Para poupar os leitores a uma análise fastidiosa, vou abordar o texto impresso na badana do livro, até pelo poder simbólico que representa na economia do sistema editorial.
No texto que serve de aperitivo ao perspicaz livro de compilação das suas Crónicas, RAP constrói uma situação absurda, em que pretende revelar a pouca inteligência dos utilizadores das redes sociais. Vejam bem, falamos aqui dos utilizadores das redes sociais, isto é, nós mesmos, que somos tolinhos e não atingimos o significado oculto das nossas acções populistas, demagógicas e pouco esclarecidas. Utilizadores que, na sua boçal compreensão das coisas, sujeitam os corajosos, sensíveis e espectaculares produtores de conteúdos de valor cultural reconhecidamente excelente, a um rol de interpretações delirantes. E que faz RAP para erigir esta crítica sobre o delírio da internet? Resolve teletransportar Shakespeare para os nossos dias, submetendo-o à violência bárbara e obscurantista de uma alegada italiana farmacêutica, natural de Verona e utilizadora do Facebook. Percebemos perfeitamente onde RAP pretende chegar e estamos solidários com a sua luta. E isto apesar de por vezes cometermos o nosso imperdoável pecado, a saber, sermos detentores de uma opinião crítica sobre a realidade, baseada em, digamos, valores «politicamente correctos».
Acontece que o absurdo da situação se revela relativamente pouco absurdo, na nossa modestíssima opinião. E quase temos vergonha de o dizer, caros leitores, para não melindrarmos a liberdade de expressão de ninguém.
Sobre o facto de a simpática farmacêutica italiana de Verona - imaginada por RAP - ter ficado indignada com a facilidade de aquisição do veneno, comprado por Romeu a um pobre Boticário, deve assinalar-se que o próprio Shakespeare foi bastante cuidadoso com esse aspecto. Podemos dizer, com a coragem que nos caracteriza, que o poeta e autor de Romeu e Julieta chegou mesmo a ser, digamos, «politicamente correcto». Pois deixa bem claro no texto da peça, pela própria boca do Boticário, como a lei de Mântua punia com a morte quem vendesse ao público aquele veneno letal. Eram cuidadosos os cidadãos de Mântua. E vergonhosamente, politicamente correctos. Se Shakesperare fosse utilizador das redes sociais, talvez, ele mesmo, considerasse uma infâmia não se ter esclarecido o público sobre esse curioso aspecto.
Que a página do Globe Theatre fosse invadida por centenas de mensagens, também não nos parece uma situação insólita. Na época tinham métodos bastante mais eficazes para expressar o politicamente correcto, nomeadamente, o encerramento do teatro, a prisão dos autores e dos actores, ou simplesmente a monumental vaia, a interrupção da peça, ou o civilizado pontapé directamente aplicado ao rabo dos artistas.
Sobre a mensagem negativa de Romeu e Julieta, quanto ao universo problemático dos jovens adolescentes, que a preocupada mãe de Verona e farmacêutica - imaginada por RAP - julgou necessário noticiar nas redes sociais, para aviso dos futuros amantes, julgamos que, sobretudo neste aspecto, não andará a bela italiana de Verona longe das intenções de Shakespeare ao escrever a peça.
Antes de mais, um ponto de ordem. Se estamos realmente na posse das nossas faculdades mentais (o que não é garantido) julgamos ter compreendido o sentido da ironia do nosso inteligente humorista, RAP. A histeria crítica do nosso tempo - a que alguns chamam o integrismo ou puritanismo do «politicamente correto» - se existisse na época do bardo inglês, teria inibido o poder criativo de Shakespeare. Teria implicado com os poderes artísticos do maior poeta de todos os tempos. Dito de outro modo, se Shakespeare existisse hoje, talvez a sua gloriosa imaginação estivesse (esteja) a ser reprimida por esses infames inquisidores do «politicamente correcto».
Contudo, sou forçado a dizer (embaraçosamente) que Romeu e Julieta é - precisamente - uma peça sobre o «politicamente correcto» e não precisamos de ser escravos da preocupação com as redes sociais para interpretar cabalmente o assunto.
A peça começa com um edital ou a publicação de uma Lei - como muitas das peças de Shakespeare - na tentativa de estabelecer a ordem, perante o desconcerto do mundo. O que revela, desde logo, uma certa ansiedade com a repressão dos comportamentos. Ou seja, Shakespeare era um homem preocupado com o «politicamente correcto». Qualquer pessoa que participasse em distúrbios ou confrontos públicos na cidade de Verona, seria punida com a morte. Shakespeare estaria preocupado com a escalada de violência na sociedade em que vivia, e fez decorrer a acção sobre o absurdo irracional de todos aqueles que, desobedecendo à lei, consideravam os interesses de família, direito e propriedade, superiores ao amor selvagem entre duas mentes rebeldes. Ou muito me engano, ou isto soa um bocado «politicamente correcto». Mas estamos contigo, RAP, e não nos deixaremos perturbar.
