Capítulo I
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A propósito, já reparam nos nossos apresentadores de televisão? Aquela pele bem tratada em senhoras que já não vão para novas, o cabelo penteado com classe, o cuidado e a elegância das roupas, patrocinadas pelas mais elegantes casas da moda, os dentes de marfim, as mãos de imperatriz, as frases cadenciadas, a simpatia sem preço, a disponibilidade sem limite? E os homens, tão charmosos de fazer inveja a qualquer marido, com o cabelo grisalho, mas só até se ouvir o ai, ai das divorciadas, o porte moderado, a inteligência prodigiosa, a riqueza do vocabulário, e o cuidado com cada frase, pausada, enxuta, cristalina na forma como se dirige, como uma criada bem treinada, até aos ouvidos do telespetador, sempre atenciosos com as nossas viúvas, velhinhos e reformados, prontos a sorrirem para as mais desgraçadas criancinhas. Um regalo de saúde e serviço público.
Na verdade, o volume de televisão naquela casa atingia níveis insuportáveis e António Antão, pensando-se a pessoa mais inteligente à face da terra, gostava de experimentar a paciência oriental na solidão do seu quarto (outra parvoíce, e bem o dissemos nós, enquanto partilhámos os bancos da Universidade, mas já lá vamos) e por isso, não captou o sentido de nenhum dos dois anúncios, nem das calças, nem do detergente, pois a sua atenção foi, de imediato, captada pelas cores vivas dos jornais no interior do roupeiro, notando-se o impressivo esgar de esforço na face de um jogador, o qual envergava uma camisola de competição de cor garrida, onde se destacava, apesar do movimento, da má qualidade da fotografia, do tempo passado sobre a impressão do jornal, e da confusão reinante no seu armário, o pequeno símbolo clube desportivo pelo qual sofrera um profundo desgaste emocional durante a sua infância, fenómeno tão destemperado e irracional como são todos os desgastes emocionais quando considerados em face de um juízo posterior. António Antão leu, a medo, a frase sonante atribuída a esse jogador, um jogador a braços com a justificação de uma derrota mais do que provável, pelo menos assim o considerou António Antão na época em que se desenrolara o jogo, e isto soube-o ao consultar, fechando os olhos numa fração de segundo, as centenas de juízos em torno da probabilidade de vitória e derrota nas centenas de jogos acumulados na sua memória, avivada agora pelo título da primeira página do jornal: «fizemos tudo o que foi possível». Não fizeram nada, pensou António Antão, e continuou a hesitar ainda durante um longo espaço de tempo diante daquele amontoado de roupa. Reparem que este «longo espaço» não vai acompanhado da unidade de medida, pois estou cansado destas eternas flutuações. Usamos o espaço para definir o tempo e usamos o tempo para definir o espaço, e ao fim e ao cabo, que sabemos nós sobre isto? Também o fetiche pelas séries temporais introduzidas na mecânica clássica deu origem a um enorme desenvolvimento da física e não é preciso estar sempre a fazer entrar os bombos e as cornetas por causa disso. Parto aqui do princípio de que o leitor conhece os dilemas da existência, e o poder viperino da recordação no dinamitar de todos os nossos planos de sossego interior, e por isso mesmo, não necessita que lhe deem lições sobre a vida interna da sua mente. Neste caso, sabemos que existe uma urgência para António Antão, um número de telefone para o qual se ligou e de onde se obteve uma resposta enigmática, através de uma voz bonita e quente, e deixemos por momentos o tipo de urgência, pois sabemos que é preciso sair de casa. Mas ninguém vai dirigir-se para a rua de pijama, ou mesmo nu, acabado de sair do banho, e com o cabelo ainda a pingar. Em geral, os escritores arrumam estas coisas com uma expressão do tipo «vestiu um casaco» ou, muito pior, fazem por ignorar que é preciso tomar decisões sobre o vestuário (o que se percebe quando constatamos de que forma os escritores aparecem vestidos nas entrevistas e nos festivais literários). Depois inventaram o fluxo da consciência e vai de relembrar avós decrépitos a gemer com doenças prolongadas, recordações da mãezinha a tocar no seu piano, ou os passinhos do bebé, do irmãozito mais novo, no soalho da velha quinta, as cores bizarras das mais esquisitas espécies de árvores perdidas em passados coloniais (mas estas pessoas consultam manuais de botânica?) a forma recursiva do penteado da tia, etc, etc. Lá está, mesmo nós, que não somos escritores, mas simples colegas de Universidade de António Antão (mas já lá vamos) acabamos por cair nestes fandangos. Todavia, no que respeita à articulação de uma camisa de flanela xadrez com umas calças de bombazina, nem uma palavra, quando estas, meu caros, são as verdadeiras tragédias de todos os dias, das quais depende, muitas vezes, a salvação económica das nações e a própria saúde dos povos.
