Hoje dei provavelmente a minha última aula. Não tenho tempo. Não tenho possibilidades. Que é como quem diz que não aguento. Não tenho físico, não tenho dinheiro, não tenho culpa, não tenho competência, não tenho autoridade. Não tenho, sobretudo, autoridade, no sentido em que não sou autor, não publico, não ambiciono, não revejo textos, não frequento exposições. Nem carreira. Nem profissionalização. Não suporto o cheiro da sala. Não suporto janelas fechadas, não me agradam as salas de professores, nem as piadas sobre a ignorância dos alunos, nem os comentários dos pais, nem as recomendações sobre a eficácia dos materiais, das abordagens. Não aguento exames. Não suporto o castigo, não suporto o toque, não surporto as faltas. Odeio a avaliação. Meu deus, como eu odeio a avaliação. A redução mentecapta do real travestida de ciência dos números. Não aguento. Nem a emoção dos sorrisos, nem os cortes profundos que a ciência da explicação vai fazendo no meu crâneo. É que os professores (lembre-se que eu não sou professor, nunca serei professor e tenho mesmo uma certa raiva adolescente contra a profissionalização de todo o ensino) talvez ainda não tenham compreendido o verdadeiro perigo de ensinar. A morte espreitando em cada questão, em cada ideia puxada do fundo do poço, em cada conceito trazido à vida com a tensão do obstetra. A morte prometida em cada tópico compreendido. Em cada díscipulo que nos compreende finalmente, e sente vibrar no sangue a ambição da vida e vai já erguendo a promessa do punhal. E a nossa alegria de o ver triunfar de nós, ainda com as mãos ensanguentadas. Fechei a porta, devagar, limpei o rosto, caminhei pelo corredor, distanciando-me dos gritos, das gargalhadas, dos agradecimentos, das saudações, das troças, dos elogios, de quem me fitou profundamente quando expunha uma ideia, de quem me olhou nos olhos e percorreu comigo os caminhos da floresta, sem se perder, sem evitar os uivos, lama, a nebina da noite, a indecisão de uma clareira onde se avistam dois caminhos. Fui guiando pela mão aqueles que aceitaram vir. Enquanto caminho pelo corredor, e o portão se aproxima, vou deixando para trás esses rostos, que num movimento, suspendendo-se, permancem imóveis, seguindo-me: como a gaivota que plana sob o oceano um pouco antes da tempestade se abater sobre a costa e anuncia já, com a leve mutação do bico, as primeiras chuvas que caiem sobre a água. Os rostos sondam as palavras que deixo ecoar até ao fim da sala: a destruição das bombas da aviação inglesa nas cidades alemãs arrasadas pela destruição da guerra, o sentido que nos escapa, a forma como vamos depositando na sombra os nossos mais belos tesouros, como queimamos os nossos mais secretos desejos. Faço uma pausa e leio em voz alta «O médico que vê as doenças desenvolverem-se nos corpo compreende melhor a mortalidade do que o florescimento da vida. Prarece-lhe prodigioso durarmos sequer um dia.(...) O sol de inverno mostra-nos como logo fenece a luz nas cinzas, como logo a noite nos envolve. (...) Ligar o noem a uma obra não confere o direito a ser recordado, pois quem sabe se os melhores não terão desaparecido sem deixar rasto. A semente da papoula cresce em toda a parte, mas quando de repente a desgraça cai sobre nós, como neve num dia de verão, só queremos é ser esquecidos». Têm catorze anos e compreendem. Compreendem, os olhos mudos, que não me é possível continuar sem arriscar a vida. Deus sabe como pagarei caro a cobardia de não voltar a fitar esses rostos. De não voltar a guiar os seus olhos entre as ruínas das cidades bombardeadas, entre as filas intermináveis de sulistas que emigram para os centros urbanos em busca de trabalho, os cursos de água, a importância das montanhas na repartição da riqueza, a força da demagogia, Atenas sitiada, Platão calcando as uvas na planícies áticas, as rotas dos veleiros