quarta-feira, 3 de junho de 2009

Eu que tenho sido cómico às criadas de hotel tenho agora que levar com o Rui Ramos e as suas interpretações oxfordianas da literatura portuguesa

O Historiador Rui Ramos assina um pequeno texto no jornal “I”, intitulado «Isto de não ser de esquerda». Partindo de uma rememoração sobre a infância, tema, aliás, bastante revisitado pelos liberais nas últimas semanas, lança-se numa elaboração vigorosa sobre escolhas adolescentes entre esquerda e direita, facto que, sem dúvida, poderá estar relacionado com o facto da crise se poder atribuir inteiramente ao socialismo estatista e nada ter a ver com as reiteradas promessas de felicidade liberal que agora se esfumam, ingratamente, sob a espuma dos dias. De qualquer forma, sopram ventos nostálgicos. O verão vai entrando com os seus serões tórridos, as searas do sul cobrem-se de tons amarelos. Secam as ervas, corta-se o trigo e Rui Ramos escreve. Escreve, para nós, um texto em que desvenda, finalmente, a razão de ser das suas latitudes políticas. Eu, que não dormia há três meses tentando interpretar, retrospectivamente, as deambulações de Rui Ramos, fiquei tranquilo, apaguei a luz, recostei-me na almofada e pude, por fim, adormecer. Quer saber o leitor o segredo desta paz? Saber que «Henry James, Borges, Nabokov não eram de esquerda. Os Estados Unidos não eram de esquerda. A rapariga mais bonita do liceu também não era, aparentemente, de esquerda.» Et voilá! Eis uma revelação que podemos, inteiramente, qualificar como profundamente política. A rapariga mais bonita do liceu não era de esquerda! Mas, em todo o caso, «o que era não ser de esquerda?» Ramos responde: «Era ler os poemas de Fernando Pessoa sem os reduzir à "expressão da angústia de classe da burguesia". Era reconhecer que o Natal não era quando um homem quisesse ou que o mundo não pulava e avançava como bola colorida nas mãos de uma criança.» Com efeito, também atravessei o tempo, acumulando recordações. Entre outras coisas que me escuso de comentar, tive um piriquito adestrado na leitura dos poemas de Fernando Pessoa que insistia muito na interpretação subjectiva de «ela canta pobre ceifeira». Por vezes, chegava até a tirar debaixo da asa direita um grosso volume de O Capital, onde cuspia repetidas vezes, enquanto pronunciava bem alto: «Ó rodas e engrenagens: r-r-r-r-r-r-r-eterno», largando depois vivas à monarquia Constitucional. Por outro lado, o Natal foi sempre para mim uma situação, como dizer, facilmente disponível. Às vezes, quando a escola terminava, e a tarde descia trazendo nas suas asas o alaranjado do poente, eu entrava no café do senhor Rodrigues, estacava diante da porta e atirava arrogante: Queria um Natal! E o senhor Rodrigues suspendia os rabiscos contabilísticos, lançados naqueles pequenos caderninhos de papel manteiga, abria a última gaveta do balcão e oferecia-me um Natal. Mas isto foi muito antes de ter tido a grande revelação. Era no começo das aulas. A chuva batia em cadência nos vidros, fazendo da sala um amplo convés de um navio que balançasse no meio da tempestade. Ventos fortes faziam girar no céu enegrecido pequenas folhas de plátano e papéis velhos. Abri a medo o livro de português, enquanto o professor explicava uma operação aritmetica, e reparei na fotografia de um homem de rosto enrugado mas com uma jovialidade que inundava toda a página. Aqui abro um parentisis para referir ao caro leitor, antes de terminar a minha rememoração, uma última característica do que, para Rui Ramos, era não ser de esquerda: «Era chamar as coisas pelos nomes e perceber os limites de tudo.» Com efeito, também nesse dia de chuva e nuvens negras eu percebi os limites de tudo e chamei as coisas pelos nomes. Chamei o céu de grande tecto anoitecido, à chuva chamei de pequenas dádivas de verdade, à tarde longa chamei a longa travessia da floresta. No livro de português – numa escola que a esquerda multiplicou e que os meus pais, de esquerda, nunca puderam frequentar – podia ler-se: «sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança/ como bola colorida entre as mãos de uma criança.» O homem, de rosto enrugado, chamava-se António Gedeão. Tanto ele como Pessoa, ensinaram-nos os limites de tudo. É pena que Rui Ramos, agarrado a uma bandeira que se esfarrapa ao vento, nem isso compreenda. Não compreenda que Pessoa ou Gedeão, mais próximos do que julgam os nossos especialistas de Oxford, nos ensinaram os limites de tudo para que, precisamente, os pudessemos estilhaçar com os nossos sonhos.

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