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António Antão talvez não esteja tão atento à relação entre o vestuário e as formas do seu próprio corpo, uma vez que não tem nesse corpo, que aliás detesta, o principal troféu, isto já todos sabemos, mas qual o homem que não sofre indescritíveis horrores no labirinto do prestígio? A roupa está velha, fora de moda, e António Antão sabe bem que se não pode aparentar estatuto, envergando estes farrapos, pois sem poder de compra, sem uma nota no bolso, não se pode apresentar o mais pequeno vislumbre do prestígio sagrado de uma marca minimamente respeitada e Antão sabe bem como é perigoso enfrentar olhares alheios sem a proteção dos símbolos. Contudo, a má sorte sopra onde quer, e o seu armário é um cemitério de improvisações. Podia agora aduzir vários exemplos, mas o próprio pediu-me encarecidamente, ao rever este texto, para não me perder em assuntos de uma sordidez sociológica inegável. António Antão viu uns ténis brancos, comprados inadvertidamente numa feira, as calças confecionadas pela mãe (onde já se viu isto?) e uma camisola azul turquesa de uma conhecida equipa de futebol britânica, mas esta foi comprada a um cigano, e terá chegado a Portugal na traseira de camiões guiados por delinquentes. Assim, não pode dizer-se que a camisola seja capaz de convencer alguém sobre as virtudes do seu portador, e dos ténis nem se fala. Por isso, António Antão está de pé e hesita. Irritado com o problema, regressa ao quarto e retira um livro da prateleira. Procura o ano de 1976, pois os textos desse livro estão ordenados por ano, e Antão lembra-se de ter passado os olhos por especulações que talvez agora sejam de alguma utilidade. Finalmente encontra: «Modeling Strategy Shifts in a Problem Solving Task». Senta-se na cama e deixa cair a cabeça sobre a almofada, e com o livro na mão, sustentado sobre a cabeça, o que faz doer os braços, ali fica deitado sobre uma manta grossa, muito parecida com as mantas tradicionais confecionadas pelos pastores do seu país, e lê com rapidez a argumentação do autor, um velhinho americano, académico versado em todas as grandes disciplinas do pensamento. Coincidência das coincidências. António Antão não sabe, mas nesse preciso momento, o autor do artigo encontra-se no último minuto da sua vida, depois de oitenta e quatro anos de uma virtuosa e espetacular combustão do cérebro, na tentativa de encontrar os limites do raciocínio, uma vida concebida e educada, no amor e na busca da beleza, por um engenheiro eletrotécnico e uma pianista descendente de alemães construtores de instrumentos, emigrantes como tantos outros, salvos pela furiosa beleza do continente americano. Ainda Antão na acabou de ler o curto texto e já o velhinho mergulha nas trevas de um inverno de final indeterminado, e António Antão observa, através da janela, um grupo de pássaros em direção ao sul, num movimento coordenado mas aleatório e, por isso, sente um arrepio na cabeça. A morte é, para António Antão, e desde sempre, sinónimo de uma imagem recorrente, contou-mo várias vezes, enquanto eu escondia o riso: ainda não fez treze anos e está sentado numa planície de gelo, infinita e bela, e existe apenas uma mesa e uma folha de papel. Não existe o medo, e o frio está muito longe de ser insuportável, embora sinta um pequeno desconforto, pois os dedos mexem-se com dificuldade, na tentativa de resolver uma equação rabiscada numa folha de papel. Embora sinta vontade de chegar ao resultado, sabe como é difícil, e por qualquer razão desconhecida, sente um prazer moderado conforme vai desdobrando os termos em linhas sucessivas, sem nunca atingir um efeito de clareza, cada vez mais cansado e cada vez mais insatisfeito com aquela linguagem exata, mas rígida, incapaz de expressar as sensações muito obscuras de quem tenta expressar um resultado exato. Nestas alturas, quanto António Antão sente a sua cabeça a mergulhar num abismo, o mundo dos vivos regressa à sua atenção, e acaba sempre por perguntar a quem esteja mais perto:
- Que horas são?
