De um lado o mar, do outro a Itália.
Gogol, Diário de Um Louco.
Aprendam, que eu não duro sempre.
A minha tia, quando particularmente feliz perante o sucesso de um efeito
explicativo da sua inegável, mas nem sempre amigável ou pacífica, capacidade
pedagógica.
Como as grandes mentes, à semelhança das adolescentes, costumam andar abraçadas, estava eu, precisamente, a pensar escrever sobre o atual momento do Sporting Clube de Cascais e Estoril quando, abençoado dia, maradona resolve sair do seu exílio público e brindar-nos com uma análise psico-retalhista dos jogadores do Sporting, e de caminho prega-lhe uma citação de um ridículo e triste artigo cuja ladainha anti-profissional, reproduz as mais antigas e perfunctórias lamentações a propósito das limitações da burocracia. A minha atenção vai direitinha para o artigo em causa, de tal modo a cultura anglo-saxónica consegue meter os pés pelas mãos quando a matéria em causa não é a política, não é a escola, não é a literatura, não é a burocracia, mas a boa-vida. A dita lamentação envereda pelo tema da melancolia do trabalho, do desperdício de energias às mãos do monstro burocrático, da inadequação do esforço aos propósitos das instituições, e sendo um artigo assinado pela pena de um professor universitário (o meu freudiano ódio de estimação) merece que uma das grandes mentes desta nação se detenha um pouco no argumento explanado. Não vou por isso falar do Sporting (que a seu tempo falará, e com estrondo, sobre si próprio) mas vou antes mergulhar nas difíceis e gélidas águas que não se resumem a opinião, mas decorrem das leis formais da lógica, pois apesar do meu grande respeito pelo café setecentista, e por muito eloquente, democrática e salvífica que possa ser esta tão generalizada cultura-da-opinião, parece-me que carecemos de um pouco de luz nesta ambiente escurecido pela vozearia dos indivíduos com pouco estudo e ainda menor experiência emocional das grandes questões da vida humana.
Se há doença que caracteriza o homem pós-industrializado, além do culto da sua própria saúde, de i-pad na mão e olhos fixos no movimento do ecrã, um dos mais sobrevalorizados instrumentos de todos os tempos, para além do endeusamento da tecnologia automática (que é no fundo, e apenas, um abandono, e muito desajeitado, da civilização do papel) é este ódio, mais do que previsível, à cultura livresca e à burocracia, pois um dos artefactos retóricos mais primários é, sem dúvida, a crítica dos símbolos das civilizações que nos precederam, e estando nós a entrar no mundo do ecrã digital, de conteúdo dinâmico, seria de estranhar que não se produzisse o mesmo tipo de delírio que o mundo da imprensa produziu a propósito do manuscrito. Contudo, e em geral, este homem crítico da burocracia começa (palmas) por não saber o que é a burocracia, pois no afã de encontrar uma explicação para a sua dor, esqueceu-se de pensar sobre o assunto. O que é a burocracia? Um contrato é burocracia? O Tribunal que examina os termos de um contrato para punir um processo de incumprimento de um compra, é burocracia? Um sucessão de cartas de amor em que se procura chegar ao momento exato em que os amantes se declararam apaixonados, é burocracia? Uma sucessão de ordens de compra de matérias-primas, e de máquinas, com as suas licenças e as suas garantias, e a certificação, registo e comprovativos de pagamento de um conjunto de colaboradores, é burocracia? Um programa de computador (com o seu formato algorítmico) é burocracia? O conjunto de documentos gravados na memória de um computador é burocracia?
