sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

O longínquo ano de 1579, a elaboração de Hamlet, Bruno de Carvalho e o conflito das interpretações sobre o que é uma pessoa competente (o que tendo em conta que este blogue é gratuito, representa um assinalável desafio com caracteres suficientes para o longo e deprimente fim-de-semana português).

«That one may smile, and smile, and be a villain»
Hamlet (I.v.108)
 
 
Abertura
 
Na arte como na vida, e sobretudo na arte da vida, a virtude mais difícil é a da humildade, um aforismo banal, já aqui citado, e que o católico T. S. Eliott utilizou a propósito do deprimente e trágico fim de Otelo: um homem  consumido pelo ciúme e traído por uma falta de clarividência, fundada num deficiente culto da humildade (e note-se que este deficiente culto da humildade foi por certo potenciado pela sua fulgurante ascensão como esbirro militar da decadente República de Veneza); no fundo, Otelo foi um violento e inseguro oficial - que Shakespeare por fetiche isabelino e corrupção da fonte italiana transformou em mouro - e que acaba, numa explosão de raiva, por apunhalar a mulher que tanto o amava, suicidando-se em seguida, incapaz de engolir o orgulho do seu engano e a repelente irreflexão do seu acto monstruoso, tudo isto após ter sido instrumentalizado por um perverso e hábil intriguista de quartel colonial, Iago.
 
 
Tema
 
Três importantíssimos tópicos a reter nesta abertura: que a educação católica sempre foi uma das maiores fontes de energia para a explosão artística, sobretudo quando adicionada a um poder criativo e a uma inteligência poderosa, sendo a vida apenas uma função do equipamento nervoso do artista; que a humildade é uma das mais eficazes armaduras contra a insinuante conspiração da vida que pela seleção natural esconde objectivos que não passam pelo nosso ponto de vista individual (e reparem como este princípio do humus se relaciona etimologicamente com a matéria lodosa a partir da qual, segundo consta na Telogia Bíblica da Criação, inspirada nos mitos de origem do médio oriente antigo, o homem foi moldado pelo criador); que a suprema lição do teatro de Shakespeare é sempre a única e singela afirmação da sua tremenda capacidade de se multiplicar em pontos de vista, de forma a obter um retrato variado da mais importante descrição da consciência humana, a saber, nós não fazemos a mais pequena ideia do que andamos aqui a fazer, e resta-nos manter a cabeça fria, a inteligência viva, e o sistema nervoso central equilibrado, para se a sorte nos ajudar irmos evitando os abundantes sarilhos que resultam do convívio humano, e furtando-nos sobretudo ao cómicos enganos desse instrumento ridículo, imperfeito, quase insultuoso, a linguagem.
 
Espanta-me como os aspirantes a poetas, a escritores e a políticos, não percebam o que para mim, desde criança, sempre foi claro, e veja-se no caso português a clareza de Pessoa a este respeito: o facto de toda a grande poesia ser sempre um protesto violento, comovido, furioso contra os estúpidos limites da linguagem, e não de forma alguma o seu contrário, ou seja, um elogio sistemático da poesia, que tem sido a poluída fonte de onde manam os milhões e milhões de páginas de lixo amaneirado que as editoras vão guilhotiando, década após década, século após século, com meticuloso zelo. 
 
 
Fuga
 
Em 1579 morreu a irmã de Shakespeare, Anna, e a 9 milhas de Stratfford, um tal John Shakespeare (sem ligação aparente com o autor) foi encontrado enforcado. Mais importante ainda, em Dezembro desse mesmo ano, uma jovem rapariga, Katherine Hamlett, afogou-se no rio da localidade, correndo pela vila a suspeita de que havia cometido suicídio, tinha Shakespeare 15 anos. A associação entre o nome da rapariga e mais famosa peça de literatura do mundo ocidental é evidente e imediata, mas convém recordar a quem não saiba, que Hamlet era um antiga peça anónima que circulava pelo teatro isabelino quando Shakespeare chegou a Londres. Os críticos e académicos esforçam-se por procurar em fontes laterais as relações entre a formação intelectual do autor de Romeu e Julieta, a sua vida real, e a capacidade artística revelada nos textos, problema suficientemente interessante para que nos demoremos nele cinco minutos. Em qualquer autor, o conhecimento do contexto histórico pode iluminar aspectos circunstanciais, como estes aqui referidos, mas a potência artística é gerada internamente sempre que existe uma incansável inteligência criativa (retenham isto).
 
