O funcionamento do mercado tem sido apontado por diversos comentadores como um factor facilitador de progresso. Com efeito, o progresso é assinalável em vários sectores da vida pública. Consideremos por exemplo a escrita de canções. A avalanche inspiradora dos artistas/publicitários, que todos os dias entra na sala de jantar via televisão pela mão da banca de retalho e dos operadores de telecomunicações, é sinal desta vanguarda libertadora da arte. Depois de quase ter sido aprisionada nas garras do marxismo (essa mentira elegante chamada neo-realismo) a arte surje finalmente, e apenas só, pela mão da própria arte. Claro que traz trela e coleira onde se pode ler Millenium, Zon, Optimus, Continente, Nike, SuperBock, além de um cheque de 5 000 euros no bolso. Mas isso que importa a espíritos verdadeiramente livres?
Ana Free e Tony Carreira merecem, a título de exemplo, não ser negligenciados pela crítica literária, enquanto casos deste novo-mundo onde o mercado democratizou o gosto (e também o paracetamol para acalmar a dor e o vómito, com a graça de Deus). O Elogio da Derrota não alinha em reacções e assume as suas responsabilidades, deixando à consideração dos leitores um estudo comparativo sobre a fulgurante novidade (qualitativa) dos artistas consagrados pelo mercado.
O texto de Tony Carreira, «Eu sem ti», lança-nos no verdadeiro universo da autocrítica althusseriana, não através do corte epistemológico da ciência marxista mas, desta feita, por meio da reconversão burguesa do afecto amoroso. A própria sintetização simbólica do título «Eu», onde se junta a ausência do sujeito amado (da sujeita, entenda-se, nada de más interpretações) «sem ti», revela-nos a precária existência do homem dominado pelo amor. A sensação de desorientação é, aliás, uma das marcas mais significativas da ausência de valores. Carreira recorre à ideia de luz numa sugestão imagética invulgar: a contraposição trevas/ luz, desorientação/ encontro. Quanto o poeta afirma «se não fosse a tua luz/ esse olhar que me conduz/ simplesmente eu era mais um caso perdido» fica patente uma associação entre o encontro com a amada, o passar do tempo e a mudança radical do valor conferido pelo poeta à sua própria pessoa. A celebração do reencontro com um projecto de vida transforma-se no verdadeiro mote de todo o texto. Sinal desta nova realidade é a repetição final do refrão. «Eu era», com acentuação longa na última sílaba onde o poeta sugere: «Eu era» mas já não sou. Como quem diz: eu era «um eterno vagabundo à tua espera» mas deixei de ser, talvez devido às maravilhas do subprime e da generosidade do crédito hipotecário. Portanto, ao sugerir a afirmação reflexiva «Eu era» é como se perguntasse retoricamente: quem era eu antes desse encontro com a luz? Seria um homem sem casa (um pequeno T2)? Ao que responde «um Inverno sem sinais de Primavera». A casa, por onde o sujeito poético deixou a vagabundagem, é a própria amada e ele uma nova Primavera talvez já com sinais do Verão. Com efeito, o leitor pergunta-se sub-repticiamente: Não eras o quê? Não era um caso perdido. Porém, todo o poeta, e Tony Carreira não deixa de o afirmar constantemente, vive sempre na iminência de se transformar num caso perdido. Eu, da minha parte, confesso que o sou há já muito tempo.