Aceitemos que a burocracia é a civilização do papel, e por isso, uma civilização onde o controlo se faz por um código escrito, que não é dinâmico. Mas à semelhança do escravo analfabeto que comeu os figos do cesto e depois culpou o papel de ser mentiroso (o papel onde o senhor comunicava ao destinatário, o número de figos que iam no cesto) ficamos surpreendidos pelo facto dos papéis contrariarem a ideia que temos de nós mesmos ou da realidade. Não se deve editar um livro «difícil» já que as pessoas não querem enfrentar dificuldades na leitura, querem ler aquilo que esperam encontrar, ou seja, querem que o mundo seja exatamente da maneira como tem sido e como deve continuar a ser, segundo a perspetiva que têm do mundo. Mas querem as pessoas realmente isto? Consideremos, por exemplo, um mercado. Podemos dizer que se trata de um sistema burocrático que admite mudanças nos protagonistas do controlo e das coisas controladas, por acordos entre os membros dentro do sistema. Mas pressupões acordos imutáveis, e ainda ninguém explicou como pode um mercado funcionar sem um ambiente regulado por burocracias, sobretudo do ponto de vista dos códigos de comunicação e de informação, seja a língua ou a moeda . Em certo sentido, a burocracia é um lembrete, chato e repetitivo, acerca das implicações dos nossos atos na vida dos outros.
Perante a acusação da imobilidade (um clássico na luta contra a burocracia) devemos lembrar que a burocracia permite que o conjunto de controlos possa ser alterado, mas impõe que a alteração das regras seja discutida por todos, normalmente um Parlamento, enquanto a gestão de uma Empresa impõe uma burocracia cujas regras parecem ser mais eficientes. Mas isto apenas porque os aspetos de controlo sobre o controlo são mais reduzidos, normalmente os acionistas, e não a sustentabilidade financeira, ou a imposição do lucro, como se diz por aí, pois as únicas instituições mais irracionais e endividados do que os Estados são precisamente as empresas (para resolver este problema, aqui). Se introduzirmos o impacto da decisão, em termos de escala, e o número reduzido de aspetos regulados na esfera de ação de uma empresa, vemos que os ganhos de eficiência com recurso ao controlo do mercado são muito menores do que se julga. Do mesmo modo, a solução da divisão do trabalho, a secção em pequenas empresas, de todas as operações humanas, de modo a diminuir a escala das decisões e o impacto das decisões erradas, preconiza um reducionismo da vida social, totalmente incompatível com a liberdade. Daí essa coisa extraordinária dos adeptos da liberalização do ensino e das liberdades de aprender e ensinar, serem os mesmos a defender uma restrição do tipo de coisas ensinadas nas Universidades (num mundo em que temos todos de ser médicos, apresentadores de televisão, e engenheiros) com a extinção desse horror do fim dos tempos, as Humanidades. Ora, a burocracia lembra-nos que a coordenação tem um custo e que a paz política tem um preço. Queremos pagá-lo?
Com efeito, parece-me que falamos do nosso horror ao controlo e à lentidão, quando pretendemos criticar a burocracia. Ora, controlo e lentidão são as palavras que tenho tatuadas em cada um dos meus braços, por oposição aos dois maiores mitos do século XXI: velocidade e liberdade, ou seja, tudo o que não temos, nem nunca teremos, e por isso, felizes são as civilizações que sabem viver com limites de velocidade e de liberdade. A arte está em fazê-lo com a ajuda de todos, distribuindo melhor o esforço e os ganhos, adequando incentivos a uma distribuição eficaz das tarefas e nisso, com papel ou ecrãs, a origem dos problemas é a mesma, ontem como hoje, e sê-lo-á amanhã: como coordenar a informação necessária para saber o que fazer e como fazer, e isto até ao advento do androide inteligente e autómato (mas aí, já cá não estaremos e, por isso, está tudo bem). O problema decorre dos limites da mente (enquanto sede das nossas informações sobre o mundo) e dos limites da nossa fisiologia (esforço muscular, consumo energético, evolução dos instintos reguladores, desejo sexual, reprodução, versus segurança, conforto).