Mas julgará o leitor que eu tenho cara de relógio?
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Mal António Antão terminou a leitura do texto, sentiu-se animado de uma nova força. enfrentou o molho de calças e camisas munido de novos instrumentos. Entretanto, na sua mente, a voz do outro lado do telefone fazia voos rasantes sobre o horizonte da sua atenção, e nos intervalos, Antão tentava concentrar-se nas características da roupa. Mas agora tinha um método. Começou a falar em voz alta:
- Escolher a roupa apropriada. Apropriada a quê? A causar boa impressão diante da rapariga detentora daquela magnífica voz (suave e bela) a rapariga com que falei agora mesmo ao telefone. Mas suave e bela porquê? Há algo de familiar nessa voz, por isso a suavidade e a beleza são sempre um reconhecimento. Familiar em termos de conhecimento da pessoa em causa ou familiar em termos de semelhança da voz da pessoa em causa em relação à voz de outras pessoas já conhecidas? Perante a impaciência, abandonar as rotinas de pesquisa - e António Antão, fechando os olhos recomeçou:
- Escolher a roupa apropriada para apanhar o autocarro a tempo. Quanto tempo me resta? - e fixou os olhos no relógio, rodando ligeiramente o pulso: - Dez minutos. Dez minutos são suficientes? Se correr, claramente, mais do que suficientes. Mas estou mais velho, e não tenho feito exercício, além disso é impensável uma queda, ou chegar ao local combinado, suado e com a camisa encharcada. Mas qual camisa? Calma. Não posso cair, nem suar muito. Consultar situações semelhantes. No passado, dez minutos foram suficientes para escolher a roupa e apanhar o autocarro? Sim. Escolher roupa de imediato e sem perder mais tempo.
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- Meu Deus, como é possível perder tanto tempo com banalidades.
Vestiu a primeira coisa que encontrou e já ia em corrida pela avenida, quando o autocarro colocou a cabeça amarela entre as fileiras de prédios, e preparando-se para aumentar a velocidade da corrida, António Antão reparou no cotovelo roto da camisola de lã. Indiferente, acelerou o movimento, e chegou a sprintar, tendo discutido a entrada no autocarro até ao último momento, atrapalhado por uma senhora, como dizer, africana (está bem assim?) muito sorridente, apesar do esforço, cheia de sacos de plástico carregadinhos com latas, frutas e outras mercearias, e um adolescente que cometia a proeza de se locomover cheio de roupa nas mãos, pois tirara certamente o casaco e camisola por excesso de calor, levando ainda uma mochila, e pendurados a tiracolo um saco com uma bola de futebol, e um segundo saco azul cheio de livros. Já no autocarro, o adolescente sentou-se junto da janela, naqueles bancos singulares que são a delícia dos melancólicos, e viu passar na rua a sucessão dos postes de eletricidade, o conjunto de letreiros luminosos, o olhar desesperado de um polícia, o caminhar diagonal de um cão, uma velhinha coxa carregada de mantas peruanas, uma rapariga em corrida com espetacular equilíbrio sobre o salto agulha dos sapatos, o dono de uma loja a vociferar com um chinês, e neste momento, o adolescente terá colocado os pés em cima do assento da frente e logo um reformado, que tresandava a lixívia, muito zeloso com o património público, resolveu interpelar o jovem:
- Ouve lá, foi isso que te ensinaram em casa?
