A julgar pelo ritmo com que segue o debate psico-social neste blogue, estamos todos fodidos e sem dinheiro para divertimentos mais substanciais, e desde logo me assalta novamente o problema epistemológico da linguagem como veículo de comunicação, uma vez que se acabaram as minis no frigorífico. É preciso estar muito desesperado - como todos parecemos estar - para acreditar que chegamos a algum lado por intermédio do raciocínio não indexado a um projecto social eficientemente adaptado, por exemplo, um partido, ou uma editora de largo espectro, ou uma Igreja, e no entanto há qualquer coisa de perturbador no triunfo do relativismo cultural.
Não sei se já repararam mas não temos feito outra coisa senão cuspir nas virtudes da economia de mercado e da democracia constitucional. Longe de mim sugerir que essa não é uma actividade enobrecedora, mas preocupa-me que não consigamos colocar o problema em bases mais circunstacialmente históricas, tudo bem maradona?, uma vez que também sabemos que as problemáticas psico-sociais contemporâneas e as razões que fazem de José Luís Peixoto, João Ricado Pedro, valter filho da mãe, Rebelo Pinto, Júlia Pinheiro, enfim tutti quanti, são razões que se prendem com uma necessidade a preencher no coração do povo.
Sempre tive um particular carinho pelos jacobinos e o seu sonho de razão, mesmo que munido com a afiada precisão das lâminas (apesar das recomendações de calma da nossa comentadora Alma), mas a verdade é que as pessoas ganharam e isso devia encher-nos de alegria. No entanto, continuamos perturbados. Eu juro que quero acreditar num mundo em que os livros de Peixoto promovem a reflexão da Raquel - a nossa mais recente simpática comentadora - mas nesse mundo de pescadores e carpinteiros como autoridades da cultura há qualquer coisa que nos continuar a pertubar, a todos nós que somos filhos de pescadores, electricistas e carpinteiros. Para lá do clássico aforismo que não quer calar - não foi para isto que se fez o 25 de Abril - também não foi para isto que se fez a escola e o mercado da edição. Ou terá sido?
Toda a gente tem a liberdade de ser comentador, publicar um livro, dar entrevistas, ser um autor de referência. Porém, julgo que a nossa perturbação - a de todos aqueles que protestam contra a autoridade do real mas recusam igualmente o socialismo científico - nasce de um sentido de injustiça. Eu explico. Ainda ontem lia esse magnífico apontamento autobiográfico de Calvino, O Caminho de S. Giovanni, onde num primeiro texto se relatam as recordações de um passado traumático, narrado da perspectiva de um filho, a partir da relação com a sombra tutelar do pai, e após a grande pata da morte ter esmagado o único e frágil cone de luz que permitiria, a ambos, aceder a uma desmistificação final do problema. Estão a ver que este é justamente uma concretização por um grande escritor do tema apenas ligeiramente aflorado em Morreste-me, a obra fundadora da aventura Peixoteana. Ora, nada me move contra os leitores que se afundam privadamente na prosa incompleta e pouco esclarecida de Peixoto. Tenho pena que fiquem por aí, tal como tenho pena dos fundistas dos 10 000 metros que tropeçam na segunda volta e se estatelam na pista com aquele semblante entre a lebre esbaforida e o ladrão apanhado pela populaça em fúria. Porém, quando os meios de comunicação esmagam as alternativas de escolha e os programas escolares, os ministérios da educação, as gasolineiras, as mulheres bonitas, os cartazes histriónicos, as estações de rádio, os humoristas netos de industriais austríacos, começam todos a funcionar como um padrão automático e repetitivo, tenho sempre muitas dúvidas de que isso não represente efeitos perversos para a nossa liberdade e igualdade, para não falar da tão estimada possibilidade de escolha que parece estar na base de todo o mecanismo.
