Se eu fosse o Henrique Raposo começaria este texto invocando a minha experiência neo-realista, onde avulta, nomeadamente, uma tia criada e residente, à moda antiga, em vivenda unifamiliar burguesa nos arvoredos solarengos da Parede, uma mãe despedida de uma fábrica de confeções pronto-a-vestir naquele vendaval histórico que consistiu na generalização dos prazeres sensuais do porco-doce e do frango com amêndoas, e um pai electricista, a quem explodiu um quadro eléctrico de uma fábrica numa inovadora tentativa para potenciar os seus rendimentos monetários através da combustão dos próprios tecidos faciais.
No entanto, nada disto me impede de olhar para a realidade com um sentido de exigência e compaixão. É verdade que por defeito profissional fui treinado para levar o raciocínio para além do que é socialmente aceitável, mas que outros não tenham recebido um treino idêntico não justifica inteiramente que se entreguem a uma espécie de repetição eterna das suas próprias limitações: veja-se o caso de Jorge Jesus ou Joe Berardo, onde cada um, canhestramente e à sua maneira, se desfaz em esforços para falar correctamente a língua portuguesa. Ora, é pegar nesse exemplo e tranportá-lo para o pensamento político: para hipnotizar essa entidade criada pelo século XVIII - a população - com um projecto político novo, é preciso pensar para além dos limites conhecidos, mesmo que isso nos exija uma ética ninja de auto-sacrifício e o manejo de estrela pontiagudas. Se toda esta artilharia moral, imprescindível para o rebetamento dos muros que erguemos à nossa volta para nos defendermos da imprevisibilidade da vida, vos parecer um exercício ridículo e cómico, posso garantir, com auxílio demonstrantivo de toda a comédia clássica e isabelina, que é três vezes mais cómico e ridículo ouvir alguém perorando repetidamente sobre os limites do seu quintal julgando estar a ultrapassar as últimas fronteiras do universo.
Pedro Passos Coelho, após ter rapado o cabelo num barbeiro em Massamá, e questionando os limites da sua incomensurável ignorância, ouve atento as explicações espirituais de Miguel Relvas, depois de este ter ficado cego ao tentar completar a leitura compreensiva de O Príncipe, de Maquiavel
Aqui neste local, o Daniel Oliveira presta-se à demonstração do singelo procedimento da indignação perante os outros, muito habitual nas pessoas bem intencionadas mas com pouco treino nas regiões inóspitas do desconhecido. Desse modo, confunde as percepções dos direitos com os mecanismos que permitem consagrar um determinado direito como legítimo. Não estou com isto a recorrer ao exausto argumento da força das circunstâncias, estou apenas a lembrar que as funcionalidades do dinheiro - para férias, para telémoveis ou para pornografia - dependem de consensos e efeitos de contágio ideológico (como a esquerda devia carinhosamente saber) assim como da própria aceitação da liberdade na distribuição das preferências, e em função de uma expressão numérica, em euros ou em dólares, ou em qualquer bem transacionável que passar a funcionar como unidade monetária. Quando se limita a distribuição dos factores de produção e dos recursos através de um processo qualitativo, acontece em geral, e como se confirma em todos os exemplos históricos conhecidos, uma forte limitação do número de participantes na decisão, e por conseguinte - citando José Guilherme Aguiar - também na democratização dos recursos. Aliás, a importância da expressão numérica é bem visível no mecanismo eleitoral da democracia que, apesar de tudo, se tem aguentado apenas porque se podem contar os votos. A introdução de critérios verbais - os famigerados valores - de justiça, equidade ou comunhão são muito mais difíceis de operacionalizar sem um instrumento de medida e geram, quase sempre, um sistema paralelo de autoridade assente sobre o mecanismo a que convencionámos chamar dinheiro.
