segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

O Rapaz da Periferia. Capítulo I: 1-6.

Capítulo I

 
1.

Todos os livros começam por uma frase incisiva, um sentimento estrondoso, uma declaração sentimental, os insultos infligidos a um jovem herdeiro, a visão fabulosa de galgos corredores, o rosto hipnótico de uma donzela esfaqueada, aventureiros prontos a embarcar em navios perigosos, adolescentes às voltas na cama, respeitáveis cavalheiros com dupla personalidade, fastidiosas noites de insónia, a promessa das mais sinistras tragédias familiares (umas mais iguais do que outras) bruxas em encruzilhadas, judeus em deambulações urbanas, insetos transformados em pessoas, pessoas transformadas em árvores, enfim, tudo o que é passível de ser produzido no sinistro castelo da imaginação humana. Contudo, o nosso caso dispensa toda esta pólvora seca. Tanto eu, como o meu querido leitor, somos dois velhos andrajosos e loucos. Não temos razões para ensaiar a pose, procurar efeitos de estilo, mergulhar nos abismos em busca da voz própria. Há muito que ficámos roucos, e no meu caso posso mesmo dizer que nutro um profundo nojo pela minha voz. Por isso, entreguemo-nos diretamente ao prazer e esqueçamos o protocolo de venda, esqueçamos o juízo crítico do editor (afinal de contas, temos o público - e gratuitamente - do nosso lado) esqueçamos o tempo, esqueçamos o singelo fato de eu não ser ninguém, e tu, caro leitor, te teres transformado num soberano e respeitável consumidor, aos pés do qual me ajoelho. Sim, ajoelho, e com todo o prazer, mas ajoelho porque me apetece, e não porque a isso me obriga um qualquer analfabeto vendedor de livros, com duas notas no bolso e a falsa ideia de que sabe o que o público deseja. O público porventura deseja alguma coisa? Remeto os leitores mais zangados com estas questões introdutórias para as toneladas de páginas inúteis em torno da morte do autor. Quanto a nós, exultemos com os anjos, cantemos com alegria, pois não se trata, pelo menos para já, da morte, mas de um inefável e augusto nascimento. O autor sou eu. 



2.
 
António Antão nasceu num dia de vendaval, numa maternidade mal equipada mas cujas enfermeiras eram de uma docilidade comovente. Lá fora caíram duas árvores de grande porte, um corvo abriu as asas no parapeito de um janela oitocentista, e a rua chegou mesmo a ser interditada por causa das cheias, mas a jovem enfermeira em cujos braços gritou desesperado o bebé Antão, limpou o suor da testa, arqueou as bonitas sobrancelhas, limpou a sombra esborratada das pálpebras, e abraçou muito aquele corpinho ensanguentado. O médico repreendeu as preocupações estéticas da jovem mulher e desferiu com vigor uma palmada no rabinho rosado do bebé, enquanto observava o declínio do sol. António Antão viria a saber mais tarde a identidade desta jovem enfermeira, quando sonhou ser escritor e lhe deu para andar a interrogar as condições do seu nascimento, pois queria dominar todos os aspetos da sua biografia, antes de produzir a obra. Mas a dado momento viu-se enredado na mais sórdida conspiração de que tenho memória ,e faço notar a minha exaustiva consulta de todas as formas de enciclopédia digital. No meio deste entulho que é a história da humanidade, não há caso mais estranho e sinistro do que a história de António Antão, o rapaz da periferia, pelo que passamos a narrar os factos. 


3.
 