Quero dizer que a economia nos ensinou que o recurso escasso por excelência é o tempo, e se lemos Peixoto, não lemos Calvino. É verdade que a «mão invisível» devia guiar os nosso sentidos cegos de desejo, mas isso no que diz respeito a preferências do corpo. Quando falamos da lei da oferta e da procura de produtos ideológicos, será que nos podemos permitir o uso da força empresarial? Será que estamos a medir bem as consequências do abandono dos mecanismos de transmissão da cultura e do património dos nossos queridos antepassados a mecanismos de preço? Será que estamos conscientes de que não adiante financiar bibliotecas e sistemas de ensino clássico quando os mecanismos empresariais, em cujo seio se fundamenta o futuro, sabotam a cada momento esse legado com uma racionalidade baseada na ignorância da literatura? Deixar ao critério de um público não especializado a escolha dos candidatos às oportunidades de especialização na escrita não será um brincadeira que nos empobrece culturalmente? Será que a falta de sensibilidade a este problema, longe de ser uma manifestação de racionalidade democrática, não é apenas uma perda total do sentido do impacto das nossas decisões individuais na vida de todos?
No fundo, podemos dizer que a perturbação diante do espaço e prestígio adquirido por escritores incapazes de dialogar com a exigência e profundidade da galeria clássica, nasce de uma inquietação diante da manifestação da força bruta. O que quero dize desde o início deste post - e que a Raquel, nossa comentadora, confirma com a sua experiência, involuntária ou não - é que a ligação entre estes medíocres e a formação alargada das consciências, não só reduz a margem de manobra das pessoas, mais exigentes e cuidadosas, que em vez de se multiplicarem em livros e banalidades sobre o real, foram estudá-lo, pensá-lo, e tentar reflecti-lo antes de se pronunciarem sobre o que quer que fosse (o que significa que nós, as forças do bem, estamos a ser fodidos em termos de vantagem comparativa), como introduz um esmagamento da invididualidade que é exigente consigo própria (e que penso ser a única forma de salvar a relação entre a igualdade e a liberdade), e uma menorização total das potencialidades do diálogo do indivíduo com o passado histórico e o presente colectivo, transformando a cultura individual no simples eco das relações de mercado. Isto é, sempre me pareceu que um Peixoto, um valter filho da mãe ou mesmo um Gonçalo M. Tavares são o triunfo do escritor profissional pós-industrial e digital, isto é, o equivalente usa e deita-fora, repete, usa e deita-fora, repete, em total articulação com as formas de comunicação modernas.
Nisto, julgo que chegamos a um ponto irreconciliável entre nós, os que pensamos, e todos aqueles que compram e consomem peixotices e tavarices. Se isto é apenas uma manifestação de pedantice da nossa parte, ou um sincero grito de alerta sobre o caminho que estamos a tomar na reificação das nossas referências culturais, é o que pretendo saber de vossas excelências. O mundo não vai acabar, eu sei, mas convém que estejamos, nós os inteligentes e excluídos, conscientes do arranjinho que nos prepararam ou que nós, com a nossa teimosia, preparámos a nós próprios.
Neste sentido, apesar de ser um adepto do bucolismo estóico - tendo já preparada a minha taça de Casal Garcia com 605 Forte - não posso concordar com José Mário Bronco quando sublinha que a solução é ignorá-los. Para terminar, vou resistir à comparação com o nazismo - o que desde logo atesta a minha qualidade intelectual - e recorrer à sabedoria popular: «enquanto o pau vai e vem folgam as costas, mas se ignoras o pau abelhudo, mais tarde ou mais cedo, levas com ele pelo buraquinho ao fundo das costas».
5 comentários:
Caro Alf,
O JMB tem razão, a indiferença perante a mediocridade não é uma arma é uma bomba :)
Em todas as epocas houveram sucessos pré-fabricados que não duraram mais que a vida do próprio autor,conheço um alfarrebista que vende livros a 0.00 € :)))
uma vez disse-me (lamentávelmente não me lembro do nome)que um autor tipo peixoto teve um estrondoso sucesso em vida pela critica e nunca em tempo algum entrou-lhe pela porta alguém que lhe pedisse um livro desse autor.