Já o mercado parece ser muito eficiente, pois adapta-se à lei da realidade (quem vende mais deve ser por certo mais competente, quem recebe mais dinheiro é mais eficaz, quem vende mais coisas é mais inteligente) e nisto o liberalismo é uma falácia retórica das mais eloquentes: o mercado é o artificio que nos tranquiliza pois a realidade (leia-se, natureza humana regulada pelo desejo de conforto, através do lucro comercial) é sempre legitimadora das nossas ações desde que concorram para aprofundar o mercado, ou seja a natureza das nossas ações, e isto num loop sucessivo até ao infinito. Por isso nos sentimos tão livres. Por isso nos sentimos tão desesperadamente perdidos e enganados.
Na civilização dita da burocracia, o papel fixava uma mensagem que não deveria, em princípio ser mudada: daí a crise da literatura, na excelente síntese de Umberto Eco, o livro ensinava-nos a morrer, ou seja, não se podia mudar a história. A crítica da burocracia é a crítica dos limites da humanidade e isso é tão belo como eventualmente arriscado e leva-nos à consideração de que (1) o problema não é a burocracia mas as razões pelas quais somos obrigados a registar coisas em papéis, diante de uma era digital onde tudo está continuamente em mudança, interpretação e comentário; (2) quem devemos escolher para registar, e o que deve ser registado (perante a avalanche de discursos) e como essas mudanças irão eventualmente alterar a distribuição da autoridade.
O leitor inteligente (que tenho o gosto de saber que é sempre o leitor que se encontra desse lado do ecrã neste blogue) já percebeu que a crítica da burocracia é uma das mais tristes falácias do nosso tempo e uma efeito de retórica para fugir às duas únicas perguntas que temos para responder, sobre todos os assuntos, nesta triste, breve mas, não obstante, maravilhosa vida: 1) qual é a posição de quem fala perante a forma como se atribui, neste momento, a autoridade na sociedade, ou se quiserem, numa forma mais prosaica, o que pensamos sobre o chefe da tribo; como se deve atribuir no futuro o poder formal nas sociedades, ou, quem deve ser o chefe da tribo; 2) o abandono de regras escritas em papéis que não podem ser alterados (ou que levavam muito tempo a alterar) fará de nós pessoas mais livres e inteligentes? Ao aumentar a velocidade com que produzimos papéis e até a possibilidade de interagir numa superfície para escrever coisas em conjunto e a velocidade a que essas coisas circulam, significará uma diferença assim tão grande no controlo dos nossos limites, quer no tratamento da informação, quer nos instintos que nos movem? Pode dar-se o contrário, meus caros inimigos da burocracia, numa dessas não pouco comuns ironias da história. O ecrã é uma espécie de regresso da civilização do manuscrito e com isso podemos estar a entrar, não na apoteoso da liberdade e da velocidade, mas no escuro e tenebroso mundo tribalizado, da lentidão e do controlo absoluto. Bem vindos ao bom selvagem. Rosseau tem sempre razão.
O crítico da burocracia é, geralmente, alguém que não compreende para que serve a burocracia, ou alguém a quem mandaram trabalhar ou fazer prova de que trabalha. A burocracia coloca limites à ação humana e nesse sentido é, verdadeiramente, a engenharia do controlo do desempenho, por isso nos faz tão mal, e por isso temos tanto a agradecer à burocracia. Além de o termo burocracia ser manifestamente infeliz (uma vez que o regime do papel pode ser tanto o regime dos comentários de Dante como o regime da guardanapo ou do papel higiénico, duas engenharias conceptuais a que ninguém lamentaria o nascimento, penso eu) negligencia que uma das mais consistentes e regulares leis da prática da pedrada à literatura (outro péssimo termo) se prende com o facto das pedradas serem quase sempre levadas a cabo por burocratas de profissão, e citaria aqui Cristiano Ronaldo, em espanhol, a propósito de pratos e cuspidelas. Os professores não compreendem em geral a natureza do seu trabalho e por isso são obrigados a ensinar, não sabendo, como diz o povo, fazer o que realmente ensinam (ou estariam, nesse caso, fora das garras da burocracia a fazer o que, perante o nosso sorriso cúmplice, piedoso e paternalista, dizem preferir ensinar) e por isso é extraordinário que se possam encontrar, neste nosso tão bizarro mundo, professores a lamentar o excesso de burocracia (e recomendando que talvez fosse melhor estarem a corrigir ensaios, uma operação cuja mente perspicaz do professor não consegue vislumbrar como decorrente da própria natureza do processo, dito, burocrático). Ensinar, todos ensinamos, e muito mais fora da escola ou da Universidade: ensinam as prostitutas, ensinam os padres, ensinam os polícias, ensinam os gatunos, ensinam os pornógrafos e os gestores, os cozinheiros e os pintores, ensinam os engenheiros e os arrumadores de carros, ensina a mãe, e ensina o pai, ensina o amante e a amada, ensina a amada e o amante, ensina a criança e ensina o velhinho, e até, pasme-se, ensina, muita vezes, o cão e o coelhinho.
