Uma pessoa intitulada Marco Martins, a propósito de uma peça falada em inglês e cujo texto é da autoria do consagrado Senhor Professor Doutor Juiz Presidente Gonçalo Albuquerque M. Tavares, um homem capaz de tratar «matematicamente as grandes questões metafísicas do nosso tempo» (ver Público de hoje, se ainda não tiverem limpo o rabinho com ele, o jornal, claro, e se tiverem limpo, podem tentar na mesma recuperar a parte legível, enfim, não vou agora aqui entrar na grande questão escatológica, o sentido metafísico das fezes, sobre a qual polemizaram Milan Kundera e Italo Calvino - são assim os grandes -, estando a minha posição mais próxima deste último quando dizia que o grande círculo orgânico da vida e da morte, espelhado na transformação do alimento em corpo, com a devolução do excedente à generosa natureza, longe de ser um sinal do desespero e do nada - isto são coisas habituais nos chatolas dos checos -, é antes uma realidade simples e bela do nosso alegre sistema natural) dizia eu, uma pessoa intitulada artisticamente Marco Martins, um encenador daqueles com óculos de massa e tudo, acaba de dizer que «a imagem da cidade como organismo vivo, um corpo, é um conceito muito contemporâneo».
Marco Martins encena uma miscelânea, com música de Pedro Moreira (o Rodrigo Leão estava ao telefone como a Operah Winfrey) e uns bailarinos quaisquer cujo nome agora não me ocorre, versando sobre o desespero do homem urbano, a racionalização do espaço, a depressão geométrica da cidade. Outra vez a impossibilidade da poesia depois do Holocausto? Outra vez a desumanização da máquina? Mas haverá ainda algum ser vivo que desconheça que a única coisa boa produzida pelo homem é a desumanização? Por falar em desumanização, sabiam que o último livro do walter hugo mãe se passa na Islândia? Vai uma aposta em como o gajo consegue o inatingível facto de escrever um livro de 400 páginas passado na Islândia - aquela cena é só gelo, casas quentinhas e mulheres deslumbrantes - sem que nos passe pelos olhos uma única gaja boa? É verdade, o Holocausto existiu e convém não esquecer (a começar pelos escritores que publicam 50 livros por ano, alguns deles já devidamente sacralizados por prefácios sacerdotais obrigando-nos a inclinar a cabeça, a coisa mais próxima da propaganda de que tenho memória), sim, convém não esquecer, mas convém não esquecer igualmente que a poesia pode ter acabado, mas as gajas boas (graças e louvores se dêem em todo o momento) não acabaram, antes pelo contrário: as mulheres estão cada vez melhores. No entanto, eis que os homens atormentados pela arte oferecem ao público cantores torturados dentro de caixotes. Ora, se repararem ainda não atravessámos a Arcádia. Estamos ainda em plena paisagem bucólica setecentista, o último século onde se inventaram coisas com a cabeça.
Neste magnífico evento (que não teremos oportunidade de contemplar, pois temos muito mais que fazer, e eu nunca costumo criticar coisas a que já assisti ou livros que li) adivinhamos já não pastores roliços de caracol loiro, flautinha de cana e tornozelos de anjo, a perseguirem nos arbustos a pura e doce lavadeira mamalhuda (o que seria muito mais interessante, diga-se) mas a mesma coisa só que em negativo, a saber, a desumanização da cidade, a monstruosidade da técnica, a conspurcação da indústria e do comércio, a dessacralização da vida, o relógio, esse tirano, a comandar os ritmos da existência (e já não o vibrante ciclo das estações) ai de nós, o diabólico quadriculado da habitação, em vez dos campos floridos e das árvores frondosas em prados orlados por florinhas amarelas. Mas caramba, no quadriculado desumano da cidade também há outras coisas, e quanto a desumanidade e desespero, faço ideia a dos gajos que passam todo o santo dia a encaixotar os infinitos livros do Tavares. Coitados, não conhecem o murmúrio dos regatos, nem a suavidade da brisa primaveril. E vivem na cidade. Ah, já me esquecia, esses, mesmo tragados pelos mais horríveis sofrimentos, podem sempre disfrutar desse incomensurável poder curativo e libertador que há em todo o grande artista, e sobretudo da profundidade metafísica, matemática, do autor publicado.
- Aristóteles, ai então a cidade como um organismo vivo agora é uma imagem contemporânea? Mas em que momento da história é que a cidade não foi entendida como um organismo vivo? Mais contemporâneo que isto só a água como símbolo da vida. Ou a noite como símbolo da morte. Ou a pomba como símbolo do espírito. Tu pactuas com esta merda e não dizes nada?
- Que queres que diga? - e Aristóteles continua a martelar a sola das sandálias, pois a subida do dracma e os cabrões dos especuladores de trigo de Siracusa deram cabo dos serviços de sapataria.
- Muito contemporânea - respondo eu - é esta salada de frutas (em que a multiplicação do prestígio mediático é o grande motor do evento, e nunca o seu conteúdo) levada ao palco e servida como arte. Ora, arte pressupõe saber fazer, e saber fazer pressupõe ter feito muitas vezes (em casa, na casa de banho ou diante de público).
- Ui, parece que a coisa elabora em torno da cidade e do urbanismo - responde o pobre Aristóteles, martelando um dedo, e depois acompanhando o passear felino de uma escrava trazida de Tiro por um vendedor de tendas zarolho.
- Deixo o desbaste aos especialistas nestes temas, já que as manifestações homéricas de ignorância me deixam sempre deprimido. Aristóteles, vou ali lançar-me da varanda e se sobreviver já venho aqui comentar o resultada da seleção nacional em Belfast.
1 comentário:
graças e louvores se dêem em todo o momento.
viva a chicha, abaixo o pós-(bis)-modernismo.
muito bom.
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