José Rodrigues dos Santos mordisca a caneta, tamborila os dedos na mesa, pisca duas vezes o olho direito, limpa a boca com um lenço de linho, trauteia um corridinho algarvio, e dispara:
- De onde surgiu a ideia de escrever um romance erótico?
- Se reparar no triste desempenho da literatura erótica contemporânea verá que a multiplicação do mau-gosto não é proporcional à coragem moral. Pior do que isso, o mais radical dos viciosos escritores do século XX, na medida em que se comprometeu em determinando ponto do caminho com a multiplicação do sucesso comercial, perdeu toda a virilidade mórbida e diabólica dos libertinos, cujo projeto de expressão servia única e exclusivamente a sua própria depravação. Usavam o sucesso como ariete e preferiam mil vezes o anonimato de uma luxuriante alcofa a qualquer raciocínio público. Enfrentaram a prisão com uma abnegada piedade que não chegámos a ver em Gandhi e nunca veremos num Santo Padre. Não há coleção de pornografia contemporânea capaz de invocar o estremecimento de uma página de tinta manuscrita a pena de ganso, sob a luz da mesma vela onde escorrega a escaldante lágrima de cera, a caminho da ateniense anca da criada analfabeta, cujo dorso repousa entre alvos lençóis, enquanto lá fora os cristais de neve lembram a natureza geométrica e proporcional de toda a forma de vida. Sem o archeiro do mal como glorificar o sofrimento virtuoso? Estamos menos inibidos, é verdade, mas quem é capaz de garantir não ser esta a mais paradoxal das armadilhas. Creio que foi um francês e grande amante dos libertinos o primeiro a definir a história da repressão sexual como uma progressão para a visibilidade. Nunca o seu contrário.
A Sasha é uma mulher lindíssima, mas não sei se isto me é sugerido pelas proporções do seu rosto, ou por um determinando ponto de vista, note-se que o meu pescoço é sem dúvida monumental. Logo no início do livro fala de “120 Dias de Sodoma”, um clássico do inestimável marquês de Sade. Na cultura latina há um verdadeiro mistério historiográfico: o coração da depravada Roma, e mesmo o famoso deboche de cidades como Alexandria, Hipona, Damasco deram origem a um mediterrâneo onde a vigilância do desejo tem sido associada, pelos mais sagazes historiadores, ao perdurar das formas mais arcaizantes das relações sociais. A Sacha é uma mulher onde, não certamente por acaso, corre sangue grego, irlandês e polaco, três vértices de um esquisito triângulo da mais abrutalhada censura religiosa do sexo...
Acho o tema completamente irrelevante. Isto é uma tentativa para me determinar como libertadora dos povos latinos e oprimidos? Confesso que o projeto não me atrai. Sabe, tive a minha conta de atletismo sexual (não o recomendo ao José porque me parece incapaz de apreciar o confronto com os seus próprios limites, limites certamente distantes, ou mesmo insondáveis). Por agora, interessam-me sobretudo perguntas sobre um estranho manuscrito que ontem me chegou às mãos e sobre o qual a imprensa portuguesa mantém um sepulcral silêncio.
E porque é que isso acontece?
Não sei... Maturidade... Ou falta dela. [risos]. Talvez o senhor saiba explicar o sucedido, uma vez que o título do manuscrito parece parafrasear uma recente obra sua.
Não me diga?
Digo, digo. Eu tinha chegado a Lisboa há pouco mais de uma hora. Caía uma chuva oblíqua e alguém referiu a importância de conhecer o triste e melancólico efeito das ruas paralelas do centro histórico da cidade. Aqui um tal de Fernandez Pessoa transformou-se num rendimento social de inserção cultural, não havia como evitar a fotografia junto à estátua esverdeada. A chuva incomoda-me, mas mesmo assim, subi até um largo onde duas Igrejas neoclássicas apontam a agulha dos frontões para o inominável céu de Lisboa. O que antes foi um porto internacional, com tragédias secretas, estivadores cicatrizados, prostitutas galegas, pareceu aos meus olhos, sofridos mas rigorosos, um lugarejo pacato, muito provinciano. É verdade que não há estudante do liceu que não refira o particular como lugar do universal, todavia, interpõe-se sempre nessa metamorfose um critério racional, a construção inteiramente artificial (nem particular, nem universal) de um ponto de vista, e essa operação, como sabe, não é para todos. É para mágicos, eruditos, encantadores e calculadores automáticos. Sabe, os grandes espaços americanos, as nossas árvores de sangue e as colinas desérticas pontilhadas de catos e carcaças de bovinos, tornaram-me indiferente às especulações metafísicas do pequeno-funcionalismo europeu, educado na cultura clássica dos colégios ingleses, sempre com as mãos suadas de passarem a adolescência a sonhar com as ancas da tia solteira, ou na pior versão, com a velha governanta da casa dos pais. Estando eu nestas considerações, um velho amigo da Califórnia, e autor de um blogue obscuro, telefonou-me. Meia hora depois, almoçávamos junto à antiga Alcáçova (é assim que se diz?) do Castelo. Com uma voz abatida referiu o facto de as roseiras, com os seus pingos escarlate, serem o mais perfeito comentário ao sofrimento vicioso. Depois deste estranho prólogo, palpou com a mão esquerda uma fratura na pedra marmoreada da mesa, e abriu uma velha mochila azul. Com as mãos trémulas (é um requintado apreciador de café) tirou um caderno verde e traduziu-me de imediato o título: O rapaz da periferia.
