Todos conhecem a minha profunda estima pela instituição escolar e não posso, por isso mesmo, deixar de expressar a minha estupefacção perante a tempestade que se abateu sobre Miguel Relvas. Apesar da minha falta de disponibilidade para esclarecer as mentes mais ignorantes deste país, devo dizer que ainda não aprendi a manter a calma sempre que a propósito de uma qualquer outra coisa, os portugueses decidem começar a tentar pensar sobre o conhecimento e as suas instituições. Devo dizer que os portugueses, apesar de tudo, revelam muito mais sagacidade na apreciação da sardinha assada e das taxas de produtividade da terra, em cultura várias, do tomate à beterraba acuçareira, ou não fossemos nós um povo de camponeses como o caro leitor pode comprovar agora mesmo, se o desejar, consultando o album fotográfico de casamento dos seus pais e atentando no traje e tom de pele dos respectivos avós. Uns cavadores em 80% do casos. Pois é, como diria João Gilberto.
Ainda no Domingo, numa feira do livro de Verão estabelecida em tenda de lona numa falésia portuguesa, o mais famoso e recente sucesso literário, produzido pela empresa Leya, apodrecia numa mesa vazia à espera que as sucessivas ondas dos mais de 20 000 livros vendidos, fizessem chegar até ele uma qualquer adolescente sofredora, um funcionário público deprimido, ou uma professora divorciada, com um exemplar na mão, a fim de serem taumaturgicamente sagrados com as palavras divinas do autor: para fulano tal, com estima. Haverá alguma relação entre João Pedro Ricardo e Miguel Relvas para além da manifesta ignorância sobre a literatura e a vida? É esta a questão que proponho para o seminário de almoço de hoje, enquanto trinco uma chamuça oleada e sinto o caril vibrar no esófago as suas asas pontiagudas.
Na verdade, é com grande ternuna que vejo a comunidade descobrir a importância da certificação e da burocracia - uma coisa que custa dinheiro e a que logicamente a Universidade Lusófona não se presta - em mecanismos de transmissão do conhecimento e representação política. Relvas é uma pessoa que utilizou os seus recursos para comprar um produto, neste caso um título académico. Qual é o problema? Todos os dias, o conjunto definido pelas Universidades Privadas, e cada vez mais também pelas públicas, vende títulos académicos, com ou sem frequência de cadeiras, às vezes com processos de investigação e defesa de teses marketingamente incluídos. O que está em causa são os aspectos insondáveis da justiça: afinal, sempre há um problema político na igualdade, isto é, os pseudo-alunos que foram obrigados a prestar prova das suas capacidades sentem-se injustiçados na sua taxa de esforço, o que apenas demonstra a monumental ignorância dos alunos da Lusófona, e da sociedade portuguesa, em matéria de conhecimento e ciência. As pessoas continuam convencidas de que o saber se pode certificar institucionalmente, e por isso laboram num erro tão antigo como grosseiro: confundir mecanismos de segurança e previsão - a certificação de currículos e competências - com a posse do conhecimento real sobre as coisas. O que está em causa nas Universidades, desde há muito, para não dizer desde sempre, é a autorização política para exercer uma profissão, não a posse de conhecimentos. Às vezes, e por sorte, dá-se uma intersecção dos dois aspectos. Neste caso, os alunos da Lusófona, ou de outras universidades concorrentes, poderão manifestar dúvidas quanto às condições de legitimidade de Relvas para exercer cargos políticos e relações internacionais. Há na licenciatura de Relvas um problema? Claro que não, direi até mesmo que num mundo ideal, Relvas seria um catedrático de ciência política, pois sabe três vezes mais que Nuno Rogeiro ou Nogueira Pinto, quer sobre o o exercício de cargos políticos, quer sobre a política em geral. Ou afinal, a realidade não é uma boa certificadora da justiça? Meus caros, se assim é, se Relvas, sendo um ignorante sobre ciência política, consegue ser eleito e pertencer a sucessivos governos, lamento ter que informar a humanidade sobre um pequeno facto: Relvas é apenas um pequeno vigarista na mega-fraude em que todos laboramos. Se calhar, Tony Carreira não sabe cantar, Cavaco Silva não sabe economia, José Alberto Carvalho é apenas uma pessoa com o liceu que mal sabe articular dois conceitos e dirige pessimamente as entrevistas aos candidatos ao poder, José Luís Peixoto e João Pedro Ricardo são oportunistas ignorantes que exploram a analfabetismo literário e a falta de tempo dos consumidores de livros, Marcelo Rebelo de Sousa, um animador de festa que por ser filho de um político salazarista se transformou num intelectual de nomeada, etc, etc, etc.