 
Veja-se por exemplo toda a produção especulativa sobre a hipótese de Shakespeare ter viajado a Itália, que motivou inquéritos policiais onde só faltou interrogar todos os italianos à luz de um candeeiro balouçante e sob a ameaça de uma pistola. Contudo, basta ler. Quando o filho do luveiro e autor de Romeu e Julieta refere que a deslumbrante adolescente se prepara para assistir à missa de vésperas (IV. i. 38) o que tinha sido proibido pelo Concílio de Trento em 1566, obviamente que estava na posse do facto de Verona ter sido um dos poucos locais onde essa prática não foi interrompida, para não falar do íntimo relacionamento entre criadas e senhoras, que longe de ser típico da sociedade inglesa do século XVII, era caractéristico do sul de Itália, onde decorrem muitas das cenas domésticas descritas pelo bardo inglês, numa época em que os retratos públicos da vida familiar não abundavam e que por isso confirmam que Shakespeare deve ter praticado o estimulante desporto que é saltar varandas italianas. Isto quer dizer que a matéria da arte é a vida, mas submetida a um equipamento nervoso de alta potência, o que é essencial não perder de vista para não cairmos na tentativa de embarcar num camelo a caminho da Síria (também pode ser a Coreia do Norte ou a Revista Ler) quando se nos acabou o que dizer e queremos continuar a ganhar dinheiro com a escrita. Onde está diferença entre escritores? Está no sistema nervoso central, é evidente, e na forma geral e integradamente confusa do seu funcionamento (risos para os trabalhos das neurociências e já voltarei a este tema), pelo que podem esquecer todos os conhecimentos técnicos sobre como escrever bem. Devo até lembrar que uma grande parte dos péssimos autores contemporâneos são licenciados quando não doutorados em Línguas e Literaturas, que é sem dúvida o melhor caminho para nunca mais recuperar a clarividência sobre a tragédia de cada um, e sem a qual não há descrição literária, que é no fundo apenas um registo escrito da queda interior inevitável que corresponde à passagem do tempo. Qual é então o segredo? É perceber o que os românticos (que sabiam muito mais de filologia do que nós) nos quiseram dizer: muitos são os chamados mas poucos os escolhidos.

 
 
 

O enredo de Hamlet aponta para um tragédia de vingança, segundo os cânones clássicos, mas se lançarmos pela janela a bizantinice classificativa e abrirmos os olhos, vemos que Hamlet é sobretudo, e nas próprias palavras utilizadas na peça, um «poema ilimitado» e uma tragédia sobre o cérebro humano, no qual a memória desempenha um papel crucial ou não fosse a literatura uma tragédia ilimitada que descreve a relação rival entre a capacidade da memória (a metáfora é antes de mais um intensificador de conceitos para evitar o esquecimento), a potência de cálculo ou a faculdade especulativa, e a luta pela reprodução e sobrevivência entre indivíduos que se não compreendem, nem partilham objectivos e interesses. Desenvolvamos, sobretudo tendo em conta a mais recente actualização deste tópico, a tragédia de Bruno Carvalho, príncipe dos bloguistas maradona e Casanova, e ilustre candidato a coveiro do Sporting Clube de Cascais-Estoril. Note-se que temos vindo a manobrar aspectos relacionados com a) a individualidade artística e b) as condições de produção de homens como Shakespeare bem como a capacidade para identificar num texto o que revelam de brilhantismo, capacidade de lição, raridade artística, resistência intelectual, pluralidade de significados, independência histórica, competência tecnológica, em suma, performance física, capacidade de se aguentarem para lá da passagem do tempo. 
 