O rapaz da periferia? Que tem isso a ver com O Homem de Constantinopla? A senhora está a começar a parecer-me um Jorge Luís Borges da pornografia.
É engraçado, não me importo com essa comparação. Se querem comparar-me a alguém que vendeu milhões de cópias sem escrever um romance, OK, espero que isso faça alguma coisa por mim [risos]. Mas somos duas pessoas diferentes, de backgrounds completamente diferentes. Isso é a coisa boa da escrita, como na música, podes vir de onde quiseres e ser quem quiseres, toda a gente te dá uma oportunidade. Estou a lembrar-me de um conto de Borges, «O Guerreiro e a cativa» onde se destaca o contraste entre a figura atroz de um bárbaro e a sua doce simplicidade. Todas as coisas possuem aspetos contraditórios, até o amor de uma cativa, em geral, puro e sofredor, ou o desejo de um selvagem, em geral, intenso e violento. A fonte é um velho historiador latino, Paulo Diácono (e não me venha novamente com simplificações culturais sobre a soteriologia e a evolução sociológica dos países da Europa meridional) mas o argumento central da narrativa aponta para a similitude entre duas histórias, com desenlaces paralelos. Os desamores entre cativos e civilizados são uma e a mesma coisa. Mas podemos também ver aí a sucessão do tempo como um gerador automático de oportunidades. Nesse sentido, o indivíduo de sucesso vive ameaçado pelo fluir do tempo, enquanto o derrotado anónimo pretende cavalgar o fluxo dos acontecimentos e todos os dias se deita confiante na luz da manhã seguinte. Entre vitorioso e derrotado, florescem todos os dias novos infernos, simulacros, a perplexa seta de bronze apontada ao acaso. Contudo, eu pretendia era mesmo saber por que razão as redações dos jornais, após os meus contatos, não noticiaram a informação inscrita logo na primeira página do primeiro capítulo de O rapaz da periferia?
Ora, não posso responder a isso. Não tenho o mínimo conhecimento sobre essa pseudo-obra, anónima, é a primeira vez que oiço tal coisa. Mesmo que por qualquer motivo o conteúdo justificasse um apontamento breve, as contenções orçamentais, a autonomia jornalística, a sagrada liberdade de imprensa são justificações mais do que bastantes. A Sasha vai ficar muitos dias em Lisboa? Quem sabe se me mostrar o manuscrito, talvez tenha uma ideia do que seja, e logo se vê o que posso fazer por si.
Isto é uma tentativa de encontro?
Já agora, ganha-se muito dinheiro com a pornografia ou quem ganha é quem produz os vídeos?
As produtoras e as distribuidoras é que fazem a maior parte do dinheiro: tal como com os livros do walter hugo mãe, aliás. Embora nesse caso ninguém se preocupe com as propriedades pornográficas do fenómeno. Devo esclarecer que, em geral, a pornografia não está a salvo do desafortunado carrocel das expetativas. Keynes, um homem que entregou parte da sua vida ao estudo das probabilidades, tinha um interesse desmesurado na ilusão como disciplina do pensamento. As estrelas, sejam porno ou siderais, não são o que as pessoas pensam que são. Só há uma pessoa na indústria de entretenimento para adultos com um jacto privado... o Larry Flynt, criador da “Hustler Magazine” e não há registos de algum dia se ter mostrado particularmente rigoroso em relação à posição das constelações, quando por acaso, desfere com velocidade um golpe de luz no véu da noite. As pessoas dizem que é a indústria de mil milhões de dólares e é, mas estás a falar de brinquedos, de clubes de strip, de lingerie... Mas é bom dinheiro para quem tem 18 ou 19 anos. Quer dizer, a menos que tenhas uma inclinação tecnológica e desenvolvas algum software... Não é o salário normal que ganhas com essa idade, por exemplo a trabalhar num restaurante enquanto estudas… Mas já saí da indústria há quatro anos e tenho ouvido números bizarros.