Vamos deixar de lado o facto de Shakespeare ter escrito Titus Andronicus (1592-1594) antes de Romeu e Julieta (1594-1596) pois são pormenores eruditos que não interessam à luta pela liberdade. Com efeito, são muitos os temas que na Lamentável Tragédia de Romeu e Julieta, poderiam ter sensibilizado RAP a construir uma reflexão sobre o mundo em que vivemos. O ataque à luta feudal entre duas poderosas famílias - considerando que as dinastias familiares e os seus fetiches de poder (que o diga a Sonae) já não serviam como fundamento da realidade, numa sociedade cada vez mais entusiasmada com o comércio e os direitos dos indivíduos. Mas RAP não quis abordar o mundo diurno da lei, dos livros e da autoridade, com as suas regras de conduta rígidas, crescendo ameaçador sobre os sonhos de prazer da juventude. Nem mesmo a forma como o velho Capuleto ameaça a sua filha, se esta continuasse a rejeitar a autoridade do pai e a recusar o casamento com Paris, arriscando Julieta, nada mais, nada menos do que a expulsão de casa, da protecção e do conforto, com a multiplicadora violência que esta ameaça lançava sobre uma jovem mulher. Curiosamente, caros leitores (e contra mim falo, de lágrimas nos olhos) Romeu e Julieta - tal como o debate que hoje ameaça engolir-nos - é sobre o direito das mulheres exercerem a sua justa parte num mundo governado por homens. Homens com poder, quase sempre, com alguma tendência para serem parvos e abrutalhados.
Em todo caso, Shakespeare - e lamento desiludir RAP - está bastante preocupado com as mensagens negativas em torno dos adolescentes, tal como a farmacêutica de Verona, utilizadora do Facebook. Se estivermos atentos à peça, veremos que a criada de Julieta faz menção de recordar - irónica e provocadoramente - como tinha perdido a virgindade aos doze anos. Na verdade, Julieta vê-se confrontada com uma decisão de casar com um homem indesejado, ainda antes de fazer catorze anos. Se RAP estivesse um pouco mais atento (embora compreendamos que a sua luta é exigente e monopolizadora) teria percebido que esse é precisamente o tema central da peça.
Dirão os corajosos defensores da liberdade contra os esbirros do politicamente correcto: «a ironia de RAP pretende apenas denunciar como a deriva inquisitorial dos bons costumes corre o risco de inibir ou reprimir, ou até impedir, a expressão artística no seu mais elevado nível de realização». Certo, estaremos todos de acordo, embora, do meu ponto de vista, os critérios que permitem uma elevada realização artística dificilmente podem ser relacionados com o aumento ou a diminuição da liberdade de expressão, com muita pena o digo.
Ricardo, se me está a ouvir, deixa-me dizer-te: Romeu e Julieta é uma peça sobre o conflito de gerações e a incapacidade de compreender os riscos e a beleza das paixões (aparentemente irracionais) dos novos tempos e dos seus mais frágeis filhos, os mais jovens. A geração mais velha, presa nos seus livros, na sua sabedoria arcaica (e muitas vezes elitista) nos seus direitos de propriedade, nos seus feudos, revela-se quase sempre incapaz de compreender a nova realidade e as suas circunstâncias, a começar por novas formas de amor (pois é, pois é).
Compreendemos que a manutenção de poder dos meios de comunicação de massas seja um tema caro a quem ganha a vida nos meios de comunicação de massas e teme a boçalidade da multidão. Shakespeare também viveu essa angústia, mas revelou-se progressista, abraçou o mercado do teatro isabelino, onde a concorrência era forte e o público soberano, por isso o bardo se apressa a dizer, logo no Prólogo de Romeu e Julieta: «se quiserem ouvir com benévola atenção, o nosso zelo há-de esforçar-se por corrigir o que na peça acharem digno de emenda». Inaceitável contemporização diante do público. Mas perdoemos Shakespeare, pois era um homem «politicamente correcto».
Compreendemos que um humorista como RAP não possa perder tempo com estas ninharias, ocupado a enfrentar multidões perigosas furiosamente teclando nos seus computadores, multidões que vandalizam com horrorosa cacofonia as páginas de Facebook das editoras, dos jornais de referência e das televisões e chegam mesmo a fazer ameaças perturbadoras como: «isso que o senhor disse é machismo». Quem pode resistir a ataque tão violento como este? Quem pode ficar impassível quando os valores da liberdade são atacados por mulheres sensíveis e alfabetizadas?
Compreendemos que RAP tenha de enfrentar irascíveis cardeais munidos com caldeiras de água benta, e donas de casa católicas, frequentadoras dos cursos espirituais dos jesuítas, e perigosas associações de pais de liceus prestigiados, e ameaçadoras advogadas de associações de protecção às vítimas, e selváticas e perigosas jornalistas do Diário de Notícias, e membros de coros alentejanos, e agremiações defensoras da moral pública, com o seu tentacular poder, e ferozes membros da associação dos amigos dos animais, e militantes de grupos activistas defensores da macrobiótica. O número de oponentes cresce todos os dias. Os idosos e reformados já se posicionam para atacar a liberdade e defender os bons costumes. Todos os braços são poucos para travar esta perigosa luta. O inimigo multiplica as suas forças, gerando milhares de pequenos balões de mensagens nas letais caixas de comentários.