ingleses carregados de ouro, as batalhas da Alexandria, as tropas de Napoleão morrendo no gelo, os incêndios do Parlamento alemão, as veias inflamadas de Hitler cuspindo fogo sobre Nuremberga, as florestas plantadas contra erosão dos mares, a planificação das sementeiras, as novas cidades, os velhso tratados de paz rasgados por um rei enlouquecido, os apitos prolongados dos transatlânticos ao deixar os portos da América, os aviões despenhados nos campos da provença, conspirações, assassinatos, revoluções, a espuma que deixa vincada na água o navio que vai a caminho de Antuérpia, as procissões dos reis absolutos, os punhais palacianos, os largos silêncios dos salões onde se abanam damas com o leque encomendado de Paris, o grande silêncio sepulcral dos carvalhos da Floresta Negra depois de um tiro de canhão, a solidão do ministro que leva não mão a declaração de guerra, Maria Antonieta chorando em frente à guilhotina, os braços vibrantes do rapaz que faz rufar o tambor contra a infantaria turca, o falcão de Henrique VIII sobrevoando o parque de Windsor, emigrantes portugueses embarcados a caminho do Brasil e a chuva persistente no dia da partida. A chuva persistent, enquanto atravesso o corredor. Deus sabe como pagarei este caminho que faço sem olhar para trás. Volto ao silêncio dos livros, fecho-me, recolho ao pó e à penitência, enterro-me no trabalho da língua, penso, morro, despeço-me, ó Ruy, dessa terra da alegria.
4 comentários:
Curiosa,a escassez de comentários no seu blogue,que visitei hoje pela 1ª vez por link do Maradona. Difere da média por ser bem escrito,ter referências culturais não habituais neste meio,fazer "pastiches" literários engraçados,etc. Provavelmente é por isso mesmo que pouco o comentam. Dois pontos: 1)Se é verdade que ensinava e vai deixar de o fazer,acho lamentável pois as suas aulas deviam ter piada no melhor sentido,de despertar o interesse dos alunos com originalidade e imaginação. 2) Aplausos pela irónica catilinária no pomposo Gonçalves,que escreve bem e sinteticamente,mas tão rasteiro na obsessão anti-socrática,e tão aberto aos relentos proto e para- fascitoides.Que ao lançamento da selecta compareçam Eanes,Pachecos,Medeiros,etc. diz bem do nivel da nossa sociedade. E na Bertrand! Gostava de saber o que comentaria o Eça...
Um dia falaremos sobre tudo isto, se quiseres, sobre a magia e a morte de ensinar.
Tenho pena pela tua escolha, como sabes intercedi por ti.
Mas percebo.
Joana
Um dos teus maiores elogios Alf. Tu não querendo lá estar, já chegaste ao Olimpo. Nesta tua saída de campo, nós que estamos aqui aplaudimos de pé.
ps. caro anónimo, volte sempre. O elogio continua na sua demanda pelas derrotas. Porque admiti-la é a única coisa que nos resta.
Já há muito que cá não vinha e hoje que venho é para me entristecer.
Dos teus pensamentos destaco estes porque também muito me dizem:
Não tenho tempo. Não tenho possibilidades. Não tenho competência, não tenho autoridade. Não suporto janelas fechadas, não me agradam as salas de professores, nem as piadas sobre a ignorância dos alunos, nem os comentários dos pais.
Odeio a avaliação. Meu deus, como eu odeio a avaliação. A redução mentecapta do real travestida de ciência dos números. Não aguento.
É que os professores (lembre-se que eu não sou professor, nunca serei professor e tenho mesmo uma certa raiva adolescente contra a profissionalização de todo o ensino) talvez ainda não tenham compreendido o verdadeiro perigo de ensinar.
Perdoem-me o copy paste fácil mas é mais fácil dizer quando já foi dito e o que está a bold é o que mais me dói. Era só sonhos quando comecei e agora sinto que falhei. Que falhei comigo. Que falhei para com os miúdos. Que falhei mesmo a sério.
Para o ano também não lá estou e fica a minha admiração por quem fica e faz um bom trabalho
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