- Estou a fazer algum mal? - respondeu o rapazola.
António Antão resolveu intervir em defesa do rapazola e gerou-se uma interessante discussão sobre o futuro das novas gerações, a decadência dos costumes, a evolução do linguajar popular e mesmo sobre a pertinência de uma correta posição do organismo, sobretudo quando jovem, em face das péssimas cadeiras e condições de viagem da empresa de transportes coletivos. Intervieram em defesa do rapazola um desempregado e duas cabeleireiras. Estas duas senhoras eram por sinal bem elegantes, segurando em compridos dedos, de onde emergiam umas reptilíneas unhas grená, revistas de altíssimo conteúdo literário, onde podia ler-se uma interessante análise sobre o número de estaladas desferidas por um concorrente de um qualquer concurso televisivo no seu pobre e velhinho pai. Atenção, não estou com isto a criticar as camadas populares da nossa esforçada República, mas devo ser fiel aos factos. Aliás, as cabeleireiras, conhecidas de António Antão, mastigavam pastilha elástica. E que tem isso de errado? O leitor já reparou bem como certas senhoras mastigam a pastilha numa oscilação mandibular plena de elementos estéticos e desportivos? O que dizem sobre isto os nossos escritores e críticos literários? O que dizem sobre isto os nossos catedráticos de motricidade humana? E no entanto, é vê-las, de braços cruzados, prontas a disputar qualquer conversa, empoleiradas nos saltos das suas elegantes botas de mosqueteiro, casacos plastificados, azul-fluor e vermelho explosão, um só risco no contorno inferior dos olhos, e a voz estridente, em que existe qualquer coisa da esgrimista olímpica, mas sem o treino, só a tensão e o talento para o golpe, numa palavra, estilo.
Intervieram em favor do reformado duas pessoas de raça negra, uma velhinha com um xaile negro tricotado e bochechas muito semelhantes a um bolo de aniversário e ainda uma jovem universitária, e a sua fiel amiga, que magoada pelo namorado, não parava de falar, e isto escutou-o António Antão, da tremenda coincidência do estúpido rapazola ser igualzinho, mas é que exatamente igualzinho, apesar da diferença de idades, ao parvo do namorado. Quanto aos dois trabalhadores negros convém dizer, mas com cuidado, como pareciam esculpidos numa pedra vulcânica de um planeta longínquo, e gargalhavam de pé, exibindo uma dentição magnífica. Em volta dos braços pendurados nas argolas presas ao sinistro varão do autocarro, as veias circundavam a massa muscular dos braços daquele dois pretos, como serpentes inchadas, em fuga por aqueles monumentais corpos e quanto mais travavam o riso mais as suas vozes guturais, entre a censura humorada e discreta da atitude do rapazola, feriam a atmosfera do autocarro com a boa disposição dos nascidos no continente africano. Como podiam rir daquela maneira depois de um dia de trabalho, não pode saber-se, mas pareceu a António Antão ouvir alguém pronunciar a palavra resistência. Não, não, é alegria pura, a única forma inteligente de sufocar a raiva e a injustiça. Entretanto, outro incidente veio agitar os passageiros. Uma das universitárias, a que seguia de pé, cheia de cadernos argolados e livros fotocopiados apertados pelos braços em cruz contra os palpitantes seios, estatelou-se no chão, em pleno autocarro, desmaiada. Ouviram-se gritos e suspiros, e logo acorreram três senhoras de cabelo armado e um desempregado, que pelos vistos tinha conhecimentos de socorrismo muito duvidosos. Passou os braços em torno da cintura esguia da rapariga e levantou-a