No livro tem várias referências cinematográficas e agradece a Godard, Fellini, Buñuel… De que maneira é que estes realizadores influenciaram o seu trabalho?
Está a tentar desviar a atenção do público com essas perguntas tolas? Tenho todo o prazer em indicar literatura especializada sobre o assunto. Aliás, creio que foi Gary Becker, o prémio nobel da economia casado com uma iraniana a escrever um artigo que talvez não ficasse mal na sua mesa de cabeceira.
Ai sim? Qual?
De Gustibus Non Est Disputandum (1977). A produtividade analítica do sistema de preços na era da economia de mercado (e dos prémios literários) tem a propriedade de penetrar todos os nossos gostos, até uma explicação sobre o número de filmes pornográficos consumidos, sei lá, pelas freiras de todo o mundo, vá. O problema é que insistimos em espreitar pelo buraco da fechadura, com os tornozelos atados por uma ansiedade nascida do nosso respeito pelos rendimentos marginais decrescentes do prazer sexual. Não seria melhor abrir a porta, e dirigir a quem de direito as nossas aspirações e interesses, testando os nossos medos numa base racional, partindo para uma ampla discussão sobre a origem dos nossos mais secretos comportamentos? Não devemos travar a nossa curiosidade só porque, aparentemente, os dados racionais acerca das nossas preferências se apresentam como uma caixa negra, seja a natureza, o espírito de deus bailando sobre as águas, ou as leis do equilíbrio geral. O cérebro humano é a última fronteira e o senhor fala-me de cinema. Câmaras, teorias do movimento e efeitos físicos dos impactos da luz sobre os objetos são coisas do século XVII. Fala-me de linguagem, de números computáveis, da teleologia e dos limites do raciocínio paralelo quando pudermos montar, a preço chinês, circuitos integrados com a mesma capacidade da nossa triste esponja cinzenta: cerca de 20 milhões de biliões de cálculo por segundo.
É amiga do Julião Sarmento. Como é que o conheceu?
Que raio de história é essa do Julião Sarmento? Não conheço nenhum Julião Sarmento. Quem é o Julião Sarmento?
O Julião Sarmento diz que é uma das pessoas mais inteligentes que conhece.
Ora, isso vindo de uma pessoa chamada Julião Sarmento deve ser mais ou menos como perguntar a um gorila quem é a pessoa mais delicada que conhece. A verdade é que fui interrompida várias vezes ao longo desta entrevista e não posso deixá-lo terminar este triste espetáculo sem esclarecer alguns dos factos já adiantados. Primeiro: vou garantir a publicação on-line de O rapaz da periferia, em fascículos num blogue intitulado O Elogio da Derrota (reservo explicações para mais tarde). Segundo: vou entabular diversos contactos junto de alguns dos mais influentes críticos para que o manuscrito seja divulgado. Terceiro: enviarei uma segunda vez para a imprensa a pequena nota, por mim redigida, com a sinopse do manuscrito, e agradeço desde já, a sua publicação.
O rapaz da periferia, Lisboa, 2013
anónimo, manuscrito a tinta azul e preta, caderno de tipo «Sebenta», 134 pp.
António Antão trabalha num loja de computadores num bairro suburbano da capital. Nos seus tempos livres, coleciona edições de jornais desportivos amarelecidos pelo tempo, e aposta nos mais variados jogos de azar, multiplicando cálculos nas costas de papéis velhos. Usa sempre lápis e engana-se repetidamente nas operações de subtração. Gosta de pássaros. Se lhe perguntam por que não usa um calculador automático, António responde que não gosta de misturar prazer com trabalho. Desenvolveu um gosto mórbido por literatura marxista dos anos 60 e 70 mas não gosta de pornografia russa. Atravessou o rio da sua cidade um milhão de vezes, viu levantar a bandeira de um santo degolado, numa noite de insuportável calor. Rasgou uma página de Proust no cimo da Torre Eiffel, bebeu vinho quente numa ilha portuguesa no preciso momento em que uma gaivota se preparava para morrer, copiou fórmulas incompreensíveis numa edição de Camões comprada numa velha livraria e só depois notou o velho carimbo da Biblioteca de uma Universidade Africana, comeu morcela de sangue no meio de uma floresta de abetos, mediu a altura de uma criança cega apenas com o auxílio da memória e do dedo indicador erguido contra um céu macabro e plúmbeo.
