito radical. A Ilíada, talvez o mais belo livro alguma vez escrito, baseia-se numa escultura voraz da inteligência emocional, numa incrivelmente bela homenagem à nossa técnica linguística, e sobre esse pano de fundo – que é uma longa tapeçaria de associações que trazem vivos até nós, os olhos cansados e cegos de Homero - evolui um drama militar: apesar de cercados, os troianos merecem que se conte a sua história, e mesmo perante a vitória dos Gregos, Homero sabe que há qualquer coisa de grandioso na queda das muralhas de Troia. No escudo de Aquiles, que contribuirá para a morte de Heitor no canto XXII, está sintetizada a poesia e a tecnologia, todos os elementos da terra, o mar de seda e pétalas azuis, o céu pontilhado de fogo, a alegria dos casamentos entre noivos, e o antagonismo das comunidades humanas, as muralhas cercadas de uma cidade, e toda a desumanidade dos pastores, de flauta e tambor, chacinados pelos soldados a caminho do combate. É que Homero sabia que, independentemente da justiça das suas ações, todos ganhariam vida, e para sempre, por meio da sua mente, transportados por metáforas, pelo ritmo dos sucessos, pela elegância emocional das ações, e igualados nessa magnífica tapeçaria, Homero via o seu pobre mundo orgânico desaparecer com a sua dignificação dos vencidos e a humilhação dos poderosos, a destruição daquele que terá sido o mecanismo típico da evolução da nossa espécie. Homero deve ter visto, na escuridão da seu cérebro precocemente anoitecido, as cidades a arder em revoltas, os escravos em marcha, os escrivães e secretários cansados de humilhações a congeminar planos de revolta e mecanismos económicos, o disparar da vida dos mais fracos em todas as direções do planeta, o trabalhar dessa máquina que nos libertará do espaço e do tempo. Tal como diz Homero, «para que no futuro/ sejamos tema de canto para os homens ainda por nascer».
Mas não ainda, pois passou uma hora e agora, desgraçadamente, terei que correr para o comboio.

 

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Avô

Hoje, numa cama de um hospital de subúrbio, fechou os olhos.

Tchekov talvez seja melhor que Gogol, estou com dúvidas

Enquanto trincava uma finíssima fatia de queijo da ilha, meticulosamente cortada por um faca de serrilha e colocada lentamente entre duas fatias esquálidas de pão alentejano, eis que o emi-ciclo da República surgiu no ecrã mágico em todo o seu explendor, colorido pela franja esparsa do senhor parolo Ministro de Estado (avé) e das Finanças, Vítor Oliveira Salazar Gaspar. Portugal está agarrada pelos colhões, e de joelhos, o que talvez seja uma impossibilidade anatómica, mas não vou entrar nestes pormenores sórdidos da sociologia política.

Uma pessoa está diante do ecrã e no momento mais fácil para a oposição, em toda a história dos debates parlamentares, em mais de 2500 anos de história de reis ingleses e franceses decapitados, primeiros-ministros das Provínicias Unidas esfolados, e reis portugueses tardiamente baleados, o que sucede? Fazenda, Apolónia e Galamba puxam da sua erudição republicana, do seu vitalizante conhecimento da língua portuguesa, do seu incomparável faro estratégico, da sua gigantesca capacidade manipulatória do confronto político, da sua inabalável convicção nas causas, e disparam o original, o vertiginoso, o arrasador argumento do sofrimentos das pessoas.
Era preciso explicar que as pessoas são justamente o problema, ou não tivessem as pessoas eleito Pedro Passos Dias a Foder Portugal Coelho, com toda a tranquilidade do universo, tanto as pessoas que votaram nele, como as pessoas que nele não votaram por estarem na praia, no Continente, no A Tua Cara Não Me é Estranha, na cona da mãe delas ou flutuando numa jangada perigosamente sobre o pântano da pobreza e do desemprego, o que para efeitos do debate parlamentar é a mesma coisa, ou julgarão Fazenda, Apolónia e Galamba que as pessoas que não vão votar, e as que se afundam no Desemprego, às vezes são as mesmas, têm tempo para assistir curiosas e expectantes aos debates parlamentares? Pois se ardem em sofrimento desesperadas ou se trabalham de sol a sol como poderão assistir ao elogio épico da sua tragédia? Ou quererão Fazenda, Galamba, e Apolónia aparecer cinco segundos no jornal da noite a derramar lágrimas sobre o sofrimento? Há aqui qualquer coisa de sacerdotal, qualquer coisa típica dos grandes hípócritas. Embora os pecados da direita sejam mais graves, eu diria, com Marx e Jesus Cristo, que os hipócritas são especialmente exasperantes.


Todo o operariado, os trabalhadores, os pretos, os ciganos, os explorados que têm sido enrabados pela República Portuguesa e o seu Parlamento em toda a nossa longa história, o que espera não são lágrimas pelo seu sofrimento, pois conhecem bem esse sabor, o que espera todo o fraco e oprimido é justamente a derrota política do ignorante do Vítor Gaspar, mas desta vez com argumentos.
O ponto central da discussão sitou-se no conceito de expansão da procura. Segundo a besta Vítor Gaspar, 1,65 cm, 70 kg, a expansão articial (primeiro conceito a reter) da procura, hipertrofiou os sectores de serviços e de bens transaccionáveis nos últimos 20 anos. A economia foi distorcida (segundo conceito a reter) por rendas e margens de monopólio o que gerou um crescimento económico medíocre (o mais medíocre depois da 2ª Guerra Mundial, segundo (Vítr Salazar Gaspar) e apenas foi sustentado pelo sobre-endividamento. Ora a besta Galamba, 1,80 cm, 80 kg, apenas conseguiu indignar-se e apelidar a interpretação económica de Gaspar como fanática - um libelo que os fanáticos costumam receber como um elogio - integrando-o como membro de uma suposta escola, a neo-liberal. Caralhos me fodam, Galamba: o que é que eu disse aqui? Não vos proibi expressamente de utilizar esse conceito sem fazer o trabalho de casa? Ora, a interpretação económica de Gaspar não é fanática, é ignorante.

A rendas (free-rent) e os preços de monopólio de que Gaspar fala são, em primeiríssimo lugar, fornecidas pelo sistema político e qualquer economista neo-liberal sabujo defende que o sistema político é um instrumento que não deve atrofiar o funcionamento natural (ora aqui está) da sociedade. Gaspar, para que estás a mexer nesta merda? Deixa estar como está, foda-se, não venhas distorcer a evolução natural da curva da procura e reduz essa merda do lado da despesa, enviando para o olho da rua metade do teu gabinete, mais metade do gabinete de cada um dos ministérios, mais toda a despesa do Estado em Hospitais e Escolas Privadas, em Prisões cheias de pilha-galinhas que não fazem mal a uma mosca, mais os generais do exército e a corja de juízes que mama na teta da República. O Gary Becker não recomendou que se pagasse para não se cometerem crimes, que fica mais barato? Tem calma que eu sozinho (isto poderia dizer o Galamba) faço as contas que são necessárias, munido de lápis e caderno de capa preta, daqueles que o David Carreira diz na rádio que utilizou para escrever as suas canções e que são, diz ele, inspiradores.


Pouco depois, aparece o António Sala na televisão e diz: «cada vez que posso, compro ouro em moedas ou em barra». Belisquei-me. Foda-se, caralho, que é esta merda? Será o apocalipse? Onde estão os quatro cavaleiros e as suas espadas de fogo? Mas António Sala apressou-se a explicar: proteja-se do caos financeiro e compre ouro. Fui a correr para a cozinha e abri um garrafa de vinho do Porto.