Como não podemos ir por aí, sob pena de nos esfumarmos todos num buraco de energia negra, temos que seguir outro argumento. O que Relvas desconhece é a literatura especializada sobre a política. Mas haverá algum ser vivo capaz de demonstrar que o conhecmento do livro A ou do artigo B é condição essencial para produzir um discurso verdadeiro sobre os factos políticos e a sua respectiva análise? Claro que não. Custa ter que dizer isto num blogue obscuro, mas o tiro no pé dos mecanismos de certificação elitista do conhecimento não foi dado por Relvas, foi dado por todos nós, em geral, quando contratualizámos uma coisa chamada democracia - o acesso do povo à capacidade para governar a nau do estado (cibernética) - e a tentámos basear não no trabalho escravo mas na distribuição e divisão do trabalho a partir do lucro livre implícito num sistema de preços, bem como pela ciência política, em particular, oferecendo à comunidade uma pseudo-ciência que não passa de um série de exercícios circenses sobre uma matéria sobre a qual mantemos o mesmo nível de ignorância de há pelo menos 2500 anos, como os sucessos do século XX (do nazismo à crise das dívidas públicas) amplamente demonstram. Que possam existir professores de ciência política remunerados é que deveria merecer a nossa mais profunda e estridente gargalhada.
Mesmo dando de barato que o processo universitário e a certificação disciplinar é o melhor caminho para os propósitos de segurança e informação necessários a uma economia de mercado, deve dizer-se no entanto que há uma enorme confusão entre o papel da escola como mecanismo de transmissão de conhecimento entre gerações e o seu papel como instituição política na certificação dos saberes. Estou aliás convencido de que é precisamente desta confusão (entre legitimidade política e eficiência da transmissão nos mecanismos de auto-conhecimento, reconhecimento e adaptação ao ambiente) que resultam a grande maioria dos problemas da nossa época. É que embora a escola e as universidades mantenham o monopólio na certificação do saber, há muito que perderam o controlo sobre a memória e a transmissão - sobretudo depois da generalização da comunicação de massas, das bibliotecas públicas e da internet. Ninguém reparou mas vivemos mergulhados num mundo de tecnologia informática mas equipados com instituições de política científica que datam na melhor das hipóteses do século XVI. Neste sentido, desejo coragem e perseverança a todos os que como Miguel Relvas ou Aníbal Cavaco Silva sofrem, sofreram ou sofrerão a ira imprevisível dos deuses que é o preço a pagar por terem decidido navegar na tremenda confusão entre legitimidade política, ignorância e sucesso professional.
2 comentários:
Quem és tu ?
sempre me entusiasmou a responder da mesma forma (a ignorância é atrevida) :)
só que mais tarde vim a saber que esse ninguém (não era o meu ninguém )era tudo :) não havia mais ninguém como ele :)
Bonito e bom ensaio :)
Parabéns :)
O relvas é só o produto do nosso sistema parolo :)
quase tão curioso como o sucesso de um Marcelo por ser filho de um mediocre secretário do estado novo
eh eh eh eh
a vida pode ser muito divertida :)
Só nos podemos culpar pela cambada de ignorantes formados que se pavoneiam em empresas e outros meios que tais, onde existe esse acordo brilhante entre ignorantes e analfrabrutos que consiste em esconder a falta de sagacidade, já para não lhes exigir sapiência.
Para um sociedade que mede o valor humano pelo tamanho de um comprovativo burocrático, QUE ESTAVAM À ESPERA? Repito e irei fazê-lo até ao fim da minha pobre existência, de que esconder as incompetências atrás de um pano académico onde o sistema de análise das inteligências tem mais que ver com a sorte do acaso e da capacidade de assimilação em carga bruta (porque me pergunto sempre se metade dos pseudo-intelectuais que por aí andam, de facto retiveram alguma coisa dos livros com os quais gostam de passear) do que com verdadeiras competências adquiridas.
Enfim...
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