Certo dia, casualmente, uma tia (lá está) regressada de África oferece a António Antão o último dos sucessos literário do seu país. Ao abrir o livro, depara-se com uma enigmática dedicatória («917897680 Liga-me, é muito urgente»). A tia, entre referências à Santíssima Trindade e um variado e rico leque de ofensas a um conhecido líder democrático socialista, não consegue explicar aquele rabisco na folha de rosto do livro, jurando ter comprado o presente nessa mesma manhã. Como demonstração da sua integridade e poder financeiro, a tia Ermelinda Antão agita esbaforida, entre as garras nodosas, um talão de compra com a data desse mesmo dia. Dois dias depois, numa especular manhã de Inverno, António decide comunicar, através desse número, e mergulha numa aventura sem precedentes. Sexo, intriga e espionagem. Numa luta contra sociedades secretas, economistas mefistofélicos e banqueiros cripto maníacos, António vai aprender os limites do amor e atravessar as fronteiras da morte.
A meio do caminho da sua vida, encontra Anastácia Karenina, uma descendente de ucranianos, e jovem estudante de história de arte, uma deusa do sexo, praticante de artes marciais, e especialista na teoria arquitetónica do Renascimento. Aos 21 anos já tinha publicado numa conhecida revista internacional um artigo intitulado «Statistical demonstration to save the W. Kula theory of the feudal mode of production», Harvard Marxist Review, 2011, pp. 24-46. Aos vinte e um anos e um mês Anastácia pintou nos seus cabelos de fogo uma madeixa esmeralda, a cor dos seus olhos felinos, amendoados. Esbofeteou um polícia numa estação alemã, visitou Tóquio sem qualquer peça de roupa interior, respeitou as proibições religiosas nos templos da Sicília, viu o amanhecer numa colina escocesa, ouviu as doze badaladas numa igreja contemporânea de Nuremberga, mergulhou as mãos frias nas águas quentes de uma praia de S. Salvador da Baía. Depois conheceu António Antão e concentrou-se num único objetivo: desvendar o mistério «daquela voz doce, maquiavélica e desesperada», assim descreveu António a mulher cujo número foi inscrito na página daquele livro. António e Anastácia vão salvar a Europa de uma conspiração horrorosa. Se julga que está vivo, leia esta história, e nada mais será como dantes.
Certo dia, casualmente, uma tia (lá está) regressada de África oferece a António Antão o último dos sucessos literário do seu país. Ao abrir o livro, depara-se com uma enigmática dedicatória («917897680 Liga-me, é muito urgente»). A tia, entre referências à Santíssima Trindade e um variado e rico leque de ofensas a um conhecido líder democrático socialista, não consegue explicar aquele rabisco na folha de rosto do livro, jurando ter comprado o presente nessa mesma manhã. Como demonstração da sua integridade e poder financeiro, a tia Ermelinda Antão agita esbaforida, entre as garras nodosas, um talão de compra com a data desse mesmo dia. Dois dias depois, numa especular manhã de Inverno, António decide comunicar, através desse número, e mergulha numa aventura sem precedentes. Sexo, intriga e espionagem. Numa luta contra sociedades secretas, economistas mefistofélicos e banqueiros cripto maníacos, António vai aprender os limites do amor e atravessar as fronteiras da morte.
A meio do caminho da sua vida, encontra Anastácia Karenina, uma descendente de ucranianos, e jovem estudante de história de arte, uma deusa do sexo, praticante de artes marciais, e especialista na teoria arquitetónica do Renascimento. Aos 21 anos já tinha publicado numa conhecida revista internacional um artigo intitulado «Statistical demonstration to save the W. Kula theory of the feudal mode of production», Harvard Marxist Review, 2011, pp. 24-46. Aos vinte e um anos e um mês Anastácia pintou nos seus cabelos de fogo uma madeixa esmeralda, a cor dos seus olhos felinos, amendoados. Esbofeteou um polícia numa estação alemã, visitou Tóquio sem qualquer peça de roupa interior, respeitou as proibições religiosas nos templos da Sicília, viu o amanhecer numa colina escocesa, ouviu as doze badaladas numa igreja contemporânea de Nuremberga, mergulhou as mãos frias nas águas quentes de uma praia de S. Salvador da Baía. Depois conheceu António Antão e concentrou-se num único objetivo: desvendar o mistério «daquela voz doce, maquiavélica e desesperada», assim descreveu António a mulher cujo número foi inscrito na página daquele livro. António e Anastácia vão salvar a Europa de uma conspiração horrorosa. Se julga que está vivo, leia esta história, e nada mais será como dantes.
O Dr. Claude Shannon, o nosso advogado e representante, estará disponível para prestar todo e qualquer esclarecimento.