Quero começar por esclarecer as circunstâncias de formação da personalidade do nosso herói. António Antão foi um produto da República Portuguesa. Neste sentido, é preciso esclarecer, antes de mais, o que é a República Portuguesa. O que é a República Portuguesa, perguntará o leitor desconfiando com esta despreocupada, e até maçadora, utilização de conceitos, quando se trata de descrever o romance e os seus assuntos urgentes, sentimentais, normalmente, usualmente, casualmente, sem nenhuma importância pública? Ora, a República é a nossa mãe, a imperatriz do século que nos viu nascer, a santa pátria dos desvalidos, o alfobre da língua onde nos expressamos,  a República é o paraíso de Camões e Pessoa, dois cadáveres cujo cheiro ainda vai produzindo consistentes negócios culturais, mas isso agora não importa, desculpem. A República Portuguesa é o fértil coração onde pulsa o ritmo normativo da nossa vida de pessoas dignas e livres, o local onde os fornos crematórios, após a nossa morte hospitalar, nos farão desaparecer com notável higiene, a preços reduzidos. Quando digo que António Antão é um produto da República estou naturalmente a dizer que é um pobre coitado sem grandes posses familiares. Se mencionamos agora o conceito de família, devemos, sem dúvida, mencionar os protagonistas familiares. A mãe de António Antão é uma chorona e consumidora dos mais reles produtos televisivos, embora de inteligência média. Como sabemos isto? Vimos como reproduz com os lábios todas as conversas novelescas e atualiza mesmo comentários pertinentes a que os autores não souberam chegar por défice de engenho. Bebe com facilidade, e vinho de todas as qualidades, e até produtos destilados, cuja ressaca agraa a intensidade do choro mas decanta as suas infinitas especulações em torno das tragédias observadas no pequeno ecrã. E quanto ao pai? Para resumir o assunto numa frase, o pai de António Antão é um triste cumpridor de funções. Senhor Antão ajude aqui, Senhor Antão ajude ali, e o Senhor Augusto Antão, entre magníficas cóleras interiores, mas no mais límpido silêncio exterior, dirige o seu corpo magro, ossudo, mas saudável, e obedece com eloquência, obedece com ferocidade, obedece até um sorriso estúpido e ovino vir cravar-se nas suas mandíbulas tensas. Com este semblante viaja num autocarro amarelo, viaja num comboio prateado, depois outra vez num autocarro azul, desce para o alcatrão, entra num café do bairro, esculpe um sorriso no seu rosto de pedra, engole um café e ruma até casa. Depois introduz a chave na porta, mergulha na penumbra da sala, cumprimenta a sua mulher, cumprimenta o seu filho e vai fazer sabe deus o quê, pois o que há ali para fazer até à hora do sono? Todavia, enquanto dorme, Augusto Antão é um príncipe. Que nos importa a nós que a sua casa seja um curral, se aquele homem é um verdadeiro príncipe, desde que se mantenha a dormir? Com inflexível lógica, António Antão faz por passar ali o menor tempo possível. Mas quero dizer ao leitor uma coisa importante. António gosta de ler no quarto, só pela manhã, enquanto os bandos de aves cruzam a tela do céu. A tarde e a noite são passadas no interior de uma loja de computadores num bairro suburbano da capital. Uma loja de computadores pode ser o centro do mundo cultural. Um dia António Antão chegou mesmo a ver no pequeno ecrã um escritor afirmar comovido: «começarei a morrer pelo coração». Abriu o armário, rebuscou um saco de amendoins, abriu uma cerveja, e sentou-se me frente à televisão. Felizmente, o programa mudara. Numa frondosa floresta africana, um grupo de macacos disfrutava da vida em sociedade. Sorriam, caramba, pode dizer-se que sorriam com vontade, erguiam os membros com ampla liberdade, emitiam sons guturais mas plenos de autoridade, efetuavam cambalhotas repletas de significado, pode mesmo dizer-se que se moviam com elegância. António Antão sorriu e pensou durante toda a noite na fantástica agilidade dos macacos. 


4.
 