lentamente, mas alguém gritou que se deviam levantar as pernas e não a cabeça. A pobre rapariga logo voltou a si, com um sorriso envergonhado, mostrando pouca vontade para retomar a atividade consciente, e a amiga, com as mãos na cabeça, resolveu dar um ralhete a todo ao autocarro, uma vez que a desmaiada não comera nada desde a manhã, e era já pelo fim da tarde. Ninguém conseguia perceber de quem era realmente a culpa, se da rapariga desmaiada, da sua família, que não dispunha de dinheiro em conformidade com as necessidades do estudo, dos serviços de pastelaria, maus, maus, maus, do sádico Professor que as submetera, e a uma turma inteira, a um exame exigentíssimo durante toda a tarde, ou dos nossos homens de Estado, habilidosos a comprar cursos em jantaradas enquanto as pobres universitárias desmaiavam nos transportes coletivos, e logo apareceram em frente da face descolorida da universitária desmaiada uma maçã, um bocado de chocolate já dentado, dois pacotes de açúcar com um aspeto imundo, e até uma sandes de presunto. Ouviu-se uma voz:
- Estudar para quê? Quando esses malandros andam a roubar tudo ao povo - era o reformado.
- Isto era enforcar aquela corja toda - sugeriu o desempregado com dotes de socorrista, mas logo alguém respondeu:
- E compras tu a corda - e ficaram a pairar no ar as gargalhadas dos trabalhadores que ainda não tinham parado de rir.
Mal a estátua esverdeada de um aristocrata libertador, embranquecida pelas leis da natureza, surgiu no ponto de fuga da avenida, António Antão levantou-se do seu banco, passou com cuidado ao lado das universitárias, reparando com a recém desmaiada mordiscava a maçã com umas dentadinhas pequeninas, e aguardou de pé, com um braço pendurado no sinistros varão, a próxima paragem daquele paralelepípedo amarelo com rodas. Quando o paralelepípedo suspendeu a marcha, António Antão saiu para a rua, recebeu no rosto o ar fresco da noite, viu o rosto iluminado de uma bela australiana anunciando uma marca de perfume, reparou na foice da lua, tentou contar os mil olhos da noite, mas, cansado, baixou a cabeça e logo reconheceu a rua indicada no telefonema. Caminhou durante dois minutos, tocou à porta, e para seu imenso espanto, uma cara conhecida, demasiado conhecida, correspondeu, de repente e sem aviso, à voz suave e bela, que por qualquer motivo estranho, não tinha reconhecido, naquele mesmo dia, pela manhã, talvez por surgir, junto das suas orelhas grandes e doridas, filtrada pela complexa rede de sinais com que as grandes empresas de comunicação vão explorando, sabe deus com que dificuldade, a frágil estrutura emocional das pessoas e a complexidade do mundo. Vieram abrir a porta.
- Anastácia, és tu. Nem sabes, curioso, não te reconheci ao telefone e pensei que viesse ter com uma desconhecida.
- Uma desconhecida? Estás maluquinho? Quem havia de ser? Mas não me pareceste surpreendido - disse a rapariga, muito bonita (pelo menos, eu acho) sacudindo uma madeixa colorida para trás do ombro direito, de forma a desnudar, com a devida justiça, a forma exata com que o esqueleto e a respetiva massa muscular evoluíram com particular precisão, contribuindo para um elevado momento da história natural da humanidade.
- Ai não? Não te pareci surpreendido? Mas como é que sabes quando fico surpreendido? - perguntou António Antão.
- Pelos vistos não sei, pois para isso, teria que saber em que momento ficaste surpreendido, o que pelos vistos não é fácil, pois precisaria de saber quando ficaste surpreendido. Entra, rápido.
