sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Ascensão e queda de Lance Armstrong: a literatura é isto mesmo.

This is my body and I can do whatever I want to it. I can push it, and study it, tweak it, listen to it. Everybody wants to know what I'm on. What am I on? I'm on my bike, busting my ass six hours a day. What are you on?
Lance Armstrong, em 2001, para quem quis ouvir, businessinsider.com


Este é o meu corpo e será entregue por vós.
Jesus Cristo, Lucas, 22:19-20.


When a hero’s shares are booming, the market rewards ever-greater price inflation. When those shares are tanking, short-sellers become the kings.
Ed Smith, Newstatesman


Ignoramus non podemus.
Lema latino que inventei agora mesmo para me incitar a mim próprio, e a todos vós, na construção de uma crítica pública mais feroz, abundantemente participada, elegante e logicamente fundamentada - no conteúdo e na forma-, e que é a nossa única arma consistente contra a barbárie.


Para lá da definição mais corrente de literatura, pelo menos entre as pessoas de bem, a saber, a capacidade de manter uma conversa para lá dos constrangimentos de espaço e tempo que limitam a condição humana, temos aqui reflectido, caros leitores e ilustres comentadores, sobre a erosão do conhecimento do ofício literário, isto é, da escassa necessidade - sentida tanto pelos leitores como pelos escritores - de domínio do conteúdo de livros fundamentais para a caracterização escrita da tragédia humana, para além, claro, dos ambiciosos cálculos aqui tentados para identificar as leis naturais que explicam as forças que possam ter impedido o Daniel Oliveira de chegar mais cedo à conclusão de que o pacifismo balofo, o igualitarismo fingido, a desresponsabilização vitimizadora e o amaneiramento urbano das soluções políticas geram coisas tão deprimentes como a «desfocagem do iluminismo» - na própria expressão do jornalista -, o obscurantismo conservador da ruralidade e da pobreza mental, o vegetarianismo circense ou a religiosidade artística de cariz paroquial. Como incansavelmente se tem aqui procurado demonstrar, os iluminadores (Emanuel «pimba na velha mentalidade» Kant, Adam Smith, Jean-Jacques Rosseau, só para citar três dos mais profícuos e iluminadores exemplos) são os santos da razão -  potentíssimos candeeiros, fulminadores da escuridão, incansáveis propulsores de luz -, santos da razão, repito, e não da natureza humana, erro cometido tanto pelo Daniel Oliveira como pelo Tolan, e apesar dos delírios da escola de Frankfurt (pessoas justamente assustadas com as potencialidades mecânicas do terror Nazi) não me parece que o regresso ao obscurantismo relativista, ou o progresso em direcção à metafísica do amor pelos animais acrescentem uma solução ao problema do nosso destino, até porque convém recordar que nós também somos animais e matamos em diversas situações político-legais, tanto animais-humanos como humanos-animais, distinções pouco rigorosas, e que não nos ajudam muito, pelo que continuo a não perceber onde está a polémica, pelo menos para pessoas respeitáveis que acreditam nas instituições democráticas: o juiz decidiu, está decidido. Se não acreditam nas instituições democráticas, então teremos que refazer tudo do princípio, estando eu totalmente disponível para ajudar, não me parecendo, no entanto, e como já se demonstrou à saciedade neste blogue, um bom princípio começar pelo irrelevante caso do cão irrelevante. Acho mais útil cavalgar o famosíssimo lema de Dylan Thomas (deprimentemente traduzido num horripilante título de Lobo Antunes): Do not go gentle into that good night./Rage, rage against the dying of the light.




Na verdade, o motor desse hino ao rugido contra a escuridão (em todos os sentidos que podem ter todas as formas de limitação e cegueira, e tendo em mente o positivo da negação da vida - sendo a negação igual ao medo perante a vontade de infinito, e sendo o infinito o outro nome para a liberdade) há-de ser sempre a misteriosa decisão que temos enjaulado conceptualmente (na falta de melhor caçador holístico) na expressão «vontade»; eis-nos, por isso, chegados por caminhos tortuosos mas fascinantes ao coração da literatura. Moby-Dick foi erigido precisamente a partir de uma pergunta, que repercutia sem descanso na cabeça do jovem Herman Melville, ou seja, «é possível a tragédia contemporânea depois de William Shakespeare?» O homem fechou-se no sotão da casa materna, nas montanhas da Virgínia (isto se não me engano: agora os correctores de erros ortográficos irrelevantes que vão verificar isto, se faz favor) rodeado das bondosas e sempre ternurentas irmãs, e esgalhou uma tentativa de resposta com toda a fúria rabujadora que detinha naquele momento.