 
O leitor mais experiente já percebeu que a) e b) são uma e a mesma coisa, ou seja, a solução de a) está contida na solução de b) por acção daquele príncipio famoso de que a única crítica de arte consistente é uma outra obra de arte. Só os indivíduos dotados de talento artístico superior são capazes de construir um significado autónomo e ao mesmo tempo explicativo sobre uma outra obra, com a independência de se saberem grandes o suficiente para a hierarquizar, escolher de forma clara, enquanto lançam as próprias sementes da sua destruição, atrever-me-ia a dizer, ensinar, razão pela qual o inegavelmente culto e claramente talentoso Rogério Casanova não chega a ser bem um crítico, muito menos um escritor, caindo com inegável repetição na piada descontextualizada e na bizantinice retórica, obscurecendo o sentido dos seus argumentos, ou tornando-os irrelevantes e às vezes superficiais, esquecendo a importância do juízo - que é a razão de ser de um crítico -, juízo que acompanha no Estado de direito o policiamento (que tanto assusta o Tolan que vive obcecado em cobrir toda a opinião com ironia e ternura, a tão católica auto-crítica) defeito aliás comum ao superiormente dotado maradona mas a quem o génio e a elegância moral não permitem a queda nas casuais irrelevâncias do Tolan ou nas parvoíces pedantes de Casanova, que continua a não diferenciar os banais e irrelevantes Roth ou Wallace de Calvino ou Levi, e que continua a não ser suficientemente explícito na sua função, sobretudo no caso português, furtando-se ao seu papel de polícia de segurança literária pública, aposto que pelas mesmas razões que os intelectuais de esquerda participam em manifestações (estão politicamente confusos, respeitam a tradição do grupo e obtêm efeitos de estilo).
 
 
Quando Hamlet se aproxima do coveiro, Shakespeare tem toda a sua vida diante de si, e o medo da morte é no Católico Shakespeare (que apesar das toneladas de contra argumentação inglesa, morreu papista e universalmente pecador) a clara marca de quem quer fazer silêncio sobre um problema mal colocado (a tenebrosa e confusa teologia católica), mas que desempenha no seu ofício de escritor objetivo o mesmo incómodo que sente um coveiro obrigado a cavar uma sepultura com uma enchada romba: a indequação da ferramenta é tanto menos visível quanto mais força ou intensidade utilizar no gesto, o que levou Shakespeare a carregar na mortalidade com todas as forças da sua inteligência. Repare-se que Hamlet inverte o saloio discurso de S. Paulo (onde está ó morte o teu aguilhão) perguntando se não podia ser a caveira encontrada pelo coveiro a outrora cabeça de um político, de um cortesão, de um especulador de terrenos, de um advogado, como quem diz pegando na caveira: onde está agora ó vida o teu alegre movimento?
 
 
Fuga apressada
(já estou nesta merda há meia hora, ou então este blogue vai começar a ser pago)
 
Talvez a mais mítica cena da modernidade encenada, o príncipe Hamlet segurando uma caveira (encerrado numa fogosa ansiedade sobre a sua própria loucura, ameaçado pelo irreverente destino da sua própria personalidade especulativa, sensível e agressiva, acorrentada por esse defeituoso instrumento, a linguagem) convida a que nos dediquemos a observar o que aprendemos desde o tempo em que essa mesma caveira era representada ou junto ao passivo S. Jerónimo, escrevendo e traduzindo no silêncio desértico, ou aos pés de Cristo (segundo as péssimas pinturas das Igrejas portuguesas) crucificado no lugar do Calvário (ou do crâneo) conforme explicavam balbuciando pífios os padres da minha infância querendo infundir-me terror (risos) a mim, vejam bem, a mim, a quem mais se aterrorizava diante do espelho com um braço torto, a marca abençoada do sombrio  e atormentado Ricardo III, a quem, por coincidência, desenterraram agora o crâneo num parque de estacionamento em Londres com o obectivo de investigar (risos) se o homem era maluco (ainda mais risos). Mas o que é um crâneo? Uma estrutura cujos diferentes regimes de pressão em desenvolvimento têm ocupado os cientistas mais ambiciosos, cujo resultado são singelas shakespereanas e quixotescas respostas, as mesmas onde chega todo aquele que tem fogo no coração e velocidade no raciocínio: não se sabe, e o mais que se pode fazer são aproximações risíveis. Um objecto cuja magnitude de estiramento em vertebrados, quando em actividades vigorosoas (correr ou amar) chega a uma deformação equilibrada entre os 0.2 e os 0.3%. Uma peça cujas matrizes funcionais (espaços e orgãos) são responsáveis por ouvir, cheirar, equilibrar, engolir, falar e respirar. O resultado de um desenvolvimento ósseo que envolve e protege a massa cerebral mas que não é determinado pelo tamanho do cérebro, o que não significa que o crâneo não possua uma regulação genética intrínseca mas para já oculta.
 