O texto de Tony Carreira, «Eu sem ti», lança-nos no verdadeiro universo da autocrítica althusseriana, não através do corte epistemológico da ciência marxista mas, desta feita, por meio da reconversão burguesa do afecto amoroso. A própria sintetização simbólica do título «Eu», onde se junta a ausência do sujeito amado (da sujeita, entenda-se, nada de más interpretações) «sem ti», revela-nos a precária existência do homem dominado pelo amor. A sensação de desorientação é, aliás, uma das marcas mais significativas da ausência de valores. Carreira recorre à ideia de luz numa sugestão imagética invulgar: a contraposição trevas/ luz, desorientação/ encontro. Quanto o poeta afirma «se não fosse a tua luz/ esse olhar que me conduz/ simplesmente eu era mais um caso perdido» fica patente uma associação entre o encontro com a amada, o passar do tempo e a mudança radical do valor conferido pelo poeta à sua própria pessoa. A celebração do reencontro com um projecto de vida transforma-se no verdadeiro mote de todo o texto. Sinal desta nova realidade é a repetição final do refrão. «Eu era», com acentuação longa na última sílaba onde o poeta sugere: «Eu era» mas já não sou. Como quem diz: eu era «um eterno vagabundo à tua espera» mas deixei de ser, talvez devido às maravilhas do subprime e da generosidade do crédito hipotecário. Portanto, ao sugerir a afirmação reflexiva «Eu era» é como se perguntasse retoricamente: quem era eu antes desse encontro com a luz? Seria um homem sem casa (um pequeno T2)? Ao que responde «um Inverno sem sinais de Primavera». A casa, por onde o sujeito poético deixou a vagabundagem, é a própria amada e ele uma nova Primavera talvez já com sinais do Verão. Com efeito, o leitor pergunta-se sub-repticiamente: Não eras o quê? Não era um caso perdido. Porém, todo o poeta, e Tony Carreira não deixa de o afirmar constantemente, vive sempre na iminência de se transformar num caso perdido. Eu, da minha parte, confesso que o sou há já muito tempo.
Por sua vez, Ana Free traz consigo toda uma galeria de sugestões poético-económicas. Na canção que confere profunda originalidade ao seu nome artístico, «Free», somos transportados para um carrocel de sensações só equiparável à turbulência dos mercados financeiros. «Spinning round /I never thought that I'd find you (no)/ Running round/ In circles, I try not to, not to (oh)». Repare o caro leitor na subtileza das interjeições (no) e (oh) como se o sujeito poético recusasse a dor de entalar o dedo na porta ou mesmo o toque desprevenido da sopa quente na língua. Através desta rica sugestão, ficamos a saber que rodopiar é uma das mais eficazes formas de encontrar alguma coisa, mesmo que seja apenas um poste ou um muro onde possamos bater com a cabeça («oh», «no»). Depois, temos uma aproximação à ideia Carreiriana do encontro-salvação, uma alegada influência cristológica onde o amado é comparado a uma «life-line» que permite reconfigurar o sentido da existência. Ana Free não nos recorda apenas que o encontro, depois de um bom rodopio, se pode associar ao alívio do maluco quando interrompe as cabeçadas na parede. «Now I see you show me what it means, to be free». Na verdade, o leitor pode constatar que o amado revela ao sujeito poético o que realmente significa ser livre: rodopiar, andar por aí, até encontrar um referente de sentido. A profundidade da sugestão remete para o linguistic turn dos anos oitenta, onde, finalmente, impulsionada pela «morte de Deus», nietzscheanamente informada pela superação da moral universal, a poeta reconhece o coração humano como único lugar passível de ser a forja das tábuas da lei. Ela demonstra, aliás, por meio desta invocação contraditória (liberdade/prisão) que o amado vem descodificar os sentidos ocultos das coisas (uma forma cristológica do logos grego salpicado pelos textos marxistas e revolucionários que pariu já coisas tão fabulosas como a teologia da libertação). Assim, ao invocar a necessidade de permanecer junto do amado, Ana Free mostra-nos, originalmente, diga-se, que o amor é um contraditório lugar de paradoxos. Repare o leitor na forma como, no refrão final, Ana Free associa a necessidade («I just need you beside me») com a sensação de liberdade («that's free») numa recontrução gramatical que pode também ser lida com uma dádiva (é de graça). Mais uma vez, a influência dos estudos económicos conferem novas cores ao universo metafórico:
«To be free, I need you close to me
Please don't leave when you complete me
Cuz I don't need to worry, it's so crazy how you change me
I just need you beside me, and that's free
I just need you beside me, and that's free yeah
I just need you beside me, and that's free
I just need you beside me, and that's free»
O amor apresenta-se como território de liberdade, conferindo sentido a todo o mundo real, sendo, de resto, de graça. Esta influência do liberalismo na produção dos significados vai revolucionar a literatura mundial. Para quê pagar aquilo que pode ser de graça?
O amor apresenta-se como território de liberdade, conferindo sentido a todo o mundo real, sendo, de resto, de graça. Esta influência do liberalismo na produção dos significados vai revolucionar a literatura mundial. Para quê pagar aquilo que pode ser de graça?
Numa palavra: de envergonhar Camões.
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