Quanto a nós, o que podemos fazer? Por agora, recomendo que contemplemos a extraordinária história de Lance Armstrong. O inteligente e nunca devidamente elogiado Ed Smith diz com toda a clareza que para lá da superfície, a história de Armstrong é sobre o poder das celebridades e a cumplicidade dos média. Eu diria que é sobre a natureza da verdade e os fundamentos da traição, tal como o Hamlet, de Shakespeare. Ora aí está, precisamente uma das razões de ser deste blogue, o que só constituirá novidade para os mais distraídos: pensar sobre a natureza da verdade, assunto que tem perdido adeptos à medida que o século XX foi baixando, paradoxalmente, o custo unitário da torradeira e da máquina de lavar. A tragédia de Armstrong explica também a minha insistência junto de figuras públicas que, cada uma à sua maneira, desempenham o papel de campeões do elogio fácil e do silenciamento da crítica impiedosa, contribuindo para erigir este mecanismo trágico nas suas várias manifestações patológicas. Seria demasiado fácil fazer agora aqui uma acusação às grandes empresas, incluindo as do jornalismo, lançando um anátema sobre o consumismo, com uma denúncia fundada nos princípios caritativos da confiança amorosa, do rigor pelas regras do desporto e do respeito pelo próximo, tarefas que deixo para os irmãos em Cristo,  quer a Nike, quer os comunistas de todo o mundo. Além do mais, a verdade, em todos os tempos, não tem produzido caridade ou confiança gerais, mas carrascos e vítimas: não é agradável mas é a verdade.


O meu contacto com Armstrong foi desde o início pautado pela irritação, o que confirma a excelência das minhas análises da carácter, bem como a inveja contumaz, ressentimento virtuoso e fertilidade biliosa que acumulam reprocidades incomparáveis na estrutura da minha personalidade. Sempre que existe um esvaziamento do drama trágico competitivo no desporto, para se engrossar a tragédia dramática dos desportistas perante o cumprimento ou não cumpriemento das regras, estamos apenas a anunciar a morte lenta da competição profissional e por isso do próprio fundamento cultural e filosófico do jogo-pago, minando uma das últimas manifestações religiosas da sociedade ocidental - o desporto de alta competição -, razão pela qual longe de virmos aqui chorar as habituais lágrimas de crocodilo pela existência da mentira desportiva, vimos antes sovar sem misericórdia os burros dos jornalistas, que são, com o triunfo da sua profissão, os primeiros a contribuir para a queda do desporto, fazendo sistematicamente uma apologia dos vencedores e não da competição, e permanecendo totalmente incapazes de perceber o que está em jogo no caso de Lance Armstrong, agora sim, finalmente um ídolo imortal na minha selecta galeria.
 

Lance Armstrong said in 2010: 'As long as I live, I will deny taking performance-enhancing drugs'

 
O estilo de Armstrong foi polémico desde a primeira hora, confirmando-se a todo o momento na animosidade dos comentadores desportivos, jornalistas e até colegas de profissão, perante a sua arrogância competitiva, escorada numa imbatível capacidade de sofrimento quando de boca entreaberta, e sem erguer o corpo do selim, serpenteava como uma maldição nos grandes templos montanhosos do ciclismo mundial. A mais deprimente confirmação do mecanismo trágico é que a desconfiança foi sendo substituída por uma aclamção consensual, fundada na sucessão de vitórias e não numa revisão crítica do seu estilo. O cada vez mais estrondoso aplauso que o rodeava não se baseava num apuramento estatístico mais elaborado, ou pelo menos corrigido, da credibilidade dos seus resultados atléticos, mas na destruição produzida pelo efeitos finais da luta,  a chamada verdade dos vencedores, sem que à sua volta fosse permitido a um qualquer indivíduo colocar dúvidas sobre as próprias condições do jogo, o que soa demasiado semelhante com a encruzilhada política em que nos encontramos perdidos para que se possam negar as vantagens pastorais desta história. Como qualquer um de nós, Armstrong perseguiu sem dó nem piedade a meta onde colocou para si o fundamento da sua identidade como vencedor, e os sinais da sua queda apenas confirmam que continua a querer vencer, procurando sustentar uma imagem cada vez mais acossada pelas confissões sucessivas, facultadas aos jornalistas por antigos colaboradores ou companheiros de equipa.