 
 
 
 
A morte já não nos assusta porque resolvemos agarrá-la, levantá-la sob o nosso olhar cortante, para melhor manobrar a vida. Convém ter presente que este é um jogo arriscado, mobilizador da nossa atenção, perturbador do nosso equipamento aparentemente instintivo, e que não seremos auxiliados nem pelos violentos, nem pelos fanáticos. Como se pode verificar no mais assombroso diálogo alguma vez escrito, não há nada que não possa ser abordado pela língua. Não sei que outra coisa possa significar a tragédia de Hamlet se não isto, e isto sou eu que o digo, pois o crítico que abandonou a crítica, e por isso mesmo, assumiu corajosamente que tem uma língua viva e venenosa escondida na caverna do seu corpo (capaz de consequências, custos e benefícios) já não fala de outra coisa a não ser desta sua tragédia: ser obrigado a transportar um sentido para os outros. Hamlet parece ter recusado este jogo, fugindo do amor e mergulhando furiosamente na especulação agressiva e auto-irónica e por isso enloqueceu. A mim resta-me fugir deste caminho, e com todas as minhas forças, fugir deste caminho, fugir deste caminho.

4 comentários:

condenado à vid disse...

desejo-lhe uma boa viagem.

F. disse...

Ainda que ignorante, posso apenas dizer:

É estranho como ainda que vivamos sozinhos dentro dos limites da nossa consciência de indivíduos, e no entanto, tão similar são as nossas dúvidas sobre o todo.

Não sei escrever, mas se soubesse, gostaria de ter escrito este post.

orfinho disse...

Parabéns(ou era para o Tolan) e obrigado.

Enterrado vivo pela densidade e beleza da pertinente reflexão, apraz-me felicitá-lo. Muito.
Se uma dia descubro que és o Paulo Teixeira Pinto, estás fodido porque o escrito, escrito pela referida figura ofenderia o minha personalidade de pouco intelectual de muita esquerda.
Nunca li o "Hamlet" mas juro que li o teu post até ao fim. Graças ao inexistente deus. Não sei se é empatia ou a alegria de descobrir uma alma(olá) ainda mais torturada que a minha(misery loves company).
Mas isto são presunçosas especulações.E tudo é vaidade. Vamos ao que interessa.
Já vi/ouvi o Romeu e Julieta( respeitou escrupulosamente o texto original). Não precisas de dizer... mea culpa.
Pouco tempo depois descobri algo que me fez amaldiçoar, estupidamente, o autor: a história é copiada quase integralmente(tirando especificidades espaço-temporais) de um mito sumério(será babilónio)(não) de nome Píramo(ele) e Tisbe(ela). Fiquei fulo com o gajo e chamei-lhe tudo, até me deixar contagiar pela poesia e perceber a comédia de eu, pequeno eu, apontar o dedo a semelhante SENTIDOR.(Se te lembrasses do Michelle?? Vaillant, ou como se escreverá, agora punha aqui uma boa). E o fazer(insisto que é assim que se deve dizer) que ele fez, fez-me ver a minha soberba e pequenez(rimei meninas).E estupidez(de novo).
Aquilo é um filho que se faz e se tem.
Acerca das belas letras, o mais antigo poema encontrado, este sim na Babilónia(ou será Suméria?), rezava o autor que a poesia estava gasta e todos os temas esgotados(p'raí há 3000 anos e picos) e ai a desgraça da humanidade(aqui tinha razão, o sofredor).

"Como insectos na mão de crianças, assim somos para os deuses, matam-nos por prazer." - Rei Lear.

E para terminar fazendo inveja ao Sr. Tolan:
- Beijinhos fofinhos.

PS(blheck) - Sou hetero, moçoilas.

Zé disse...

Foda-se uma enchada romba Alf? Tu de quem esperava eu o maior escritor português de todos os tempos vens-te agora com uma destas? Com esta e com essa do Roth afinal ser uma merda valha-nos Deus! Inchado estás tu mas bem antes do tempo ó palerma