terça-feira, 7 de julho de 2009

Agora e sempre, o maior pecado é sempre o da rebelião contra a morte

Compreendo que exista um certa recusa perante aquilo que hoje se costuma chamar o "circo mediático". Como não sentir uma ligeira indigestão perante o sistemático brilho da imagem. Mas como o caro leitor suspeitará, antes o circo mediático do que o "circo ascético" com a sua longa e meditada glorificação da hipocrisia, com o seu longo cortejo de doentes fingindo saúde, com o seu longo desfile de escravos ficcionado a libertação. É certo, existem assuntos mais prementes do que a chegada de um atleta: índices de desenvolvimento, questões científicas - meu deus , complexas questões científicas -, dúvidas sobre política económica, a escatologia, os problemas da salvação, a nutrição das crianças, o controlo dos vícios, as paixões tecnológicas, o dever da eficiência, os resultados da educação, estudo, trabalho, esforço, meditação, silêncio. Contudo, talvez fosse bom parar um pouco. Quem nos impele à crítica da veneração dos atletas? Que força se esconde sob a aparente pureza da busca de um sentido mais profundo nas coisas e nas acções? O que pretende de nós quem pede que não corramos ao estádio a coroar de flores e beijos os músculos do vencedor? Não será o atleta uma das últimas realizações do cada vez mais vão humanismo, uma das últimas possibilidades de opôr a sociedade do espectáculo à sociedade industrial, como se opõe fogo ao fogo, na tentativa de parar o incêndio que galga no flanco da montanha? Onde está a crítica furiosa contra o relógio que multiplica, divide e administra, racionalmente, claro está, o nosso tempo, considerando um desperdício - uma profunda irracionalidade - a contemplação de um corpo belo e veloz como os pés do mensageiro pela encosta? Sabemos como essa máquina industrial também trabalha com os corpos e os desejos. Mas atente-se no preconceito da pergunta: não irá Ronaldo perder-se na "movida"? E o atleta responde: «acha que foi a dormir que cheguei até aqui»? Ninguém mais do que o atleta conhece os ritmos e a persistência mecânica do trabalho. Aquilo que ninguém perdoa a Ronaldo não é a expressão inócua da sua beleza - o tão celebrado desenvolvimento económico confirma a vileza do vácuo da beleza e da eficiência todos os dias, em cada utilização "útil" do cartão multibanco. O que ninguém perdoa a Ronaldo é que ele tenha devolvido ao mundo a dignidade da glória olímpica. Não joga pela eternidade como Pelé, não joga pela alegria como Maradona,não jogo pela mecânica como Van Basten, não joga pela explosão como Best, não joga pela equipa como Xavi, não joga pela efeito como Kaká, não joga pela magia como Messi, não joga pela elegância como Zidane, não joga pela disciplina como Iniesta. Joga pelo prazer imediato que se esfuma em cada lance efémero, sem demonstrar o mínimo interesse pela "responsabilidade" da situação em que se encontra. Ele é o homem que pensa noutra coisa. Diria Píndaro que é “Feliz e digno de ser cantado pelos poetas aquele que/vencendo pelo vigor dos braços e agilidade das pernas/conquistou nos jogos por sua coragem e sua força/a mais alta recompensa». Ou esse outro poeta, cantor do jogo do chinquilho, que buscava no futebol apagar a frustração da vida mortal, buscava espaço e intuição, confessando nunca ter sentido tão perto a morte como certa vez, ao entrar no Estádio nacional, cheio de sol e de gente.

3 comentários:

binary solo disse...

Alf, aquilo que me preocupa é a forma como isto é conduzido e não a sua origem. A ideia de um produto em forma de gente que pode ser gozado e explorado por nós como consumidores. Isto não é um elogio do Ronaldo, mas sim o Real Madrid a ganhar dinheiro com quem aprecia o atleta e vai comprar a t-shirt do herói. E dessa forma não está lutar contra o relógio que regula a nossa vida condicionada. Está só a ajudar que ele passe mais depressa, sem que notemos que certa forma estamos todos a estupidificar.

alf disse...

Compreendo a apreensão. Contudo, não julgo negativo o exercício de fazer com que o tempo passe mais depressa. É verdade que o Real Madrid ganha muito com tudo isto. Mas essa era precisamente a questão: comparemos a dimensão democrática do Real Madrid (ou mesmo do Benfica, Sporting ou Porto) com a Coca-cola, o Ikea, a Sony, ou se quiseres a Mota Engil ou a Teixeira Duarte. POderão argumentar que tudo faz parte de uma imensa engrenagem onde vamos esmigalhando os nossos ossos e destilando a massa cerebral. Talvez. Porém, note-se o texto de Henrique Raposo - todos os Raposos deste mundo - e pensemos que talvez a estupidez ainda seja uma arma poderosa no momento em que o saber se aliou - por meio das universidades - ao poder governamental e ao poder empresarial. Enquanto o tempo passa, com maior ou menor lentidão, contemplemos o homem que sentado numa cama, brinca com a bola, indiferente ao poder do desejo exterior. Essa é por agora a sua grande lição.

ateixeira disse...

Aqui vão os meus dois cêntimos:

Cada um devia ser livre para fazer da sua vida o que quisesse (desde que tal não provocasse mal a terceiros). Seja isso filosofar pela noite fora ou ver notícias da ida do CR7 para Madrid. Mas ao mesmo tempo também eu sou livre para expor a minha opinião, análise e crítica de tais atitudes. Mas uma vez que isto se trata de um exercício intelectual acredito que seja meu dever ter que também dar uma opinião devidamente fundamentada.

Basicamente que devo dizer o porquê de pensar o que penso. Não é só chegar e dizer que está mal. É dizer por que é que eu acho que está mal. Não é fazer como o Raposo: mandar duas postas de pescada, entrecortadas por uma piadola a cheirar bafio, e um remate pseudo-intelectual pós-neo-moderno (confesso que não sei se o último termo de facto se refere a algo mas ia embalado).

dito tudo isto eu devo dizer que não acho nada mal o exercício de fazer passar o tempo mais tempo. Acho é muito mal quando só é isso (e coisas análogas) o que se resume a vida de um ser humano. Eu gosto muito do CR7 (um miudo que ao contrário de muitos de nós não tem medo de sonhar e mais importante não tem medo de ir em busca dos seus sonhos). Fico imensamente contente por ele estar a realizar um sonho de criança. A sério que fico. Mas agora ter que levar uma xaropada de tudo quanto é TV nacional durante o dia só porque tal é ser patriótico. Só por que tal é ser português (que aliás não sou) parece-me muito empobrecer o espírito humano. Muito mesmo. Quem me explica o que ganha Portugal enquanto nação com o facto do jogador mais caro do mundo e mais bem pago do mundo ser português? O que ganha o comum português? E já agora o incomum também?
Pois eu não encontro reposta para nenhuma desta respostas e parece-me mesmo mesquinho e rasteiro o facto de um motivo de orgulho de todo um país se resumir a isso.
Não quero embarcar em elitismos, nem pseudo-intelectualismos (porque não acredito nisso) mas quero apenas deixar patente que há coisas que são importantes. Coisas que decidem as nossas vidas, das vidas dos nossos amigos, e das vidas dos nossos descendentes...
Agora o facto do Raposo se perguntar porque estuda o que estuda. Quer dizer se realmente a pergunta é séria isso só quer dizer que ele deve mudar de área uma vez que não tem paixão pelo que faz (por favor note o profundo cinismo nesta palavras minhas caro leitor)