Compreendo o seu horror aos livros de aeroporto :)))
Não se rale :) uns começam por aí e acabam um pouco mais adiante (pouco adiante) mas cada um vai até onde pode...:)
Foi e sempre será um mistério o que leva uns a quererem qualidade e outros o mediocre.
Como não se pode agradar a todos :)
desejo que o alf agrade aos melhores.
A vida ensinou-me que a melhor maneira de destruir o inimigo é falar bem dele :)))
Fala tanto do peixoto que agora tenho de ir até uma fnac ler em diagonal para matar a curiosidade :)
Adenda: lamentavelmente :))))
sou das que não sabe escrever :)
só aprendi a ler :)))
errata : Alf-arrabista :)))
Só podem ter uma vida muuuuito desinteressante para só se darem ao trabalho de falar assim dos escritores portugueses. Uma obra não precisa de ser um clássico, nem estrangeira para que seja boa, mas para os autores deste blog...parece que é aunica forma de algo valer. Existem novos e muito bons escritores neste nosso país, e que muito dão às pessoas com o que escrevem. O que importa na literatura é também o que ele é capaz de transmitir, mesmo que não seja a melhor escrita do mundo, mesmo que não hajam maiusculas.
Repito, parecem-me pessoas com vidas muito desisteressantes.
Caro João Albuquerque e Sousa
A minha vida é verdadeiramente desinteressante,tenho arrastado os meus 250 kg por vales sombrios e muros cinzentos, cruzando e descruzando os braços (a minha actividade mais criativa) vagueando pelo deserto em que se transformou a minha desinteressante existência de porco estrangeirado, mas julgo que isso talvez não venha ao caso, porque penso que deixei claro no meu espectacular comentário - que o João devia voltar a ler com mais atenção - que o problema é de inteligência, potência criativa e conhecimento do mundo e não de qualificação lúdica das nossas vidas.
Em nenhum lado se afirma que apenas a literatura estrangeira ou os clássicos merecem a nossa atenção (os meus textos não são cássicos, nem estrangeiros, e merecem toda a atenção que for possível disponibilizar). Refiro isso sim que os portugueses - mal alfabetizados, um facto - se contentam com pouco em matéria de literatura. Se ler a minha obra neste blogue - o que esperemos não lhe retire muito tempo da sua interessante vida - verá que a questão é a da relação do discurso literário com uma instituição, o mercado, tendo em conta problema de certificação da qualidade, isto é, a capacidade, liberdade e informação que o João, ou outra pessoa qualquer, tem para produzir um juízo sobre um livro. O relativismo subjectivista onde estamos a encerrar-nos vai trazer, mais cedo ou mais tarde, um preço: a degradação da qualidade dos produtos. Não é nenhuma tragédia, o mesmo acontece com os ovos, o leite, os aspiradores e o papel higiénico: a questão crítica é dos impactos de objectos tão fundamentais na formação de opiniões.
Ninguém quer impedir os autores de publicarem as suas obras, o que aqui se questiona é a ausência de crítica especializada, e o facto de sempre de essa (pouquíssima) crítica se exercer num ambiente altamente hostil, onde emerge automaticamente um efeito colectivo de protesto, motivado pela ignorância e a insegurança das opiniões (na verdade, não vejo ninguém sustentar as razões de ler estes livros e não outros).
Tenho pena que as pessoas por terem vidas tão interessantes se resignem a usar apressadamente a literatura como veículo de transmissão de qualquer coisa um pouco vaga que ainda não me conseguiram explicar o que é, e que temo seja muito semelhante ao que as pessoas antes iam buscar, em rebanho, à Santa Madre Igreja.
Porém, a literatura é apenas a literatura, e é isso que faz a sua nobreza: com maior ou menor qualidade. O resto são apenas as nossas fragilidades e o consumir de uma vida que, embora cheia de interesses, teima em escapar-nos.
Leia o que quiser mas olhe que isso não o salvará de passar por este mundo falhando o convívio com os grandes livros.
Grato pelo comentário: o que importa é pensar enquanto estamos vivos.
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