Certo dia, António Antão apanhou gripe e foi deitar-se. Permaneceu de cama durante quatro dias, e ao quinto amanhecer, leu com moderada satisfação um livro oferecido pela tia, apesar dos efeitos, ainda presentes, da febre violenta daqueles últimos dias. Os caros leitores estão já na posse desse singelo facto: há pessoas capazes de consumir o seu tempo a ler livros. Note-se que a leitura de livros nos afasta do sucesso literário, a fazer fé num veterano de guerra, por sinal, maneta. António Antão pensava nestas coisas quando observou no ecrã um retábulo constituído por escritores conhecidos. Pensou como o retábulo se encontrava manchado por uma inaceitável figura; um grosseirão representado no canto inferior direito, a entornar um copo de ginja entre dois barris. Este inveterado alcoólico, de chapéu e laço, cuja mão esquerda repousa hierática no bolso, quem sabe um triste resquício de um mau hábito (mas pode ser também do frio) quem sabe a civil consequência do melancólico cansaço (o Sagrado Coração de Jesus nos ajude). Voltando ao livro, já ia na página duzentos e trinta, quando reparou num número manuscrito, quase ilegível. «917897680. Liga-me, é muito urgente». Intrigado, pensou na tia (estaria isto relacionado com aquela enigmática mulher) e recordou as suas eloquentes tiradas, a insistente conversa sobre o papel reservado ao continente Africano na ressurreição corrigida da historiografia do continente Africano (uma coisa que os Africanos farão com rejubilante alegria logo após terem concluído o curso básico de racionalidade sequencial e linear segundo a conceção do tempo Judaico-Cristã, pensou de imediato António Antão). A tia Ermelinda, estranha figura!


5.
 
 António Antão recapitulou a vida daquela velha mulher. Estudara em Inglaterra e partira para África como enfermeira em 1950. Permanecera em África, após a independência de um país qualquer, o Togo, ou o Gabão, casando depois com o medalhado atleta, Iaroslav Kagnos. A velha senhora conhecera esta estranha figura, de quem António apenas conhecera, pelos anais familiares, os estrondosos murros na mesa, durante as discussões políticas. Iarolslav e Ermelinda travaram conhecimento durante um Verão de 1965, passado na casa de uma avó junto à Ilha de Moçambique. A velha mulher acumulara vários volumes de uma obra alemã (Leipzig, 1879) onde se descreviam as maravilhas do Tibete. O jovem Kagnos, entre o trepar dos embondeiros, e os mergulhos no mar opalino, apaixonou-se pela casa da avó da Tia Ermelinda, onde o cultivo de árvores de fruto e a vida de silêncio das nossas Províncias se reproduzia com tibetana paciência. Iaroslav casou com a tia Ermelinda e morreu dois meses depois, atacado por um leão. A tia Ermelinda viajou então pelo leste da Europa para recolher a herança do seu enigmático esposo e acabou por desenvolveu um princípio imunitário contra todas as formas de comunismo. Daqui haviam de resultar tremendas discussões familiares, apesar da paz e da concórdia e mesmo do vincado afeto entre a tia Ermelinda e a mãe de António Antão. Devo dizer que as famílias infelizes são as menos entusiasmantes. Na nossa sociedade do espetáculo, se queremos procurar tragédia, perversidade, elegância, escândalo, devemos, sem dúvida, conduzir a nossa atenção para o coração das famílias felizes. É aí que reina, verdadeiramente, a confusão e a pirotecnia moral. 


 
6.

917897680. Estaria este número de telefone móvel relacionado com o passado da velha mulher? Teria comprado o livro em segunda mão, e não passaria tudo isto de um trágico e perigoso equívoco? Em primeiro lugar, telefonou à tia mas recebeu em troca um conjunto de insultos. Seria possível que António Antão julgasse a sua tia capaz de oferecer coisas velhas? Teria perdido o juízo a tal ponto que fosse possível considerar a sua tia capaz de ser tão pouco higiénica que andasse por aí a transacionar objetos pessoais de desconhecidos? Não, não era possível, era a febre a falar. Desligou o telefone e respirou fundo. Em seguida marcou o número anotado a lápis, na folha de rosto do livro. Do outro lado, soou uma voz rouca. A mulher apressou-se a dar uma morada e uma hora, e pediu urgência. António Antão pousou o telefone, tirou o casaco do armário, derrubando um busto de Lenine, e perguntou-se sobre que razões levam alguém a colecionar reproduções de cabeças masculinas com bigode, e saiu em direção ao local marcado.

1 comentário:

silvia disse...

ehehehehe

promete

mais

:)))