Qualquer restrição da organização social - como a que é obscuramente proposta pelo Daniel Oliveira - implica um compromisso com a limitação destas funcionalidades do dinheiro e da sua relação com a representação da autoridade - que manifestamente tende a ser transferida para o sistema de preços nas sociedades modernas e é a principal causa do desconforto de pessoas como o Mário Nogueira. Ora, isto não significa nenhuma tragédia mas apenas a limitação relativa da liberdade, o que não devia fazer corar um socialista. Se as pessoas em vez de frequentarem programas de entretenimento na SIC fossem ler um bocadinho, chegariam à conclusão de que o falhanço rotundo de Marx foi não ter conseguido desenhar um sistema de autoridade alternativo, após um épico trabalho na demonstração da emergência do dinheiro como expressão das relações sociais.
Qualquer restrição da organização social - como a que é obscuramente proposta pelo Daniel Oliveira - implica um compromisso com a limitação destas funcionalidades do dinheiro e da sua relação com a representação da autoridade - que manifestamente tende a ser transferida para o sistema de preços nas sociedades modernas e é a principal causa do desconforto de pessoas como o Mário Nogueira. Ora, isto não significa nenhuma tragédia mas apenas a limitação relativa da liberdade, o que não devia fazer corar um socialista. Se as pessoas em vez de frequentarem programas de entretenimento na SIC fossem ler um bocadinho, chegariam à conclusão de que o falhanço rotundo de Marx foi não ter conseguido desenhar um sistema de autoridade alternativo, após um épico trabalho na demonstração da emergência do dinheiro como expressão das relações sociais.
Gisele Bündchen, a fim de que os leitores, eventualmente enfastiados com estas questões, possam descansar, por um momento, os instrumentos cognitivos.
Quando se começam a desenhar restrições políticas sobre a diabólica «economia», invariavelmente surgem palavras ou expressões como «mais democracia», «regulação», «distribuição da riqueza», sem que se perceba exactamente qual o pressuposto geral e coerente - e por isso manipulável pelo maior número de pessoas possível - capaz de fazer brotar esses maravilhosos conceitos no coração da república. Se estamos a falar da representação parlamentar deixem-me só ir ali ao canto rir um bocadinho. Se estamos a falar de outra coisa, palpita-me que temos de trabalhar mais e pensar melhor porque o que temos até agora é muito pobre. O maior erro da esquerda - e um erro que, por exemplo, Rosseau não cometeu - é subestimar o inimigo e não fazer a devida vénia à poderosa coerência interna de um sistema de autoridade sustentado, ainda que vagamente, na ideia de preço.
É preciso compreender que o capitalismo, sendo tremendamente injusto, é um sistema, e apenas será substituído por um outro sistema igualmente poderoso na sua coerência interna (como a esquerda, e a direita, já agora, carinhosamente deviam saber). Palpita-me que a força desse futuro sistema decorrerá, como sempre, do grau de legitimidade sobre os grupos que protagonizam os objectos fundamentais do desejo, e se as revoluções burguesas se legitimaram junto de banqueiros, industriais, negociantes, agricultores, um sistema mais poderoso do que o capitalismo terá que se legitimar junto destes e das classes vanguardistas. O problema está em saber quais são essas classes. Mas palpita-me que esses protagonistas não andam longe da blogosfera.
Partilho da concepção de que o país que ia em massa para a riviera Mexicana é um mau enredo de telefilme barato, mas o país que sofre a desorganização da finança, dos bancos e dos políticos corruptos é um outro telefilme quase tão mau como o prímeiro. Na verdade, não sabemos exactamente o que fazer, e muito menos alcançamos os impactos resultantes da satisfação dos nossos desejos, mas como todos queremos ir para o céu, desfazemo-nos em declarações sobre a salvação de todos e de cada um de nós, numa oratória incontrolável, à maneira dos povos pré-científicos. A crise apenas revelou o que para qualquer pessoa inteligente é uma realidade desde os primeiros contactos com o mundo dos vivos: que a direcção das coisas e o seu significado nos são completamente inacessíveis.
Mas há uma boa notícia, pois estamos diante de mais oportunidade, não para empreender ou salvar Portugal - o excelentíssimo senhor primeiro-ministro Pedro Passos Coelho que se foda - mas para tentar de novo, e de uma vez para sempre com propósitos firmes e verdadeiros, a resposta à única pergunta a que vale a pena responder: quem sou eu?
Jean-Jacques Rosseau, a primeira pessoa a ter a coragem de ser uma pessoa.