Não é muito importante saber, para já, como era a casa de Anastácia. A rapariga, vestida de forma simples mas atraente, uma camisola roxa, sem mangas, e calças de montar, não sofria das mesmas hesitações sobre vestuário, e a seu tempo se verá porquê. Pedindo a António Antão para se sentar, perguntou:
- Leste o livro?
- Qual livro?
- Ora, qual livro, o que te ofereceu a tia Ermelinda.
- Li cerca de vinte páginas. O livro é horrível, intragável, uma manifestação eloquente de realidade, e deus sabe como eu odeio quando a realidade resolve instrumentalizar a consciência de indivíduos com aspirações de sucesso imediato, e os leva a produzir monumentos dedicados a engrandecer a própria realidade.
- Não temos tempo para teorias. Viste o código?
- Qual código.
- Caramba, pareces um macaco de repetição.
- Não estou a perceber, Anastácia, pareces nervosa.
Mas nisto, Anastácia colocou um dedo em frente dos lábios e pediu silêncio. Apontou para a janela, e António Antão viu através da cortina um vulto, num movimento nervoso. Um homem de elevada estatura, deambulava, para cá e para lá, como se tentasse ouvir a conversa, e sem qualquer preocupação em ser notado ou ouvido. Anastácia chegou-se mais perto e perguntou num sussurro:
- Sabes quem é?
- Não.
- Mas eu sei. É o meu pai, telefonou-me hoje de manhã, e diz que não vai sobrar sequer um osso inteiro desse teu esqueleto com que possa fazer-se um candeeiro de sala.
- Anastácia, que brincadeira parva, estás a assustar-me para quê? Disseste que o teu pai estava na Ucrânia e não viria a Lisboa tão cedo.
- Mas veio, desculpa. Agora é preciso fingir que não estamos em casa, não sei como descobriu a morada da Patrícia.
Já anotarei alguns aspetos pitorescos a propósito desta Patrícia. Para já, saiba o leitor que o pânico se apoderou de António Antão. Nem quis perguntar por que descabelado motivo, dadas as circunstâncias, Anastácia o tinha chamado ali, para ir ao encontro de uma tragédia digna de um jornal sensacionalista da mais baixa categoria. Deixou o corpo deslizar até ao chão e sentiu o frio do mosaico. Não percebia se Anastácia brincava ou dizia a verdade, mas pelo sim, pelo não, uma vez que não a conhecia assim tão bem, limitou-se a cumprir ordens, e fechou os olhos à espera do que se seguiria, tal como o leitor, e considerou, por um momento, tal como o leitor, se aquela reação, a ser verdadeira, era ou não proporcional perante os factos da sua vida recente. A reação, posso dizê-lo, era mais do que proporcional e correspondia a um profundo sentimento de traição que o pai de Anastácia muito justamente alimentava naquele momento, brandindo os dois braços como se alimentasse a sopros de gigante, um imenso fole, com que excitava para a fúria destruidora o crepitante fogo de uma imensa fornalha. Os factos eram terríveis e foram esses extraordinários factos, e a forma como chegaram ao conhecimento do pai de Anastácia, que me permitiram conhecer António Antão e acompanhar a sua posterior e atribulada aventura. Vou passar a contar-vos de que forma absurda conheci António Antão, num memorável dia de final de Verão, em que pela primeira vez cruzámos os portões da Universidade.
2 comentários:
Eheheheh
cada vez melhor ;)))
Muito bem. Está a melhorar. Após ler o episódio à beira-roupeiro deu-me para escrever uma quadra. Ainda me levou algum... Se te interessar ainda me dedico a isto; se não manda-me para o...
É espião por fora e obrigação por dentro/ pudesse vigariza-lo uma só vez e para sempre/ mas planeando finta-lo, brilha nos olhos que não vejo/ e o seu arco alonga-se para lá de si.
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