Nestes dias em que muitos acreditam serem os últimos tinha feito promessa (mas sem caminhada em estrada nacional, nem o devidamente uniformizante colete reflector) de não me referir mais a assuntos de casino. Porém, o caro leitor compreenderá que uma palavra é devida ao grande cântico de alegria que por todo o lado se escuta. Desde o Polícia Sinaleiro da Avenida de Berna ao sapiencial David Borges, devidamente sentado contra um cenário pejado de imagens coloridas, todos são unânimes: o F. C. Porto ganhou mais, o F. C. Porto tem uma estrutura profissional, o F. C. Porto blinda, como ninguém, o seu balneário, o F. C. Porto tem coesão, rigor, empreendorism, o F. C. Porto tem estratégia, o F. C. Porto tem um Presidente que cura paralíticos com o poder das suas mãos, o F. C. Porto vai tirar Portugal da cauda da Europa, o F. C. Porto vai travar a gripe A, o F. C. Porto vai viajar à velocidade da luz e devolver todos os campeonatos gamados em jantaradas de fruta e bebidas destiladas, repletos de analfabetos de nacionalidade portuguesa na meia idade e munidos de um bigode. Não se agite, caríssimo leitor: vamos por partes.
1. Se o F. C. Porto está a anos luz do S. L. Benfica, porque razão não conseguiu esta época mais do que um empate nos dois jogos de confronto directo?
2. Peço ao caro leitor que trave um pouco o entusiasmo, pois não vamos discutir o mérito futebolístico das vitórias do F. C. Porto, exercício tão exequível como achar um coerência lógica nos lançamentos da malha efectuados em todos os largos de aldeia a sul de Salir de Matos, nos Domingos pares de todos os meses de Agosto dos últimos quarenta anos.
3. Quem ainda não estupidificou totalmente deve poder colocar algumas questões de manifesto interesse: porque será que uma cidade com um milhão de habitantes, onde estão colocadas algumas das melhores Universidades de Portugal (incluindo o mais avançado centro de investigação desportiva de onde saíram José Mourinho e Jesulado Ferreira) com uma massa crítica considerável não consegue que nenhum dos seus dois clubes quebre a hegemonia do F. C. Porto dos últimos vinte anos?
4. O Futebol é, evidentemente, um fenómeno irracional. Daí não haver exercício mais ridículo do que a defesa do mérito futebolístico. Os adeptos do F. C. Porto festejam as vitórias do seu clube mesmo sabendo, como muitos sabem, que elas estão construídas sobre o mais gritante condicionamento das regras de justiça e equidade que deveriam estar na base do desporto. Não é por acaso que, sistematicamente, acabam a invocar o caso Calabote e a ligação do Benfica ao Estado Novo. Sabem que a força do F. C. Porto está baseada na corrupção que a democracia veio permitir, assim como o Benfica utilizou o regime autoritário para expandir o poder futebolístico de Lisboa, embora se exagere, muitas vezes, nesta matéria - basta ver o exemplo da final da Taça com a Académica em 1962 em que os jogadores da Luz entraram a passo lento ao lado dos jogadores da académica num protesto colectivo contra a repressão dos estudantes em Coimbra.
5. Não me parece que exista solução para este problema. Nem é necessária. Os equilíbrios vão irremediavelmente sofrer alterações. Tarde ou cedo virá o dia em que veremos os que agora defendem o mérito científico das vitórias e a irrelevância das arbitragens cuspirem labaredas de fogo contra o sistema: basta para tal que seja o outro vencer.
6. De uma forma ou outra, e essa é a nossa tragédia, em Portugal o caso assume proporções dantescas na exacta proporção do nosso dantesco analfabetismo e brutal ignorância: os dois pilares que sempre, no futebol como na vida, sustentam a apologia da vitória.
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