O que os Professores fazem, e por isso são incluídos num sistema burocrático, é certificar conhecimento, ou seja, controlar as autorizações de exercício e discurso profissional (passível de ser remunerado) isto é, permitem uma utilização mais alargada, e em segurança, das capacidades humanas, fornecendo à comunidade informação sobre a qualidade do conhecimento. Porque não pode o mercado fazê-lo? Porque a segurança da comunidade implica um monopólio da certificação perante o poder (seja o poder do dinheiro ou da arma) uma vez que o mercado implica teste curtos e rápidos da eficácia dos produtos, uma coisa a que a aprendizagem, pela sua extensão no tempo, não pode ser submetida de qualquer maneira. Também aqui podem dizer-me que o mercado pode resolver alguns problemas. Certo. É por isso que a formação das profissões mais direta e rapidamente testadas na sua qualidade, deviam sair do Orçamento de Estado, e submetidas aos privados: porque não pagam os hospitais privados a formação dos seus médicos, ou as empresas de comunicação a formação dos seus engenheiros? O Estado só devia pagar Humanidades e Ciências Sociais ou Especulativas, ou seja, Burocratas do conhecimento, pois leva muito a tempo a perceber se o walter hugo mãe é um génio ou um tolinho, ou se a computação é um problema de lógica ou de física. Na verdade, pagamos através dos impostos, a formação aplicada da força de trabalho que produz as mais altas taxas de lucro do capital (tudo o que são ciências práticas, medicina, engenharia, enfermagem, direito, e coisas que tais, quando devia ser o empresário pagá-las, isso sim, seria mercado). A escola, que é o verdadeiro campo de concentração da obediência comercial, a forja da ética de trabalho e do consumo, é paga 99% pelo Estado, com receitas decorrentes de taxas de impostos entre os 20 e os 30%, com limites (ai, ai, ai, ai) absolutos sobre a riqueza de 50%. Não deve estranhar-se a crise; estranho é isto ter durado tanto tempo.
Se querem combater a burocracia, combata-se o propósito da certificação, e da necessária lentidão (associada à necessidade e de justiça) num processo de controlo. Enquanto for o Estado a pagar o ensino médico e a engenharia, continuarei a estar com a burocracia e os professores. Os professores são o mais radical e importante braço da burocracia, são o próprio sangue vivo, a pedra angular do monstro burocrático, responsável por nos manter vivos e impedir que a Maya seja nomeada Diretora da Faculdade de Ciências; o José Luís Peixoto, Ministro da Educação; o Ricardo Araújo Pereira, Presidente da República, e o Bruno Carvalho, Sua Santidade, o Papa. Estarei de acordo com todas estas nomeações, se não tiver de pagar impostos e puder mudar a cidadania para qualquer outro país, por intermédio do pagamento de uma quantia moderada, e continuando a viver em Portugal: não é isso o mercado? Qualquer que seja o nosso juízo sobre a burocracia, como em tudo, a verdade depende sempre do caso concreto. Certo, certo é que não existe afirmação mais tola, nem situação mais tragicamente irónica (com todo o respeito) do que um professor a queixar-se da burocracia: é mais ou menos a mesma coisa do que o William Carvalho a queixar-se de ser rigoroso no passe, preto, muito alto, forte, e correr muito.
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