Das coisas que mais me interessam, para lá do que inevitavelmente nos interessa sem que a nossa opinião seja tida em apreço, pode referir-se sem medo de errar o pretenso realismo, crueza da conversa, ou magnitude artística dos diálogos literários ou das descrições reais de ambientes suburbanos nos livros pungentes dos novíssimos autores, sempre em busca de ambientes degradados, sofridos, trágicos, merdas do estilo Sangue do meu Sangue, ou Massamá, aí vou eu, além da incontornavelmente famigerada corrente de consciência, o que traduzindo para os leitores que aqui chegaram em busca de conselhos sobre a masculinidade e a roupa da Zara a comprar durante este Advento pode substituir-se pelo interesse, por exemplo, acerca do grau de veracidade das descrições do Hernâni Carvalho sobre os esfaqueamentos em Loures ou a recente teoria jurisprudencial do Arrumadinho sobre crimes hediondos. Em geral, a falta de imaginação e a estupidez filosófica das pessoas empurra-as para uma simplificação altamente formalizada do que julgam ser um mecanismo de comoção dos outros, normalmente baseado num conceito, totalmente artificial e quase sempre ultrapassado, de sofrimento perante a injustiça.
Acabei hoje de ler, o assombrosamente sagrado, Billy Bud, de Melville, isto de pé, ao balcão de uma cervejaria num local urbanisticamente depreciado, numa sessão de êxtase místico que, auxiliada por três imperiais e uma empada, durou quase 45 minutos. A dado momento, entrou um senhor barrigudo, sapatos de camurça de um castanho tronco de carvalho envelhecido, blusão de napa, o queixo metido para dentro como se a pancadinhas de martelo e um cabelo cinza muito enrolado, recurvo e hirto, que parecia em si mesmo cinzelado por um mestre italiano. O homem cumprimentou de pronto o jovem empregado, um espécime estranho cujo semblante feminino - acentuado por um cabelo volumoso, castanho louro, os modos delicados e muito velozes - constituia um contraste tão vincado com o barrigudo, viril e bruto, que não fora a total veracidade do quadro e dir-se-ia um recurso narrativo congeminado pelo autor deste relato para conferir uma dinâmica de realidade ao sucedido.
Mal se encostou ao balcão, o barrigudo gritou com voz cavernosa.
Mal se encostou ao balcão, o barrigudo gritou com voz cavernosa.
-Quero uma bifana.
Entretanto, o outro empregado, proprietário da cervejaria, aproximou-se e disse
-Sabia que o mundo vai acabar amanhã?
-Isso são coisas lá do calendário Maia, os gajos viam nas estrelas - e formando um canudo com a mão direita, o barrigudo colocou-a sobre o olho esquerdo, apontando na direção das garrafas de aguardente.
-Estou-lhe a dizer, o mundo acaba amanhã - insistiu o proprietário, deixando que um pequeno sorriso maldoso nascesse no canto esquerdo da boca.
-Estou-lhe a dizer, o mundo acaba amanhã - insistiu o proprietário, deixando que um pequeno sorriso maldoso nascesse no canto esquerdo da boca.
-O mundo acaba é para quem morre, e mesmo isso de morrer, são apenas parábolas bíblicas - respondeu o barrigudo, sentando-se já com uma imperial na mão.
Entretanto retomei a leitura de Billy Bud, uma obra que não mais permite a continuação da vida tal como era anteriormente, o que é o mínimo que se pode pedir a um livro. O que a vida ensina a um escritor, mesmo limitado, é que nada na realidade nos habilita a estabelecer limites quando o objetivo é representar o real. Apenas a realidade se encontra limitada, não a sua representação. Mas num autor medíocre, a representação vem toda carregada de limitações, frases sofridas e pungentes, apelos à ficção e à importância do escritor e dos livros, lamentações sobre os limites das palavras, da mesma forma que os péssimos blogues se encontram carregados de explicações sobre o que são as coisas, sobre o que é ser homem, sobre o que é ser mulher, sobre como vestir bem, como rir, como não ficar doente, como não lavar as próprias cuecas, como corrigir a trajectória do PIB, como alcançar a felicidade, as estrelas, a eternidade, tudo isto escondido num falso tom de humildade e de contemporização para com as dificuldades dos leitores e os seus supostos interesses soberanos.
É certo que a denúncia do erro nos outros é não só um velho hábito sacerdotal como uma manifestação exuberante de falta de economia artística. Mas pecar por meio destas digressões críticas - sobretudo para um autor que redige a sua obra ainda desconhecida - traz-nos também, nas palavras de Melville, algum do prazer que normalmente se associa ao pecado, um prazer nada dispensável para aqueles que professam a ideia de que «a única salvação que desejamos é a de viver neste mundo»
5 comentários:
'It is not the critic who counts; not the man who points out how the strong man stumbles, or where the doer of deeds could have done them better.
The credit belongs to the man who is actually in the arena, whose face is marred by dust and sweat and blood; who strives valiantly; who errs, who comes short again and again, because there is no effort without error and shortcoming;
who at the best knows in the end the triumph of high achievement, and who at the worst, if he fails, at least fails while daring greatly . . .'
Charlize Theron, entrevistada ao entrar para o seu trailer depois de filmar a ultima cena de "Young Adult".
Segundo o sempre eficiente Google, estamos diante de uma citação de um discurso Theodore Roosevelt, "Citizenship in a Republic," Speech at the Sorbonne, Paris, April 23, 1910, mas se é verdade que a Charlize Theron profere isto no filme, já me encontro num estado de ansiedade profunda à espera da próxima sessão.
Isso já estreou? Desculpem a minha ignorância jornalística em outras matérias que não a literatura. Como tenho afirmado em diversos momentos, o tempo é o nosso mais doloroso limite.
Sim, sim, profere isso e muitas mais perolas. Deves ir ja a correr ah proxima sessao desta obra prima, em que a querida Charlize faz assim tipo uma versao feminina do Teddy, mas sem ir aos safaris.
(Izzy imitando riso do Muttley)
charleeeeeezeeeee *_*
BRAVO
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