Felizmente, temos homens como RAP. Homens que nunca deixarão de lutar em favor da liberdade, apesar de apenas podermos ouvir a sua voz nos frágeis e ameaçados espaços de informação como a TVI24, a Sport TV, a TSF, a Visão ou a Rádio Comercial. Apesar de frágeis, continuarão o seu corajoso trabalho. Não deixarão pisar a dignidade ortográfica da língua.
Guerras, injustiças, desigualdade económica, poder mediático das televisões e dos grandes grupos de comunicação, violências sobre as mulheres, racismo? Que são todas essas ninharias perante a escandalosa supressão de uma consoante surda?
Dirão os corajosos defensores da liberdade contra os esbirros do politicamente correcto: «a ironia de RAP pretende apenas denunciar como a deriva inquisitorial dos bons costumes corre o risco de inibir ou reprimir, ou até impedir, a expressão artística no seu mais elevado nível de realização». Certo, estaremos todos de acordo, embora, do meu ponto de vista, os critérios que permitem uma elevada realização artística dificilmente podem ser relacionados com o aumento ou a diminuição da liberdade de expressão, com muita pena o digo.
Ricardo, se me está a ouvir, deixa-me dizer-te: Romeu e Julieta é uma peça sobre o conflito de gerações e a incapacidade de compreender os riscos e a beleza das paixões (aparentemente irracionais) dos novos tempos e dos seus mais frágeis filhos, os mais jovens. A geração mais velha, presa nos seus livros, na sua sabedoria arcaica (e muitas vezes elitista) nos seus direitos de propriedade, nos seus feudos, revela-se quase sempre incapaz de compreender a nova realidade e as suas circunstâncias, a começar por novas formas de amor (pois é, pois é).
Romeo + Juliet
(1996) de Baz Luhrmann com Claire Danes (Julieta) e Leonardo DiCaprio (Romeu).
Compreendemos que a manutenção de poder dos meios de comunicação de massas seja um tema caro a quem ganha a vida nos meios de comunicação de massas e teme a boçalidade da multidão. Shakespeare também viveu essa angústia, mas revelou-se progressista, abraçou o mercado do teatro isabelino, onde a concorrência era forte e o público soberano, por isso o bardo se apressa a dizer, logo no Prólogo de Romeu e Julieta: «se quiserem ouvir com benévola atenção, o nosso zelo há-de esforçar-se por corrigir o que na peça acharem digno de emenda». Inaceitável contemporização diante do público. Mas perdoemos Shakespeare, pois era um homem «politicamente correcto».
Compreendemos que um humorista como RAP não possa perder tempo com estas ninharias, ocupado a enfrentar multidões perigosas furiosamente teclando nos seus computadores, multidões que vandalizam com horrorosa cacofonia as páginas de Facebook das editoras, dos jornais de referência e das televisões e chegam mesmo a fazer ameaças perturbadoras como: «isso que o senhor disse é machismo». Quem pode resistir a ataque tão violento como este? Quem pode ficar impassível quando os valores da liberdade são atacados por mulheres sensíveis e alfabetizadas?
Compreendemos que RAP tenha de enfrentar irascíveis cardeais munidos com caldeiras de água benta, e donas de casa católicas, frequentadoras dos cursos espirituais dos jesuítas, e perigosas associações de pais de liceus prestigiados, e ameaçadoras advogadas de associações de protecção às vítimas, e selváticas e perigosas jornalistas do Diário de Notícias, e membros de coros alentejanos, e agremiações defensoras da moral pública, com o seu tentacular poder, e ferozes membros da associação dos amigos dos animais, e militantes de grupos activistas defensores da macrobiótica. O número de oponentes cresce todos os dias. Os idosos e reformados já se posicionam para atacar a liberdade e defender os bons costumes. Todos os braços são poucos para travar esta perigosa luta. O inimigo multiplica as suas forças, gerando milhares de pequenos balões de mensagens nas letais caixas de comentários.
Felizmente, temos homens como RAP. Homens que nunca deixarão de lutar em favor da liberdade, apesar de apenas podermos ouvir a sua voz nos frágeis e ameaçados espaços de informação como a TVI24, a Sport TV, a TSF, a Visão ou a Rádio Comercial. Apesar de frágeis, continuarão o seu corajoso trabalho. Não deixarão pisar a dignidade ortográfica da língua.
Guerras, injustiças, desigualdade económica, poder mediático das televisões e dos grandes grupos de comunicação, violências sobre as mulheres, racismo? Que são todas essas ninharias perante a escandalosa supressão de uma consoante surda?