Como qualquer herói prestigiado, a sua força está baseada numa simplificação das nossas mais profundas qualidades e defeitos, e por isso, o ataque cerrado contra os antigos companheiros, que na sua queda, Armstrong vai mantendo bem vivo, demonstra a decisão trágica de se manter fiel à sua escolha: vencer. Também não vamos, à maneira triunfalista do jornalismo americano, procurar culpados na multidão acéfala, que movendo-se nos seus tentáculos de monstro insaciável, se mostra sempre cada vez mais ávida de heróis, pois quanto mais elevado é o prestígio do vencedor, mais implacável é o efeito devorador da tragédia, e mais reparador parece ser o sacríficio da vítima em queda: Armstrong escolheu perseguir a baleia branca e vai fazê-lo até morte, arrastando consigo para o fundo do oceano o mundo inteiro, se for preciso. O que aqui importa é verificar como a movimentação monstruosa do mar, nas suas ondas incontroláveis, sucendendo-se à calma apaziguadora das marés tranquilas, parece responder a um artifício intencional sobre-humano, razão pela qual os gregos viam no mar o refúgio dos deuses mais poderosos. Mas é preciso resistir a esta derrota da razão. O Estado que se ergueu com a força mecânica do racionalismo procurou ser o monstro que finalmente está no mar com naturalidade, dominando as alterações do cenário, com a sua constituição também formada da monstruosa ligação de forças entre os vários elementos. Se é verdade que esse Estado se afundou com as suas monstruosidades, o caso de Armstrong vem apenas lembrar que como Coriolanus, o velho general romano traído pela sua cidade, estamos outra vez muito perto de soçobrar na luta contra a monstruosidade do incompreensível - e quase sempre incitados pelos que mais nos amam ou dizem amar-nos.  Parece vir longe o dia em que finalmente acedemos ao controlo das nossas intenções quando movidas pelas expectativas dos outros.

6 comentários:

alma disse...

O Armstong tem razão no que diz :) não tem razão no que fez:)
chegou ao fim da questão
enganar os outros é fácil :) conviver com ela é mais dificil :)

Coitado :))))

não ouvi a entrevista:)
não é preciso ir lá para trás em busca do shake nem dos gregos.
Armstrong faz me lembrar o herói das "ilusões perdidas".

F. disse...

Ora muito bem, este texto vai-me dar pano para mangas:

Antes de mais, quero comentar atrasadamente que não sou a Pepa (ou qualquer que sejam os signos que usa para se denominar) mas sou fazível e vivo na linha de Lisboa. Fica registado.

Quanto ao desporto...
Para alguém que já fez desporto de alta competição posterior ao nível em que se começa a ser pago, sabe, que a competição consiste SÓ e APENAS num constante esforço de controlar e dominar a própria mente. Os limites impostos pelas regras de qualquer desporto (e escrevo isto com 12 anos de conhecimento de causa) são virtuais comparados com os limites impostos pelo 'eu' do atleta.Sempre foi e será uma verdade desportiva que um desafio encontra-se no atleta aprender a controlar a sua mente e utiliza-la em harmonia com o ambiente que o rodeia. De nada serve um corpo apto quando a cabeça não acompanha. Leva ao fracasso.

Ponto número dois, já dizia Foster Wallace que um desporto de alta competição é feito de planaltos e poucos são aqueles que sabem ter a humildade e persistência para sair de cada um e continuar a subir a montanha. Um atleta que pratique o seu desporto em função das críticas e dos aplausos, será derrotado facilmente. Armstrong lutou uma vida inteira para saber vencer a ele próprio. Os restantes adversários são meras desculpas para que a mente aprenda a puxar por si.

Metáde do mundo não sabe o que é ser uma atleta porque estão demasiado preocupados que os outros pensem que são ridículos por perseguirem uma baleia quando na verdade, quem segue a baleia sabe que está a perseguir-se a si próprio e que aquele toque de perfeição que parece quase tangível, estará para sempre como duas linhas paralelas que quase se tocam mas se nunca realmente o fazerem, até ao infinito.

F. disse...

Cheio de erros para variar mas o entusiasmo vai para lá da ortografia quando estou a escrever. Sendo que dou mais importância ao primeiro.

Zé disse...

És mesmo uma miúda com graça F. Foste mesmo da competição mesmo alta? (repetição expressiva).

F. disse...

Fui sim! O que me deixou com boas lesões a todos os níveis.

Zé disse...

A nível cultural não certamente, a nível mental também não parece. Só se for a nível físico que, para nós hedonistas, não deixa de ter a sua importância. Vamos lá ver: o desporto qual era?